FOME  ZERO  DE  SABER[1]

- do refeitório à sala de aula -

 

Hilma Ranauro

 

"O meu povo está sendo destruído, porque lhe

falta o conhecimento". (Oséias 4:6). 

 

 

            A escola passou a preocupar-se (e tem mais é que se preocupar) com a fome de comida, mas vem sendo muitas vezes desviada da sua responsabilidade com a fome de saber, como se cuidar de uma implicasse deixar de cuidar da outra. Sob a desculpa de que as crianças são carentes e não têm condições de aprender, por vezes se deixa de oferecer-lhes adequadamente o prato do saber

            Desde quando ser desvalido social e financeiramente implica obrigatoriamente sê-lo mental e intelectualmente? Os carentes são também querentes, inquieta e sofregamente, no mais das vezes. Uma vez alimentados, cabe trabalhar com eles, motivá-los, aguçar-lhes a mente, inquietá-los intelectualmente, como não? Nãotempo a perder e sim, muito a recuperar, do refeitório à sala de aula.

Para isso, é verdade, há de haver o prédio escolar, e este está caindo aos pedaços muitas vezes. Mas há os que não estão, ou que estão de , apesar de tudo. Há muita coisa boa sendo feita, há muita gente série trabalhando, há professores se esforçando para que seu aluno aprenda. Há crianças de todos os níveis e condições sociais sendo alfabetizadas, num trabalho solitário e pouco valorizado de excelentes e abnegados professores (professoras, no mais das vezes). Muitos, porém, vêm a se afastar do Magistério para buscarcoisa melhorapesar de saberem que aquele é o trabalho para o qual se sentem motivados e preparados. E a escola acaba por perdê-los.

            Verificou-se no Magistério, de uns tempos para cá, o desespero dos mais inquietos e conscientes, o afastamento de muita gente capaz, a invasão de muitos que nada têm a ver com o ensino, a revolta de outros, a alienação de muitos, o pouco caso de um bom número.

            Há professores do lado dos que passam fome, é bom frisar. Sua desnutrição se processa na fome de alimentos e na fome de saber, posto que, se há falta recursos para as necessidades básicas, que dizer das necessidades de aperfeiçoamento e atualização.

Esqueceu-se – ou se fez esquecer – que de nada adiantam teorias sendo implantadas, ou impostas, sem que a peça-chave do processo, o professor, esteja bem. Ele só estará bem se a escola como um todo mudar, se o investimento em educação sair do discurso de campanha eleitoral para a prática, e se o professor, em lugar de gorjetas, receber um salário digno de sua missão de formar e informar.

A luta pela escola passa obrigatoriamente pelo professor, mas tem de ser deflagrada e sustentada por toda a sociedade. E ela está, a nosso juízo, diretamente ligada à luta contra  a fome, e vice-versa. Não há como desvincular a erradicação do analfabetismo da erradicação da fome. São faces da mesma moeda sem lastro desse país que cabe tornar País.

            E que se lembre que ambas as fomes não cessam de existir. Ficam mais seletivas e exigentes no paladar quando experimentam os vários pratos. Por isso assustam aqueles a quem interessa mantê-las, na ausência da alimentação mínima necessária à vida com qualidade, na inanição, que leva à morte, física e mental. Uma vez satisfeita uma delas, a luta pela satisfação da outra é incontrolável, no tão propalado, e nem sempre bem compreendido, exercício da cidadania.


[1] Publicado na Revista Plenitude (Universal Produções), seção "Reflexão, ed.  n.º 106, 2004

 

 

Voltar ao índice