VISITANDO OS ARQUIVOS DA INQUISIÇÃO
ESPANHOLA
UMA ABORDAGEM FILOLÓGICA
Sandro Marcío Drumond Alves (UFRJ)
O filólogo é o amigo da palavra. Esta é a definição etimológica mais usual e a que mais nos leva a pensar no sentido que se pode extrair de ‘amigo’ e ‘palavra’. Não pretende-se buscar uma explicação etimológica para ambas, mas uma correlação semântica que nos possa levar à idéia mais ampla de que o filólogo é alguém dotado de grande refinamento intelectual. Podemos convergir para a idéia de que a palavra é uma das armas mais poderosas existentes e isso faz com que aquele que a domine se torne um hábil e admirável guerreiro. Os significados gerados pela palavra ocasionam, de certo modo, um elo entre diferentes campos de estudo e saber e quando isto ocorre, a pessoa que domina aquela estrutura semântica pode ser tomada não só por sua grande habilidade lingüística, mas por seu vasto conhecimento geral de cultura. Esse guerreiro é o filólogo e seu quartel general é a filologia. Segundo BASSETTO (2001: 23) “[...] pode-se concluir que o termo “filólogo” denota, quase sempre, uma idéia de refinamento intelectual, de amplos conhecimentos gerais ou específicos, de uma cultura em geral e domínio da linguagem em particular. Entretanto, não se chegou à univocidade do termo.”
Desta acepção, podemos verificar que o filólogo, além do conhecimento lingüístico, possui o conhecimento histórico. Assim, os estudos dos textos escritos, dos quais inquestionavelmente são atribuições do filólogo, catalisam o conhecimento lingüístico de dadas épocas. O filólogo não só domina a palavra em sincronia como também em diacronia. E este domínio se dá através da estreita relação de ‘amizade’, ‘amor’ , ‘intimidade’ que ele tem com o seu objeto de estudo. Daí, “amigo da palavra”, em sua abordagem morfológica e semântica. Encaixar essa abordagem no processo de reprodução e legalização do conhecimento histórico é uma das tarefas do filólogo. De acordo com PICCHIO (1979: 214)
O método filológico nos aparece hoje como um dos mais fecundos da indagação crítica. É uma posição que poderíamos definir optimista em relação à meta derradeira que o filólogo se propõe e que continua sendo sempre a mesma: entender, no sentido mais amplo do termo, quanto um outro homem, mesmo distante no tempo e no espaço, confiou aos signos; reproduzir em si o processo histórico e o momento intuitivo que levou àquela expressão lingüística e poética ou, como dizia Wilamowitz, “captar uma personalidade alheia”.
O que se pode inferir é que, às vezes, essa documentação escrita a ser trabalhada pelo filólogo não contém traços tão poéticos, mas pode captar de maneira efetiva não só a personalidade alheia de um homem, mas a de um tempo. Um exemplo disso e é a que nos propomos nesse trabalho é visitar um trabalho filológico realizado nos Arquivos espanhóis que guardam a vastíssima documentação escrita produzida ao longo da ação inquisitorial na Península Ibérica.
Em 1474, Castilla, através de um golpe, passa a ser governada pela Rainha Isabel, que anos depois recebe o título de A Católica. A nova Rainha tem uma meta clara e objetiva: a unificação. Embora muitos historiadores mencionem as políticas de unificação territorial e religiosa, poucos comentam que ambas retratam uma terceira política implantada: a lingüistica. No final do século XV, o território que atualmente conhecemos por Espanha era praticamente dois grandes reinos: Castilla e Aragón. Durante a reconquista, os territórios antes ocupados pelos árabes foram sendo pouco a pouco tomados e incorporados aos dois grandes reinos empreendedores desta feita. Ainda havia a resistência de uma cidade sulista à conquista cristã: Granada.
Não podemos esquecer que uma das grandes metas da rainha Isabel era a unificação religiosa. Mas como unificar religiosamente um reino que depende economicamente das riquezas de outras religiões? A política de unificação religiosa foi sendo realizada aos poucos. O instrumento que permitiu a concretização desse objetivo foi a Inquisição.
A Inquisição espanhola tem seu início em 1478, mais precisamente no dia primeiro de novembro deste mesmo ano. Por meio de um pedido feito pelos Reis Católicos, o Papa Sisto IV assinou a bula Exigit sincerae devotionis affectus que marcou o início do Santo Ofício na Espanha. Embora a Inquisição seja conhecida da Europa, pois atuou fortemente durante a Alta Idade Média, os territórios de Castilla e Aragón não chegaram a conhecê-la plenamente naquela época. A expansão deste mecanismo de repressão herética chegou a alcançar somente uma pequena parte das terras aragoneses no século XIV, mas, efetivamente, não chegou a se firmar. Devido a esse motivo, ainda que recorde alguns procedimentos e tenha objetivos comuns com aquela, o Santo Ofício espanhol inaugura a chamada Inquisição Moderna.
A bula Exigit reproduzia os argumentos régios sobre a difusão das crenças e ritos que englobavam os judeus convertidos ao cristianismo nos territórios de origem dos Reis. A palavra chave para esse início foi Heresia. De acordo com os Reis, que estavam tentando unificar o território, a tolerância dos clérigos permitia que a heresia se disseminasse em terras sagradas. Sendo assim, a bula assinada pelo Papa deu pleno poder aos Reis para que nomeassem três inquisidores para cada uma das cidades ou dioceses do reino. Esta, provavelmente, foi a grande diferença que marcou a Inquisição da Idade Moderna para a Inquisição da Idade Média, em que todo o poder era do clero não cabendo às autoridades monárquicas grande parcela de participação ativa na luta contra os crimes contra a religião e aos ensinamentos religiosos. O conteúdo da bula ia além do poder de nomeação dos representantes do Santo Ofício pois a revogação e a substituição dos inquisidores também era tarefa delegada aos Reis.
As novidades introduzidas pela Inquisição espanhola concentram-se na complexidade crescente dos ritos de apresentação das cartas de nomeação [...], na organização da missa de publicação da Inquisição [...], no juramento [...], nos éditos [...].Mas as verdadeiras rupturas, que se refletem na solenidade dos ritos de fundação, encontram-se na nomeação dos inquisidores pelo rei (apenas numa primeira fase, é certo) e em sua instalação nos palácios reais ou nas casas cedidas por oficiais da Coroa. Outro traço de ruptura com a prática “medieval” diz respeito à forma como o primeiro inquisidor-geral começa a nomear inquisidores imediatamente após sua investidura, revogando as “inquisidores papais” que subsistiam nos territórios da Coroa de Aragão. (BETHENCOURT, 2000: 24)
O que se pode entender, na verdade, é que a Inquisição Moderna transferia os poderes antes do Clero para a figura dos monarcas e que o inquisidor-geral também compartilhava de um poder de nomeação que não houve na Idade Média. A partir dessa transferência de poderes legitimada, os Reis junto ao papa nomearam o primeiro inquisidor-geral. Este fato foi o que definitivamente confirmou e legitimou a inquisição espanhola como um tribunal eclesiástico, funcionando com a aquiescência do papa. Segundo BETHENCOURT (2000: 24) “Trata-se de uma nova estrutura que se procura estabelecer, construída sobre relações de fidelidade completamente diferentes.”
Desde sua criação, em 1478, até 1492, ano em que se expulsa os judeus, a Inquisição se mostrou especialmente ativa e eficaz. Muitos conversos foram processados e a grande maioria foi executada em nome de Deus. Não é de se estranhar que a ação da Inquisição tenha sido muito forte no sul da península durante seus primeiros anos de funcionamento. Eram terras recém reconquistadas e acreditava-se que os focos de heresia eram muito potentes. PRADO MOURA (2003: 20) nos adverte que “El sur de la península, por ser el territorio que a juicio de los monarcas necesitaba ser más urgentemente controlado, fue al que primero se dedicó la atención inquisitorial.” Observa-se que o estabelecimento do tribunal do Santo Ofício era para julgar casos de heresia, portanto só afetaria efetivamente os conversos. O que se vê, na verdade, é que a inquisição adquiriu um poder tão forte que ultrapassou seus próprios limites passando a ser o instrumento mais poderoso de repressão aos crimes (não só os de religião) e aos criminosos (não só os conversos).
O Santo Ofício, em seu trabalho de banir a heresia das terras dos reis católicos, não só perseguiu os conversos como também os cristãos velhos e os não-conversos. Até o ano de 1490 não se teve notícia de processos contra não conversos ou cristãos velhos. O primeiro caso contra um judeu não converso em terras castellanas foi iniciado em 17 de dezembro de 1490 e reavivou na Espanha o velho mito do libelo de sangue tão difundido nos territórios em que a Inquisição medieval esteve presente. É importante recordar que as investigações e os processos inquisitoriais demoravam cerca de um ano para que fossem finalizados. Todo o processo era mantido em sigilo até a leitura em voz alta e em praça pública do auto-de-fé. Sendo assim, até o dia 16 de novembro de 1491, as pessoas não tinham conhecimento de que um grupo de judeus matou uma criança cristã na vila de La Guardia para usar seu coração e seu sangue em rituais demoníacos.
A este processo se intitulou Processo do caso Santo Niño de La Guardia. Santo Niño porque a criança morta pelos judeus foi canonizada e tornou-se Santo protetor da vila de La Guardia, em Toledo. Nos manuscritos inquisitoriais está intitulado Proceso de Yuçé Franco judio. Quemado. Parte da proposta de unificação lingüística querida pela Rainha Isabel pode ser comprovada através dos manuscritos deixados pela Inquisição. Uma das normas da Inquisição era registrar todas as etapas dos seus processos em atas redigidas pelos notários em língua castelhana. O texto escrito desse processo possui uma única cópia. O apógrafo se encontra no Arquivo Histórico Nacional de Madri (AHN) e o autógrafo atualmente está guardado no Arquivo Central de Alcalá de Henares (ACAH). O filólogo espanhol Fidel Fita realizou uma edição crítica deste processo inquisitorial e o publicou em forma de boletim da Real Academia de la Historia da Espanha. Atualmente é possível ter acesso a essa edição crítica por meio da internet através da página da biblioteca virtual Miguel de Cervantes que tem um link que a une à hemeroteca da página da Real Academia de la Historia da Espanha.
O documento disponível pela web é a versão digitalizada do tomo impresso. De acordo com as pesquisa realizada por DRUMOND ALVES (2005), todas as alterações e considerações relacionadas pelo curador do trabalho se mantiveram intactas no hipertexto. Para a realização da edição crítica, Fidel Fita utilizou mais o apógrafo que o autógrafo por questões de condições. Na época em que o filólogo estava realizando este trabalho, ambos os documentos se encontravam em excelente estado de conservação mas algumas páginas do autógrafo se perderam no século XIX (possivelmente no deslocamento executado do Arquivo do Governo da Província de Toledo para o Arquivo Central de Alcalá de Henares em 1861). Não se tem certeza absoluta de que foi neste exato ano que sumiram as páginas integrantes do processo inquisitorial contra o judeu Yuçé Franco. A única certeza que se tem, devido aos registros de visita e uso dos códices do Arquivo do Governo da província de Toledo que um senhor chamado Amador de los Ríos foi o último que viu por completo este documento no ano de 1845.
O processo original está em folio de papel manuscrito pelos notários do segredo da Inquisição Espanhola: Martín Pérez, Juan de León e Antón González. Embora o apógrafo tenha as mesmas especificações do original, não se tem certeza de que tenha sido redigido pelos mesmos notários. Na primeira capa aparece em letra coetana a seguinte inscrição:
Proceso de yuçe franco judio. Quemado
Ay en este proceso XLVIII fojas.
Visto.-Sentenciado.-Quemado.
De acordo com as informações contidas na primeira página do autógrafo e do apógrafo, o manuscrito está constituído de um total de 68 folhas e o tomo impresso com o total de 160 folhas. O manuscrito encontra-se em ordem cronológica de acontecimentos, sem divisão por seções e sua edição crítica encontra-se divida em oito seções que seguem, em ordem cronológica, cada uma das partes processuais reconhecidas. São elas:
A demanda e a acusação do fiscal;
As confissões do réu apresentadas pelo fiscal em contraprova;
As testemunhas de acusação apresentadas pelo fiscal;
O veredicto do jurado em Salamanca;
A publicação dos testemunhos. Reparos, defesas, tormento e última confissão do réu;
Relação dos testemunhos contra o réu e finalização do processo;
O auto-de-fé;
Apêndice constituído de provas apresentadas pelo sacristão de La Guardia e por Gabriel Sánchez.
Ao organizar a edição crítica do processo inquisitorial para publicação no boletim da Real Academia Espanhola de História, o filólogo Fidel Fita realizou algumas modificações na grafia das palavras a fim de dar maior clareza e limpeza ao texto impresso. A primeira letra dos <rr> iniciais foi suprimida assim como as todas as cedilhas do texto, principalmente aquelas em sílabas ce, ci. O único caso de permanência da cedilha no texto em sílabas <ce> e <ci> encontra-se em uma das variantes do nome do réu: Yuçé. As letras <i > são mudanças feitas a partir das <y>, usadas no manuscrito sem norma fixa. As notas ticonianas do manuscritos foram substituídas por <é> que passa a indicar o conector aditivo no suporte impresso. Os acentos prosódicos que aparecem ao longo do texto também foram marcados pela edição crítica pois o estilo notarial daquela época não permitia sua marcação. É de relevante observação notar que o texto não se encontra somente em língua vernácula. Há partes que estão redigidas em latim e estas partes são as que o clero se pronuncia diante do caso exposto. Pode-se observar que o uso do latim para a comunicação entre os membros da Igreja dão um caráter de texto escrito ao processo inquisitorial já que é o latim clássico que ilustra algumas peças do processo.
A realização de uma edição crítica de um dos mais importantes processos inquisitoriais da Espanha vem no sentido de reafirmar a importância do filólogo para a compreensão do processo histórico. Para realização dessa obra foi necessário, além do conhecimento histórico, o domínio da leitura paleográfica do século XV, da sintaxe e pontuação do texto escrito da época e da mentalidade vigente no ato de execução dos manuscritos. O que podemos afirmar é que além do ver o texto como um campo para o estudo da palavra, é também um lugar de estudo da experiência humana. Neste sentido PICCHIO (1979: 220) é categórico ao afirmar que
No seu processo de reconstrução, o filólogo continuará a considerar o texto um documento, um depósito de experiência humana: e tirará dele ensinamentos úteis para uma correcta interpretação semântica. [...] Do conhecimento do uso, que lhe é fornecido pelo contexto, ele poderá então identificar o absurdo; da consciência da norma semântica, deduzir as utilizações parassemânticas, poéticas.
Sendo assim, estamos de acordo tanto com as idéias de PICCHIO quanto com as de BLANCHE-BENVENISTE (apud CASTRO) de que a consciência de um momento histórico pode ser extraída do trabalho filológico, mas não se pode deixar de levar em conta que os editores não podem alcançar ‘o verdadeiro texto’. Eles só buscam uma aproximação a ele. Esta seria a magia da investigação filológica e a regra mais constituída do jogo interacional que advém da leitura, interpretação e reconstituição do texto histórico.
BIBLIOGRAFIA
BASSETTO, B. F. Elementos de Filologia Românica. São Paulo: EDUSP, 2001.
BETHENCOURT, F. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CASTRO, I. “O retorno à filologia” In: PEREIRA, C. C. & PEREIRA, P. R. D. (org.) Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
DRUMOND ALVES, Sandro Marcío. Estudo pragmático dos atos de fala e estratégias de polidez no processo inquisitorial contra um sapateiro judeu nas terras de Castilla em 1490. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas. Rio de Janeiro, Faculdade de letras, UFRJ, 2005.
FITA, F. “La verdad sobre el martirio del Santo Niño de La Guardia, ó sea el proceso y quema (16 Noviembre, 1491) del judio Jucé Franco em Ávila” In: Boletín de la Real Academia de la Historia, Tomo XI, 1887.
PICCHIO, L.S. A lição do texto. Lisboa: Edições 70, 1979.
PRADO MOURA, A. El tribunal de la Inquisición en España (1478-1834). Madrid: Actas editorial, 2003.