A Barca dos Homens,
de Autran Dourado
a expressividade do volume frasal
Marcia de Oliveira Gomes (UERJ)
Imaginemos uma colcha de retalhos de tamanhos variados ou simétricos, coloridos ou de apenas uma cor, dispostos conforme o gosto estético de quem os entrelaçou. Agora pensemos nessa colcha como um texto. Os retalhos seriam as frases, as cores os recursos empregados para organizá-las e o gosto estético, o estilo do autor.
A frase é o alicerce do texto, é nela que se estruturam palavras e idéias, de tantas maneiras que uma só sentença poderia adquirir matizes totalmente opostos.
Do alinhamento das frases pode surgir um tom mais formal ou mais coloquial, conforme o emprego de recursos como subordinação ou coordenação, respectivamente. Já o volume frasal acarreta a velocidade do texto. O uso consistente de períodos longos torna-o lento, assim como os curtos o aceleram.
Por fim, a estética textual é objeto de estudo da estilística, que aborda o emprego expressivo do material lingüístico, fruto da escolha, consciente ou não, do autor. Tal fenômeno mostra-se mais nitidamente no âmbito literário, uma vez que, conforme Mattoso Câmara (1978:25), “os processos estilísticos se encontram a serviço de uma psique mais rica especialmente educada para o objetivo de exteriorizar-se”.
Assim, o tamanho do retalho, a disposição das cores, o tipo de costura e o gosto estético de quem os organiza são diretamente responsáveis pelo resultado final da nossa colcha de retalhos. Não obstante, enfocamos neste trabalho a expressividade da extensão da frase, considerando quando necessário os demais fatores que a envolvem.
O corpus foi selecionado a partir de um livro de nosso apreço, o consagrado romance A barca dos homens, de Autran Dourado, que recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores (1962). Trata-se de uma obra densa, na qual é narrada a perseguição a Fortunato, deficiente mental, acusado de ter roubado uma arma de fogo. Tal ocorrência gera uma quebra na apatia em que os moradores da ilha se circunscreviam, e seus sentimentos e segredos começam a aflorar, numa ciranda de vozes que constituem o quadro dessa narrativa.
Ao entrar em contato com A barca dos homens intrigou-nos a forma como a obra se arquiteta, mais precisamente no tocante à frase. O primeiro bloco entregue à apresentação dos personagens se fazia ler de forma lenta e profunda, ao passo que o segundo, imerso na ação dos moradores da ilha, em face dos acontecimentos desencadeados pela perseguição a Fortunato, possui uma narrativa bem mais veloz.
Os apontamentos do autor a respeito da confecção da obra nos levam a crer que esse recurso foi intencionalmente empregado por ele, o que se comprova por meio do gráfico apresentado por Dourado em Uma poética do romance (2000), reproduzido na figura 1, mais adiante, para melhor acompanharmos seu raciocínio.
Tal efeito se deve ao emprego da frase que vai da excessivamente longa, seguindo os parâmetros clássicos, à entrecortada, caracterizada pela brevidade e estrutura predominantemente coordenada, empregada no auge do Modernismo. Segundo Midleton Murry (1968: 97):
Para que efeitos rítmicos tenham sucesso devem diferenciar-se com precisão; diferenciação – com tanta sutileza que permaneçam subordinados à sugestão intelectual das palavras, é o mais delicado trabalho que se possa imaginar.
Foram esses os elementos que observamos no presente estudo ao prendermos nosso olhar no mar que conduz A barca dos homens. Mar que se faz ver pelo contraste do volume frasal, ora longo e manso, a ninar os pescadores, ora curto e agitado, no prenúncio da tempestade.
O volume do período, como qualquer outro recurso lingüístico, vem a legitimar na forma o conteúdo de um texto. A predominância de um estilo único resulta no gosto insosso da previsibilidade. É, portanto, o colorido do texto, e não o monocromismo, que o vitaliza, é o contraste entre diferentes mecanismos lingüísticos, e, no que diz respeito ao nosso estudo, variadas dimensões frasais, que acentuam seu efeito estilístico.
1- O cemitério da praia 2- As
aranhas
3- A casa da Câmara 4- Os
peixes
5- A Madona e o menino 6- Um começo
de homem
7- O beco das mulheres 8- A
nave de Deus
Figura 1 – Representação Gráfica da Confecção da
Observemos, então, como o autor se vale desse recurso em seu romance.
O ancoradouro
“Fala e onda quebrando mansas” (p. 13). Essa sentença define o primeiro bloco do romance, no qual nos inteiramos do cotidiano dos personagens que, mesmo em conflito interior, sustentam a máscara da resignação. A morosidade do mar naquela manhã da Ilha de Boa Vista pode ser percebida no comprimento dos períodos que se estendem preguiçosamente.
O primeiro trecho selecionado para a análise refere-se a Fortunato, cujos hábitos vão sendo apresentados ao leitor:
E Fortunato, embora com quase trinta anos, não fazia outra coisa senão andar o dia inteiro pela ilha, de praia em praia, de penedo em penedo, catando ostras que comia com esganação, ou na colônia de pescadores do lado do continente, esperando os barcos voltarem da pesca, ou vagando no cais sujo, a ouvir como o canto de um menino morto a sirena da Fábrica, que espantava as visões dos olhos opacos, dos olhos afundados no seu porão ou muito tempo parados no brilho das escamas e das lajes, das ondas que batiam de Boa Vista os olhos de Fortunato eram mansos como peixes. (p. 18)
É-nos revelado que a personagem ficava o dia inteiro a caminhar pela ilha. A frase longa se emprega na tentativa de apreender cada detalhe de seu percurso. Contribui para tal matiz o uso sucessivo dos adjuntos adverbiais “de praia em praia”; “de penedo em penedo”, que assinala os passos de Fortunato por todo o lugar. A presença de verbos no gerúndio como “catando”, “esperando” e “vagando” confirma esse caminhar constante, pois conforme Cunha & Cintra (2001: 492): “o aspecto inacabado do gerúndio permite-lhe exprimir a idéia de progressão indefinida, naturalmente mais acentuada se a forma vier repetida”.
O detalhismo fica igualmente claro na acumulação de complementos, a fim de especificá-los, caso de “dos olhos opacos, dos olhos afundados no seu porão” e “do brilho das escamas e das lajes, das ondas que batiam de mansinho na amurada”.
A frase volumosa do romance também segue os moldes das crônicas de viagem, sempre que há a interferência de um narrador obscuro, relatando os acontecimentos da barca dos homens, metáfora da Ilha de Boa Vista:
Na entrada da Ilha da Boa Vista, separada do continente por um braço de mar de uns mil metros, onde boiavam barcos de serviço (de lado a lado, gritos de vogais demoradas) um mar feio e sujo, mar de estopas e nódoas de óleo, um mar feio e sujo, mar de pobres e de trabalhos e de chupas de laranjas podres, um mar de pescadores e de pretos, na entrada da ilha ainda se via escuro o marco que os descobridores deixaram. A terra era do Império, a Fé dilatada até o outro mundo. Esta terra, Senhor... (p. 52-3)
A literatura dos cronistas e viajantes do século XVI e XVII era muito comum em Portugal e Espanha, constituindo narrativas em prosa que registravam as descobertas de novas terras, descrevendo-a e a seus habitantes.
No trecho supramencionado, a descrição da ilha enfoca o mar. A primeira referência possui caráter objetivo, que é estabelecer-lhe medidas: “mais de uns mil metros”. Em seguida, as características do mar se acumulam nas minúcias de uma descrição pessimista que registra como princípio indiscutível o aspecto frio e sujo do mar, por meio de sua reiteração.
Cressot (1980: 263) admite que: “Uma frase pode ser longa, não tanto devido às subordinadas que se ligam ao tema principal ou a um tema secundário, mas por acumulação dos factos e das circunstâncias”. O polissíndeto encadeia as qualificações estendendo a visão descrita. As duas frases seguintes servem para identificar narrador e interlocutor: escrivão e rei, respectivamente.
Procedimentos como a subordinação enfadonha são recursos que podem tornar a frase arrastada:
Difícil era não acreditar que Tônho tinha medo, que a cachaça o vencera, que não contava mais entre os grandes pescadores que palmilhavam a costa e venciam o mar alto. Os grandes pescadores cujos olhos nasciam com a primeira manhã que sai virgem da noite, ensangüentada e pura. O peito dos pescadores. Tônho conhecia o mar, conhecia-o desde menino, sabia de seus mistérios, das pedras agudas que eram o perigo dos dias de mar agitado, sabia do mar azul, do mar verde cheio de peixes, do rumorejar das ondas do mar. Sabia do mar grosso.
Que acontecia com Tônho agora? (p. 43)
O excesso de orações subordinadas multiplica o que era difícil de acreditar, acentuando as falhas de Tônho e a dor de Fortunato em sabê-las. A retomada dos elementos os enfatiza. “Os grandes pescadores”, “O peito dos pescadores”. Já a repetição do verbo “saber” estabelece a coesão, dispensando o elemento subordinante.
É possível notar a assimetria dos períodos que contrastam num mesmo parágrafo, e até entre eles, frases muito longas e muito curtas. Trata-se de uma tendência do estilo barroco. Segundo José Lemos Monteiro (1991: 51):
A simetria responde pelo significado de equilíbrio, enquanto a ausência de um estreito paralelismo rítmico-sintático revela um estado de desequilíbrio.
(...) os períodos curtos, incisivos, atêm-se ao coloquialismo, à espontaneidade. São estruturas da linguagem prevalentemente afetiva. Os períodos mais longos, armados hipotaticamente, exprimem menor escala de afetividade e se prestam para linguagens denotativas, técnicas. A mistura acentuada dos dois recursos implica sempre uma tensão, um jogo de contrários.
Tal fenômeno ocorre nessa reflexão de Fortunato, que vivencia um conflito, tentando entender a razão de Tônho não se lançar mais ao mar para pescar. Assim, ele pesa o vício do amigo e sua experiência como pescador, temendo acreditar que tenha sido vencido pela bebida.
Mesmo na primeira parte do livro, observarmos, com menor freqüência, períodos curtos. No seguinte, revela-se a expressividade da frase fragmentária, que integraria sintática e semanticamente a anterior, quebrada para fins estéticos:
Aquele cheiro esquisito de flores murchando, de carne apodrecendo, de gente suando. Que a livrasse sobretudo das moscas, meu deus. Da gosma. A gosma no canto da boca aberta. Mas às vezes vinha um sonho bom no cemitério. (p.16)
Na amostra de tais sentenças, destaca-se a fragmentária “Da gosma”, objeto indireto do verbo “livrar”, do mesmo modo que “das moscas”. Isolada em uma frase, obtém ênfase, retomada, ainda, na posterior “A gosma no canto da boca aberta”, pois a gosma é o principal temor da personagem, a imagem marcante do corpo morto no cemitério.
Nesse primeiro bloco, os períodos longos estabelecem um ritmo lento, quebrado, às vezes, quando fortes sentimentos nas personagens ou determinadas declarações merecem um maior destaque, por exemplo, configurando-se em frases entrecortadas ou fragmentárias.
As ondas em mar alto
“De noite a maré estaria forte, crescia cobrindo toda a praia, em rugidos ferozes, traria sujeiras e conchas quebradas de encontro às rochas” (p.49). Nessa parte da história, temos acesso ao segredo de Godofredo, de que Fortunato não roubara sua arma e que, ao percebê-lo, resolveu manter a farsa, temendo ser ridicularizado. Essa é a sujeira trazida pela maré. Também nele Maria discute com o marido e o trai com o tenente Fonseca. Ela já não podia ser mais a mesma, concha quebrada.
O mar agitado e violento encarna nas frases curtas que implicam maior velocidade.
O provérbio expressa um pensamento, que pode manifestar conselho, princípio ou súmula de vida, por exemplo. Constitui-se de sentença breve e concisa, trazendo consigo a memória discursiva de uma sabedoria popular, por isso sua inserção no discurso é tão expressiva. Logo, o olhar do leitor atento recairá muitas vezes sobre esse recurso no texto, sempre em consonância com o estado de alma das personagens:
O tenente mirou fundo os olhos de Godofredo. Nenhuma sombra, nenhuma desconfiança, nenhuma prevenção. Não sabia de nada. Suspirou aliviado. Não tinha medo dele. Mas assim é melhor. Por que Maria não contou ao marido o que se passou de tarde em sua casa? Estava intrigado. Quem cala consente. Que mulher mais esquisita. Por que o agrediu então? Passou as mãos nas orelhas machucadas. Gata braba de unhas afiadas. (158)
O tenente teme que Godofredo descubra que havia assediado sua esposa. Assim, ao se encontrar com ele, procura sondá-lo para se certificar de sua ignorância dos fatos. Resulta dessa sondagem a declaração: “Nenhuma sombra, nenhuma desconfiança, nenhuma prevenção”. Observamos na frase um paralelismo rítmico introduzido pelo pronome “nenhuma” três vezes mencionado. Tal repetição não apenas imputa relevo à idéia, mas expressa a tentativa de abranger cada detalhe do adversário que possa revelar sua desconfiança.
Apesar dessa prevenção, sua insegurança sobre tudo o que se passara ainda é demonstrada por meio das interrogações que se alternam: “Por que Maria não contou ao marido o que se passou de tarde em sua casa?”, “Por que o agrediu então?”. As frases concisas funcionam como ilações no contexto, fechando cada reflexão: “Não sabia de nada”, “Mas assim é melhor”, “Estava intrigado”, “Gata braba de unhas afiadas”. O provérbio “Quem cala consente”, invocado pelo locutor, revela o intento de se abster de qualquer culpa em relação ao assédio, buscando para isso a voz da sabedoria popular, autoridade que decreta sua inocência.
Ainda em relação aos períodos curtos, deparamo-nos com a aliança de seu comprimento e repetição no intuito de destacar determinadas ações:
Amadeu pensava e mais pensava. Enfiou o gargalo na boca. Pensava. Sentiu o arrepio da cachaça queimando. Pensava. Descendo pela guelra abaixo. Parou um pouco. De pensar? O peito quente. Boa lembrança a da cachaça. (p. 93)
A repetição do verbo “pensar” marca a continuidade da ação que se alterna com uma outra: a de beber a cachaça. Em dado momento, o narrador constata: “Parou um pouco”. A pergunta ambígua “De pensar?” é seguida por duas frases nominais: “O peito quente. Boa lembrança a da cachaça”. Fica, então, em aberto qual das ações teve fim: a de pensar ou a de beber. O entrecorte de tais construções assinala cada ato de Amadeu, cada etapa de seu ritual silencioso de reflexão.
No trecho seguinte, há mais uma enumeração em frase única, dessa vez fora da temática “relato de viagem”. Trata-se do encontro da personagem Maria com o tenente Fonseca:
A porta aberta, parou. Não queria entrar, queria sentir ainda uma vez, como prova para si mesma, a dor da ansiedade. Os olhos percorreram vagarosamente toda a sala: o canapé de palhinha coberto por um pelego felpudo, o assoalho seco remendado com pedaços de lata, as paredes descascadas e sujas, um retrato ridículo de Presidente da República, o arquivo, a bilha dágua, o fio comprido da lâmpada nua. Aquelas pobres coisas ganhavam vida, nasciam do silêncio e das trevas. Por último os olhos pararam no seu destino. A túnica no encosto da cadeira. Na mesa, debruçado, o tenente. (p. 203-4)
Tensa, ela procura estudar o cenário, apreendendo todos os detalhes. O narrador vai descrevendo tudo o que os olhos de Maria podem atingir: o canapé, o assoalho, as paredes, um retrato, a bilha e o fio da lâmpada nua, e a acumulação dessas imagens vai desenhando o cenário da ação. As frases entrecortadas que seguem marcam a velocidade dos acontecimentos, auxiliadas pela presença de frases nominais. Para Monteiro (1991: 60):
Às vezes, em meio à seqüência de frases verbais que sustentam o fio narrativo, dá-se o encaixe de lances descritivos formulados em construções nominais, como se o ambiente passasse a influir na própria ação. Esta técnica aguça a capacidade imaginativa, levando o leitor a visualizar nitidamente os objetos descritos.
Assim, ocorre no trecho analisado, em que as frases nominais aproximam mais o ambiente do leitor, intimando-o a adentrar e apreender todo o seu drama.
Célere também é o segmento em que Maria, sob a tensão da aventura extraconjugal que se prepara para vivenciar, caminha em direção à delegacia:
A rua, a noite, o mar. O céu aberto, pontilhado de estrelas. Respirou fundo o ar salino, a noite estrelada. A dor no peito amansava, podia ver o mar e o céu. O mar violento, crescendo em ondas, vindo lamber as castanheiras, recolhendo-se. As estrelas piscavam úmidas. Enxugou um resto de lágrima no canto dos olhos. (p.199)
O assidentismo predominante nesse trecho parece querer imitar o pontilhismo do céu supramencionado. As frases nominais não só ambientam a ação, mas a influenciam. Desse modo, ao respirar aquela atmosfera, a personagem sente sua dor amainar.
Ocorre, ainda, o fenômeno da sinestesia, um tipo de metáfora, também conhecida como metáfora sinestésica, que consiste na combinação de sentidos, em que características de um são emprestadas a outro. Se pensarmos em termos de sensações, o verbo “respirar” está ligado ao olfato e o adjetivo “salino” ao paladar. Assim, o encontro dessas duas impressões aproxima ainda mais Maria da natureza, a violência do mar entra em sintonia com seu espírito.
Tal sintonia leva a outra construção metafórica: os olhos de Maria são identificados com as estrelas, provavelmente por seu brilho ou pela posição no céu, de onde vem a chuva, o que a permite chorar como os olhos de Maria. Martins (2000: 102) salienta que: “as metáforas têm o poder de apresentar as idéias concreta e sinteticamente, podendo não só intensificar como dissimular os fatos”, daí nosso interesse pelo fenômeno na análise da extensão frasal, pois a metáfora contribui para sintetizar expressivamente as idéias.
Nesse bloco, a predominância de frases curtas impôs um ritmo acelerado à história. Também observamos seu emprego como recurso para fortalecer impressões com o impacto da brevidade, principalmente quando em contraste com frases mais longas.
Como pudemos constatar, a dimensão da frase implicou maior ou menor velocidade narrativa, conforme a consistência de seu emprego. O comprimento da frase também esteve intimamente relacionado à vida afetiva das personagens. Estados agudos, com fortes emoções como ansiedade, medo, tensão, foram retratados com frases entrecortadas, ao passo que sentimentos mais duráveis, como a angústia, encarnaram-se em frases compridas. Daí mesmo no bloco programado para ser mais lento, haver trechos com frases curtas e no veloz, longas.
Inúmeros recursos edificaram a extensão frasal, como a subordinação enfadonha, as frases parentéticas e a enumeração. Seus efeitos, no entanto, não se restringiram a torná-la mais arrastada. Notamos também uma maior necessidade de detalhar aspectos do cenário, das lembranças ou emoções das personagens.
A repetição de termos e de estruturas funcionou muitas vezes como meio de ênfase, especificação ou coesão num floreamento do estilo.
Já as seqüências de frases breves, também nomeadas entrecortadas, apareceram sob várias formas. A nominal acentua o laconismo das sentenças, abdicando do verbo. Ela foi encontrada muito freqüentemente no tocante às descrições. Provérbios também foram utilizados várias vezes, quando as personagens em seus fluxos de consciência queriam valer-se de um salvo-conduto para suas ações. Assim, recorriam a essas sentenças concisas, súmulas de vida que manifestam a voz da tradição.
Figuras como metáforas e metonímias contribuíram para sintetizar expressivamente idéias no texto.
O estilo da obra interferiu, outrossim, em sua dinâmica. O autor optou pela inclusão esporádica de um narrador que se valia da linguagem usual nas crônicas de viagem do século XVI, o que se traduz por períodos extensos na tentativa de abarcar o maior número de informações possível.
Existiu, portanto, uma motivação estilística para o emprego do volume frasal, proporcionando nesta obra efeitos expressivos que colaboram para a nossa imersão no drama das personagens.
Seria leviano afirmar que cada centímetro de frase foi pensado para harmonizar-se com o conteúdo, pois sabemos que nem tudo pode ser previsto e intencionado pelo escritor. A análise do corpus, todavia, autoriza-nos a falar numa conformidade entre o planejamento e o efeito final.
O estudo da estética de um texto é um trabalho riquíssimo que nos permite uma visão ampla da língua que, a serviço da literatura, despe-se muitas vezes das impossibilidades normativas para proporcionar-nos uma leitura frutífera.
Em sala de aula, cabe ao professor propiciar o desenvolvimento desse outro olhar sobre o texto. O aluno, acostumado a ler o livro para somente se inteirar dos principais fatos da narrativa, deixa escapar a excelência dos recursos que ajudam a contá-la. Ele aprende na escola que deve evitar a subordinação enfadonha e empregar em seu lugar orações reduzidas para um estilo mais enxuto, evitando um texto cansativo que faça o leitor (e por vezes o próprio autor) se perder em sua atividade. Em se tratando de literatura, no entanto, às vezes, tudo o que o autor deseja é que o leitor se perca em sua prosa labiríntica, que vivencie o cansaço da personagem ou mergulhe em pensamentos incompletos da loucura ou de um sonho qualquer. É preciso deixar uma abertura para que eles possam ter acesso a essas duas realidades. Daí a importância desses estudos estilísticos.
Referências Bibliográficas
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Contribuição à estilística portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.
CRESSOT, Marcel. O estilo e suas técnicas. Lisboa: Edições Setenta, 1980.
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
DOURADO, Autran. A barca dos homens. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1975.
––––––. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. 3ª ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. São Paulo: Ática, 1991.
MURRY, Middleton. “O problema central do estilo”. In: O problema do estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1968.
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