PROCESSOS DE ORGANIZAÇÃO TEXTUALNA ESCRITA:
O DISCURSO DIRETO
NA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS INFANTIS

Maria Elias Soares (UFC)

Introdução

Este trabalho pretende discutir brevemente algumas questões relativas às estratégias utilizadas pela criança para codificar o discurso direto ao construir narrativas escritas. Após algumas considerações sobre a vinculação do discurso relatado com o desenvolvimento da narrativa, será feita uma análise, ainda que preliminar, focalizando narrativas escritas do conto “Chapeuzinho Vermelho”, recontadas por crianças de 1a à 4a série do Ensino Fundamental, de escolas de Fortaleza.

Papel do discurso relatado
no desenvolvimento do discurso narrativo

Com maior tradição na área de Literatura, o estudo do discurso relatado tem despertado interesse de lingüistas que procuram analisar as diferenças entre os três tipos de discurso (direto, indireto, indireto livre) e apresentar especificidades de diferentes línguas em relação a este tópico (Kartunnen, 1971; Mainguenou, 1981; Chafe, 1982; Coulmas, 1986; Li, 1986), ou discutir a idealização da fala citada (Marcuschi, 1995). Falta, entretanto, um trabalho sistemático sobre a utilização desses tipos de discursos na narrativa infantil, embora já se considerem as estratégias para instanciação do discurso relatado um fenômeno de desenvolvimento que deve ser interpretado (Hickman, 1985).

Considerando que o discurso direto predomina no relato de crianças, é necessário vincular sua emergência com o desenvolvimento da narrativa, visto que, como mostra Nelson (1986), através do discurso narrativo a criança pode explorar mundos possíveis, descentrar-se do tempo presente, abstrair características gerais de eventos, apoiando-se consequëntemente em suas representações mentais e não no contexto imediato. A construção e organização do texto narrativo não depende apenas de habilidades para expressar experiências baseadas em eventos estocados na memória ou cognitivamente construídos (Graesser, Golding e Long, 1991), mas também da capacidade de estabelecer uma perspectiva que determine níveis de interação no interior da narrativa: entre autor e ouvinte/leitor, entre narrador e narratário e entre os personagens. A decisão, portanto, de recorrer ao discurso direto para organizar a narrativa requer capacidde de descentramento e de operação com mais de um nível enunciativo.

Para construir o discurso direto, a criança deve ser capaz de lidar com a habilidade de destacar as palavras do contexto lingüístico e extralingüístico em que ocorreram, introduzi-las em novo contexto de modo a se estabelecer uma nova relação dialógica. A tentativa de reproduzir o contexto da enunciação em que se deu a fala do outro, como mostra Baktin (1977), faz com que a esta voz se misture à própria voz, num jogo de estranhamento e apropriação. Isto faz com que o discurso relatado se coloque como tema privilegiado para investigar o curso da aquisição da linguagem, notadamente as relações entre a criança e a escrita, em que se acentua o processo cognitivo de distanciamento e diferenciação, revelados com o desenvolvimento da capacidade de narrar.

Representação do discurso direto

O discurso direto é tradicionalmente apresentado como a representação literal da fala do outro (Leech e Short, 1981). Estudos específicos sobre o assunto (Coulmas, 1986; Marcuschi, s/d) mostram, porém, que no discurso direto o relator empresta sua voz ao falante original e diz (ou escreve) o que ele disse, adotando seu ponto de vista como se dele o fosse. Por outro lado, o discurso direto também não é o discurso do relator, pois este deixa persistir o discurso do falante relatado, cujo papel ele representa. Para representar a mudança do centro dêitico, da situação discursiva para o relato, é necessário que a fala reportada seja destacada do relato por uma ruptura sintática, indicada por verbo introdutor ou palavra subordinante, que expressa a força ilocucionária dos atos de fala que reproduzem. Destacam-se ainda as formas dêiticas do pronome, do advérbio e dos tempos verbais, contrastando com as formas do relato. No caso do texto escrito, essa ruptura é indicada por certas marcas de pontuação: dois pontos, aspas ou travessão.

Muitas questões podem ser apontadas para procurar entender a emergência das formas de representação do discurso direto nas narrativas infantis. Cabe investigar o modo como procede a criança para traduzir o conteúdo proposicional e a força ilocucionária dos atos de fala que ela relata; o papel que ela atribui ao verbo dicendi; a relação entre este e a pontuação no diálogo e de que modo a criança opera a mudança de perspectiva na reprodução de fala dos personagens.

Dados e resultados

Os dados aqui analisados pertencem a um corpus de 135 textos escritos por alunos das três primeiras séries do 1o grau, de escolas de classe média e baixa de Fortaleza. Os textos são reproduções do conto “Chapeuzinho Vermelho”, obtidas em contexto escolar, em que as crianças usavam apenas o seu conhecimento anterior a respeito da história.

Procurar-se-á, nesta breve análise, investigar como a criança procede para marcar em seu texto escrito as diferentes perspectivas, de narrador e de personagem, estabelecendo a transição entre o relato e o discurso direto e marcando a força ilocucionária do ato de fala que introduz.

Dado o nível de escolaridade dos sujeitos, grande parte das ocorrências de discurso direto nos textos analisados se dá sem as marcas da ruptura sintática ou gráfico-espacial. As crianças usaram uma estratégia que convencionamos denominar de transição direta, uma vez que não há verbo dicendi, pontuação ou uso de espaço na folha de papel, para indicar a mudança de perspectiva. Esta é indicada apenas pelas formas pronominais dêiticas e pela flexão verbal, como se observa em (1) e (2).

(1) Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho. Estou brincando mamãe e ela mandou ela levar um doce para vovozinha. Cuidado minha filha esta bem mamãe e ela mandou ela levar um doce para vovozinha (C1m006, 7a).

(2) O lobo pegou o atalho para chegar primeiro e Chapeuzinho Vermelho pa papa pa quem é eu Chapeuzinho Vermelho pode entrar (C2B005, 9a).

Não se pode dizer que a criança não marcou a heterogeneidade em seu discurso, já que a mudança de pessoa e o uso do vocativo em (1), a onomatopéia seguida de interrogativa e da frase de identificação em (2) tipificam o diálogo. Entretanto, não se percebe nesses textos uma articulação coesiva ou qualquer elaboração de estrutura narrativa. Igualmente não há formas que qualifiquem o ato de fala do personagem ou explicitem sua perspectiva ou sua reação diante de um evento específico.

Crianças de 7 a 9 anos, como os autores dos textos da amostra, já dominam a habilidade de construir narrativas orais (Cf. Perroni, 1983; Rojo, 1989; Soares, 1991) cujas condições de produção diferem completamente das condições exigidas para a produção do texto escrito. Como comentamos em Soares (1991), com o letramento, a criança aprende a fazer uso da língua de uma forma em muitos aspectos diferente da familiar, do mesmo modo que adquire outras habilidades através do material lingüístico de que já dispõe. Assim, o letramento e não apenas a escolaridade, vai atuar fortemente nesse processo. Distinguimos letramento de escolaridade porque não parece ser apenas esta que condiciona as diferenças, mas sim determinantes de ordem sócio-econômica, conforme demonstrou Moreira (s/d) usando este mesmo corpus.

A freqüência do uso de transição direta mostra que a diferença entre a 1a e 4a série na classe baixa é mínima: varia de 64,36% para 54,91%, enquanto na classe média a variação vai de 61,59%, na 1a série, para 21,95%, na 4a série.

Se considerarmos a forma como é usado o verbo dicendi que, juntamente com fórmulas adverbiais, qualificam a força ilocucionária do discurso relatado, obteremos resultados semelhantes. Entendendo como verbo dicendi todo aquele que reporta palavras de um sujeito falante, observamos no corpus uma variedade de onze verbos, marcando desde a expressão do ato ilocucionário declarativo por meio do uso do verbo “dizer” até a descrição de estados mentais, como “pensar”. Os exemplos (3), (4), (5) e (6) ilustram este ponto:

(3) ...e aí encontrou o lobo mau ele disse Chapeuzinho Vermelho vamos fazer uma aposta Você vai para lá e eu vou para cá (C1b001, 8a).

(4)...e o lobo mau mandou entre minha netinha (C2b003,10a ).

(5)...Chapeuzinho Vermelho correu desesperada e gritou. socorro, socorro, socorro (C3m 003,8a ).

(6)...mas o lobo chegou primeiro e pensou: não eu vou bater na porta (C4b 012,10a ).

A variedade do verbo dicendi ilustra a habilidade de codificar a força ilocucionária dos atos descritos. Em (3) a criança se limita ao uso do verbo dizer, que é neutro e não expressa a força de desafio e simulação presente no convite do lobo. Em (4), (5) e (6), entretanto, já se percebe uma qualificação dessa força, que não é só de relatar a fala do outro, mas indicar as nuances em que esta fala se envolve: uma ordem em (4), um apelo em (5), o planejamento da ação em (6).

Comparando-se a frequência desses verbos por classe social e nível de escolaridade, constatamos que as crianças da classe baixa marcam o verbo dizer em 87% das ocorrências, na 1a série, baixando para 57% na 4a série. Já as crianças de classe média, que preferiam esse verbo em 71% dos diálogos introduzidos por verbo na 1a série, passaram a 32% na 4a série, variando gradativamente o leque de verbos utilizados.

Considerações Finais

Esta breve análise apenas aponta algumas questões que serão desenvolvidas num estudo mais amplo. Parece claro, entretanto, que a vinculação entre o estudo do discurso direto, o desenvolvimento da narrativa e a aquisição da modalidade escrita revela-se frutífero. É necessário aprofundar a discussão sobre a natureza das dificuldades apresentadas na construção do discurso direto, relacionado-as com a habilidade de estabelecer a perspectiva ou com as carcterísticas da modalidade escrita adquiridas com o letramento.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.

CHAFE, W. Integration and involvement in speaking, writing and oral literature. In: TANNEN, D. (ed.) Spoken and written language: exploring orality and literacy. Norwood, NJ: Ablex, 1982.

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GRAESSER, A., GOLDING, J. M. e LONG, D. L. Narrative representation and comprehension. In: BARR, R. et al. (eds.) Handbook of reading research - vol. II. New York: Longman, 1991.

HICKMAN, M.(1985) Metapragmatics in child language. In: MERTZ. E. e PARMENTER. R. (org.) Semiotic mediation: sociocultural and psychological perspectives. London: Academic Press, [s/d.?].

KARTUNNEN, L. Implicative verbs. Language 47, 1971

LEECH, G. N. e SHORT, M. H. Style in fiction. A linguistic introduction to English fictional prose. London: Longman, 1981.

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MOREIRA, N. da C. R. Um estudo sobre a construcão de histórias por criancas de séries iniciais. Fortaleza: UFC, [s/d.], mimeo.

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PERRONI, M. C. Desenvolvimento do discurso narrativo.Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 1983.

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