A ORALIDADE EM LIMA BARRETO
Eliane da C. Pereira (UGB)
Introdução
Este trabalho, resultado parcial de pesquisa de Iniciação Científica intitulada “Oralidade na Literatura: uma abordagem Lingüística do gênero Literário Crônica”, realizada no Centro Universitário Geraldo Di Biasi, objetiva identificar as marcas de oralidade presentes na obra de Lima Barreto. Para isso, analisa-se a crônica Quereis encontrar marido? Aprendei!
Pressupostos Teóricos
O gênero crônica
Para melhor compreensão da análise realizada é necessário observar que a crônica nasceu no folhetim, como narrativas curtas, com a intenção de informar aos leitores acontecimentos diários ou semanais, conforme afirma Sá (2001). Sendo assim, esse gênero, segundo Assis (2002), “descreve acontecimentos rápidos, utilizando uma sintaxe simples através de uma linguagem que lembra as características da língua falada (...), relata um pequeno acontecimento do dia-a-dia”.
Dessa forma, o cronista cria o texto com as suas impressões, uma vez que ele é o próprio autor, fazendo uso de uma linguagem simples, do cotidiano, para facilitar a compreensão do leitor e provocar reflexões sobre vivências em comum. Por isso, independentemente de onde esteja, (jornal, revista ou livro), a crônica cumpre o seu papel, conseguindo levar seus leitores a enxergar o mundo de outra forma, compreender conflitos, além de lhes proporcionar muito prazer.
A crônica de Lima Barreto
Analisa-se, aqui, uma crônica de Lima Barreto, escritor de grande importância no período pré-modernista, o qual foi vítima de um forte preconceito social e racial, por ser pobre e mulato. De acordo com Assis (2004), é um antipurista, ou seja, é adepto de um estilo simples, indo contra a linguagem muito elaborada, distante do povo. Com isso, torna seu texto mais coloquial e acessível a um público maior.
Lima Barreto destaca-se por denunciar injustiças, desigualdades sociais e preconceitos presentes no país. Segundo Souza (2004:29), “apesar de tamanha produção, a recepção crítica de sua obras em vida foi marcada por uma instabilidade que registrava ora elogios entusiásticos, ora censura e detratação ou, o que é pior, o silêncio”. Contudo, nada disso impediu que alcançasse, mesmo após a morte, o que não obteve em vida, o reconhecimento.
Análise da crônica
Quereis encontrar marido? Aprendei!
Em Quereis encontrar marido? – Aprendei! o cronista mostra seu posicionamento diante de um pequeno livro que ensina suas leitoras como encontrar marido. Na crônica, numa miscelânea de análise e crítica, o narrador procura conduzir o leitor às suas impressões, por isso todo o texto foi escrito de forma a provocar certa interatividade, provocando o lirismo reflexivo no leitor, característica própria do gênero crônica.
A simulação da oralidade não se encontra na transcrição exata da fala ou no uso do discurso direto, mas num diálogo que se estabelece entre o cronista e o leitor. Já no primeiro parágrafo, a utilização do pronome demonstrativo desta, proporciona ao leitor uma aproximação do contexto da obra. Localiza o narrador-cronista e o leitor no mesmo espaço.
(1)
A livraria Schettino, desta cidade, há tempo, editou um pequeno opúsculo.
Outra marca que indica o dialogismo narrador-cronista/leitor é a presença de perguntas que, segundo Fávero (1995), “colocam-se como fator que concorre para o estabelecimento da coerência conversacional”. O narrador faz essas perguntas e, em seguida, responde-as. É como se ele inferisse as possíveis perguntas do leitor.
(2)
Sabem qual é este argumento? Pois fale ela.
(3)
Por acaso entre os nossos animais domésticos que crescem e se multiplicam, apesar das pestes, das facas das cozinheiras, do choupo, etc., há pastores e sacerdotes encarregados de realizar casamento? Não.
Ainda no trecho (3), o pronome possessivo nossos é um elemento que caracteriza a interação, pois permite que o leitor se inclua no posicionamento do narrador.
Em outro momento, o narrador deixa explícita sua interação com o leitor ao empregar o marcador conversacional vejam só. O cronista parece utilizar este recurso para chamar a atenção do leitor. Trata-se de um marcador conversacional que marca o início de um segmento tópico.
(4)
Vejam os senhores só como esta senhora está adiantada em matéria de previsão histórica e como a sua sociologia é muito obstétrica e ginecológica.
Ainda nesta fala percebe-se uma certa despreocupação com a estrutura, uma vez que a posição do só foi invertida (vejam só os senhores), como que por acaso e a pontuação não é feita de acordo com o que dita o padrão culto da língua.
Observa-se, também que Lima Barreto procura distanciar-se da que é explicitado no livro que analisa, pois, ao citar a autora do livro (que ocorre em todo o tempo), ele mantém um distanciamento da opinião dela. Algumas vezes, o narrador deixa isso bem claro, como se observa em (5):
(5)
Mas... Afirma, Dona Diana que “o homem” (o grifo é dela) tem medo do matrimônio.
Através das reticências, o narrador personagem realiza uma hesitação. Sua intenção para ganhar tempo para selecionar o vocábulo ideal, construindo o enunciado de maneira mais apropriada e, além disso, denotar que a opinião é dela. Esse recurso é extremamente comum na conversação cotidiana.
Diversas vezes, ele emprega um tom irônico, como se conversasse mesmo, face a face, com o leitor, como se observa em (6). Nesse mesmo trecho, faz uso de um intertexto, pois cita São Francisco Xavier e sua vontade de ir mais longe. É exatamente nesse intertexto, que lança mão de uma repetição, quer ir mais longe, mais longe. Na língua falada, esse tipo de repetição representa a forma superlativa.
(6)
A Senhora D’Alteno, ao acabar de fazer tão curiosa descoberta, não fica satisfeita. Parece que o seu gênio é como a atividade catequizadora de São Francisco Xavier; quer ir mais longe, mais longe. “Amplius”.
Talvez com receio de ser mal interpretado, Lima Barreto justifica, ao leitor, seu posicionamento. É como se preservasse sua face diante de um interlocutor para que o diálogo não fosse abalado.
(7)
Não sou inimigo das mulheres, mas quero que a lei seja respeitada, para sentir que ela me garante.
Mais adiante, se encontra uma digressão que, segundo Koch (2003:113) “é sentida como uma ‘quebra’ no fio discursivo”. A digressão, na verdade, configura-se como uma fuga temporária no curso discursivo, com uma posterior retomada a ele. Para que o sentido não seja perturbado por essa fuga, o cronista insere um marcador conversacional de esclarecimento: “é preciso saber”.
(8)
Quando era ministro Joaquim Murtinho __ da Fazenda_ é preciso saber __ uma moça requereu inscrever-se em concurso para o Tesouro.
Com toda digressão é carregada de sentido, essa é baseada no enunciado, ou seja, mantém relação com o tópico principal. O cronista usa a expressão destacada para justificar a sua “fuga”. Logo no parágrafo seguinte o tópico é retomado.
(9)
Nos telégrafos e correios, as moças tem acesso (...)
Outra marca de oralidade presente é o uso da expressão etc., que denota ainda existir algo mais na citação de itens.
(10)
(...) os serviços que competiam àqueles, as exigências de altura, talhe, etc.
Observa-se, ainda, no último parágrafo, uma certa informalidade do cronista ao fazer a citação sem dados completos.
(11)
Krafft-Ebbing diz, não sei onde, que a profissão da mulher é o casamento (...).
Conclusão
Esta análise comprova a existência da simulação da oralidade nas crônicas de Lima Barreto, que, além de usar uma linguagem simples, provoca o riso através do humor utilizado, atribuindo certa leveza ao texto. Mostra também que esse dialogismo oralidade/escrita faz parte desse gênero, não se tratando de um modismo de época. Por isso, apesar de ter sido escrita no início do século XX, a crônica analisada parece atual, com o estilo de uma conversa feita como que por acaso.
Referências Bibliográficas
ASSIS, Lúcia Maria de. Crônica – um caso de dialogismo fala/escrita. Taubaté, 2002. (Dissertação de Mestrado )
––––––. O antipurismo lingüístico em Lima Barreto. In: Mário Barreto Gramática e Léxico - Cadernos do CNLF.Vol. VIII, no. 13, 2004. p. 164-170.
FÁVERO, Leonor Lopes. O Tópico Discursivo. In: PRETI, Dino (org.). Análise de Textos Orais. 2a.ed. São Paulo: Humânitas, 1995.
KOCH, Ingedore Grunfield Villaça. A inter-ação pela linguagem. 8a.ed. São Paulo: Contexto, 2003.
SÁ, Jorge de. A crônica. 8a.ed. São Paulo: Ática, 2003.
SANTOS, Fábio Eliomar do Carmo Souza. Do subúrbio à Neofavela: Contravenções Literárias e Discurso em Lima Barreto e Paulo Lins. Niterói, 2004. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense).
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