A Conversão de Formas
e seu Tratamento Lingüístico
Edina Regina P. Panichi (UEL)
É bem conhecido o processo criativo do memorialista Pedro Nava, explorado e analisado por nós em vários estudos publicados. De modo geral, o autor construía fichas numeradas com anotações que, posteriormente, eram agrupadas em súmulas que ele denominada boneco e só depois passava à elaboração dos originais. Uma passagem constante da obra Beira-Mar/Memórias 4, no entanto, nos chamou a atenção. Aí, a súmula, ou boneco, que formalizava a segunda fase de sua escritura, não é construída com base nas fichas previamente elaboradas, embora estas apareçam registradas com os números 3, 18, 26, 25, 6. Não obstante, algumas dessas fichas não foram arquivadas e outras não foram utilizadas, embora constem dos arquivos do autor. Então nos ocorre a pergunta. O porquê dessa atitude que foge aos moldes seguidos pelo memorialista? A resposta parece ser esta. A passagem registra uma grande injustiça sofrida por Pedro Nava quando aluno do último ano da Faculdade de Medicina. Tal fato marcou para sempre a vida do então estudante e foi responsável pela sua descrença nos homens, vida afora, como revela o próprio autor:
Meu ano de doutorando, como numa preparação para a vida profissional, trouxe-me grandes alegrias e grandes mágoas. Aquelas criadas por mim, para mim, estas, pelo próximo sempre ou quase sempre adversário. Ah! os homens são naturalmente inimigos uns dos outros. (B.M., p. 378)
Pedro Nava, em determinado momento de sua escrita, depara-se com lembranças que parecem não oferecer resistência, pois os fatos são trazidos à mente sem necessidade de pesquisa e da busca que muitas vezes ele tem que efetuar. Pode-se perceber que o autor parte de uma simples anotação para focalizar um episódio completo. Ao lado dessa concisão das idéias convivem, harmonicamente, um intenso trabalho de adição de elementos, uma ampliação permanente e a evocação de imagens distantes que alongam o texto em construção. Em Vigotski (1996: 108) tem-se: “Cada pensamento tende a relacionar alguma coisa com outra, a estabelecer uma relação entre as coisas. Cada pensamento se move, amadurece e se desenvolve, desempenha uma função, soluciona um problema”. O que é determinante é a capacidade de construir registros que funcionem no interior desses movimentos, uma vez que são fundamentais para melhorar a leitura da realidade.
Boneco elaborado por Pedro Nava para a construção da passagem em análise
O episódio que desencadeou uma situação desagradável entre o futuro médico e o Diretor da Faculdade de Medicina e seu professor, Hugo Furquim Werneck, teve origem numa discórdia entre grupos de estudantes rivais que chegaram às vias de fato numa tentativa de homicídio nos domínios da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Tal acontecimento foi camuflado por Pedro Nava com o intuito de proteger os colegas de uma inevitável punição. O professor, ao descobrir a manobra, tomou uma atitude drástica. Para descrever a passagem, o memorialista elabora o boneco com os seguintes dados:
6º ano 1927 Fim do caso do Werneck Eu a evitá-lo – deixei de ir à missa e that did it a Maximiliana – meu respeito com as irmãs - desviava no corredor quartos doentes sala de espera Raio X Sala curativos Sala operação corredor - encontro ele saindo da enfermaria e veio pelo corredor – 3 - eu já tinha ultrapassado os abrigos e tínhamos de passar um pelo outro – o encontro – jogo tudo pelo tudo - olhei como a desconhecido seu ar |
O texto publicado faz ver a expansão das idéias:
Depois do meu incidente com o Werneck passei a evitá-lo. Se o via vir pelo corredor grande da Santa Casa apressava o passo e batia pique em qualquer dos quartos construídos para doentes particulares, na sala de espera, na sala de curativos, na sala de cirurgia, no Serviço de Raios X, na copa. Assim evitava o encontro e o que com ele pudesse chegar de aborrecimentos. Mas houve um dia em que foi impossível me esconder. Eu já tinha ultrapassado todos aqueles refúgios quando o Diretor surgiu saindo de sua enfermaria e vindo em direção à Portaria do Hospital. Retroceder? Seria ridículo e perceptível. Segui em frente. Disfarçar, fingir que não via? O caminho de ambos não dava largura para tanto. Cumprimentar e arriscar a não ter resposta? Também não. Foi aí que perdido por um, perdido por mil, resolvi arriscar e fitar o bastante rápido para mostrar que estava vendo mas sem demora para não ter ar de desafio ou impertinência. Assim fiz, o espaço de uns segundos e guardei o que via como a incisão precisa de camafeu. (B.M., 378)
O autor consegue também, através da caricatura do seu professor, construir uma tática e uma técnica para abordagem da realidade quando converte cenas com as quais se defrontou em ações concretas que, naquele momento, considera capazes de provocar a emoção que pretende transferir para o seu texto final. O transporte para o texto representa a habilidade de converter essa forma e dar-lhe tratamento lingüístico. Então há uma memória preservada que um dia se transforma num desenho. Tal fato vai ao encontro do que afirma Duarte Jr. (1998:31): “A experiência, que ocorre a nível do ‘vivido’, é simbolizada e armazenada pelo homem por meio da linguagem”. As características marcantes do professor são enumeradas a partir da caricatura, aliada às lembranças, como se pode perceber nas intervenções posteriores. A princípio são registrados os seguintes adjetivos:
Olhar a um tempo inquiridor, desafiante e sorrateiro. |
Em seguida, aparecem como substitutos de inquiridor e desafiante, os adjetivos investigante e provocador. Eis o texto:
Werneck vinha com seu passo de sempre, a volumosa pasta sob o braço esquerdo, o chapéu balançado pela direita. Vestia escuro mas calçava suas botinas de pelica, avermelhadas e polidas como espelhos. Sua cabeça estava, como de hábito, ligeiramente inclinada para baixo e para sua direita. Por cima dos óculos ele me olhava com um jeitão a um tempo curioso, investigante, provocador e sorrateiro. (B.M., p. 378)
A narrativa continua, ainda baseada nas anotações iniciais.
Uma das maneiras de evitar encontros com o Diretor era não ir à missa dominical na Capela da Santa Casa. Deixei de freqüentá-la e that did it a meu respeito com as Irmãs e com nosso capelão – um padravaz José, do Colégio Arnaldo. As reclamações da Superiora tornaram-se impertinentes – quanto às minhas horas de sair e chegar. Um dia que eu estava no chuveiro do corredor e cantava sob a espadana – ela esmurrou a porta. Repetiu no dia seguinte. Fui procurá-la e disse-lhe com a maior doçura: Irmã Maximiliana, quero avisá-la de que quando a senhora bater no banheiro trancado, para não fazer esperar a nossa Superiora, abrirei imediatamente a porta. Como estiver. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Irmã... (B.M., pp.378-379)
Outros detalhes são registrados para darem suporte à elaboração do texto:
Nova tentativa do Lucas
Meu queixo duro 18 26 53
Chamado no corredor pelo Julio para um
particular – 6 A sala da secretaria que fixei
para sempre
Despedido – J – Quando você quiser me avise para
entrar seu substituto
Resposta a Pedro II
Quero já.
Rua Aimorés Eu - Pode dormir hoje à noite porque
anexo eu já saí. Peço ½ hora para
arrumar minha mala.
O texto resultante é o que segue:
Essa guerrinha com as Servas do Espírito Santo já tinha seus vinte dias e três passados do meu encontro com o Diretor, quando o Lucas Machado veio procurar-me outra vez, no Libânio. Esse excelente amigo via a situação em que eu estava me atolando e queria a todo custo evitar o pior. Tornou a me dizer que eu voltasse ao cafezinho do gabinete do Werneck. Só comparecer, entrar, sair e com isto ele achava que eu estaria desculpado de tudo. Foi quando respondi de queixo duro que não e que não podia pedir desculpas de ter razão. (...) No último dia das férias, último de março, fui chamado a um particular por Júlio Soares, Diretor da Santa Casa. Entramos numa espécie de Secretaria pegada ao quarto dos internos. Havia ali uma penumbra agradável e nunca mais me esqueci da espécie de carteira alta em que nos encostamos eu e o Júlio, para conversar. Uma oleografia do Sagrado Coração, enfeitada com flores de papel de seda, olhava da parede. Fazia-lhe pendant um retrato cheio das suíças, também floridas, do Coronel Germano. Ele foi direto ao assunto e ali ouvi que o Werneck exigia minha demissão. Tenho a impressão que não mudei de cor como não mudei de voz para perguntar – por quê? Parece que você se incompatibilizou com ele. Fiz outra pergunta – mas quem é o Diretor do Hospital? Como não tivesse resposta guardei silêncio. Logo o Júlio explicou que não havia pressa, queria apenas que eu avisasse quando fosse sair para entrar em plantão e serviço o meu substituto. Quando eu quisesse... Respondi com as palavras do nosso Imperador: Quero já! Peço meia hora para arrumar meus livros e minha mala. Essa noite meu substituto já pode dormir no hospital. Fui ao São Lucas dar contas de tudo ao Figueró, voltei ao quarto e informei ao Grossi do que se passava. Juntei meus tarecos e fui campear um táxi para os lados do Arnaldo. Quando voltei, a Irmã Magdalena choramingando passou-me o envelope com o ordenado do mês. Fui para Aimorés, relatei tudo a uma Dona Diva solidária e sem comentários e bati-me para o Raul Soares a procurar o Sá Pires para irmos espairecer com o Fábio, em Sabará. (B.M., p. 379)
O fecho do episódio foi construído com base nas seguintes anotações:
Eu tinha largado a higiene por
causa de seu conselho.
E ele me pôs na rua
4 meses para acabar o curso ele
pensa em me expulsar (Rivadavia)
Heloisa me contou em (v. sua ficha)
início dos 60
O texto publicado assim se mostra:
Refletindo hoje, cinqüenta e um anos depois destas coisas terem acontecido, acho que minha obrigatória solidariedade com o colega do tiro levou-me a praticar ato de sabotagem contra a autoridade do Chefe do Serviço, do Professor e do Diretor da Faculdade que se incarnavam em Hugo Werneck. Eu tinha toda a culpa até esse ponto dos fatos. Merecia ser enquadrado no inquérito que ia se abrir e ser castigado disciplinarmente, de acordo com os estatutos da escola. Mas o nosso arrebatado Diretor ultrapassou, excedeu, extrapolou as lindes de sua autoridade, desfeiteando-me em público e a partir daí a razão passou para o meu lado. E mais leve de culpas se tornou o prato da balança que me tocava – quando o do Diretor se carregou da demissão que não podia me cominar. Primeiro, porque não estava em sua alçada; segundo, porque eu deixara a Higiene instigado por ele e engambelado pela compensação do internato. Vendo minha confiança enganada e minha AMIZADE ludribriada – minha decepção foi profunda. Mais terrível foi o de que escapei. Houve o projeto de minha expulsão da Faculdade e se ela se concretizasse, a lei me vedava matrícula em outros institutos de ensino superior do país. Quem impediu isto foi Rivadávia Versiani Murta de Gusmão a quem o Werneck deu parte de seu projeto. O nosso Riva dissera-lhe singelamente que ele não podia fazer isto. Primeiro porque não havia motivo. Segundo porque era simplesmente iníquo – aniquilar-se e ao esforço que eu estava fazendo e exigindo de minha Mãe, para chegar ao fim do curso. O homem trastejou um pouco mas acabou atendendo às ponderações do seu assistente. Não se pense que eu estou trazendo o testemunho de colega morto (Riva) e que assim não há prova de ser verdade o que conto. É verdade e invoco para aboná-la os nomes de meus pais que abro como Bíblia e sobre a qual ponho minha mão jurando. O que me espanta até hoje é a desproporção das partes dessa luta. Dum lado o parteiro glorioso, o mestre famoso, o professor cheio de força e o Diretor cheio de poder – homem prestigioso e persona gratíssima da cidade. Do outro lado, eu, inerme, estudante pelintra, “futurista” suspeito, sem eira nem beira ou ramo de figueira – que ia romper o último ano de seu suado, desajudado e perseguido curso, pendurando-se nas unhas de todos os agiotas de Belo Horizonte. (B.M., p. 380)
Quando se está diante de um produto considerado acabado, não se tem a exata dimensão do que significou produzi-lo. É nos bastidores da execução de uma obra que se podem encontrar recursos de natureza cognitiva e estímulos empregados para levar a cabo a tarefa. Um arquivo preservado é um estoque de formas que por si mesmas já são traduções preliminares da realidade. Em seu conjunto, essas formas traçam o mapa de raciocínio seguido pelo autor e revelam tudo o que é necessário para que se possa chegar ao resultado a ser enviado para publicação. A passagem analisada foge ao esquema criativo de Pedro Nava por não agrupar as fichas comumente usadas pelo autor para a construção do boneco. O assunto abordado parece justificar tal atitude, pois foi este um dos fatos mais significativos ocorridos na vida do autor. Não haveria, portanto, a necessidade da busca de elementos para compor a narrativa, pois estes permaneciam intactos em sua memória, mesmo nos detalhes mais esquecíveis. Meio século depois do acontecido, o fluxo das lembranças, emergiu como se o episódio fora recente. Nem por isto Pedro Nava deixou de imprimir uma sua outra marca característica ao caricaturar o mestre, corroborando o espírito visual que lhe dava uma imagem plástica das figuras e das cenas que via. Isto lhe possibilitava oferecer ao leitor uma descrição vívida e colorida dos tipos e dos acontecimentos, capacidade imagética que é um dos pontos altos de sua prosa, pois segundo Souza (2004:81): “O aspecto plástico e a minúcia nos detalhes fisionômicos dos biografados são a marca registrada da narrativa de Nava, voltada para o gesto cirúrgico de dissecar as personagens como se dissecasse um corpo”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Duarte Jr, João Francisco, , Fundamentos estéticos da educação, Campinas: Papiros, 1998.
Nava, Pedro. Beira-mar, Memórias 4, 9ª ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
Souza, Eneida Maria de. Pedro Nava, o risco da memória. Juiz de Fora: FUNALFA, 2004.
Vigotski, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem, Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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