TEXTOS DE IMPRENSA: PROBLEMAS NA SUA EDIÇÃO
Maria da Conceição Reis Teixeira (UNEB/FAAD/SALT)
DA OBRA FOLHETINESCA E SUA RELEVÂNCIA
As principais preocupações de João Gumes eram contribuir para combater o analfabetismo que reinava no Brasil, principalmente nas províncias mais distantes dos grandes centros urbanos, porque, segundo o escritor, somente através do conhecimento adquirido nos livros as pessoas poderiam lutar e conquistar a libertação de todos os tipos de opressão e injustiça social. Almejava ajudar para que houvesse progresso social e cultural na região. E, como bom cidadão, é natural que desejasse compartilhar seu conhecimento com os demais. Talvez essas preocupações o tenham motivado, mesmo conhecendo suas limitações enquanto escritor, a criar um jornal e publicar capítulo a capítulo os seus romances, inscrevendo seu nome no rol daqueles pioneiros na produção e divulgação de textos desse gênero. As suas obras Pelo Sertão, Vida Campestre e O Sampauleiro são os primeiros exemplos de romance folhetinesco na região sudoeste do estado da Bahia.
O jornal criado por Gumes desempenhou um papel central não apenas em Caetité, mas em toda a província, pois contava com a participação de sócios de várias cidades do interior. Facultou a constituição de um sistema complexo de intercâmbio de idéias e produções literárias, bem como a consolidação de uma cultura com características próprias.
A sua produção literária e não-literária folhetinesca é uma fonte de informações histórica, literária, lingüística e cultural sobre a região que fica praticamente impossível, ao pesquisador de várias áreas do saber, realizar estudo sobre o Alto Sertão Baiano sem tomá-la como uma das principais fontes de pesquisa.
Outro aspecto importante que ainda deve ser observado a respeito dos textos do autor é a riqueza vocabular. Uma leitura, mesmo que superficial, da sua produção literária revela-nos que os textos de temática regional, como O Sampauleiro, Os Analphabetos, Pelo Sertão, Vida Campestre e Sorte Grande, em que são documentados os hábitos e os costumes da região sudoeste do estado da Bahia, apresentam um vocabulário regional riquíssimo. Estes vocábulos são, em sua maioria, nomes de objetos, animais, utensílios, atividades, ações, qualidades e comportamentos e/ou atitudes, utilizados intencionalmente para documentar e, ao mesmo tempo, revitalizar o seu uso na região. Isso porque, conforme se pode depreender da leitura de alguns textos, acreditava que eram usados apenas na sua região e estavam entrando em desuso na língua corrente de seus contemporâneos.
DO RESGATE DE SUA OBRA
Sabemos que a necessidade de resgatar o patrimônio cultural de um povo não é uma preocupação da modernidade. Sua origem remonta aos gregos, aproximadamente entre os anos de 322 a 146 a.C., quando deram início à atividade de resgatar, de preservar e de divulgar o saber produzido pelos eruditos daquela época. Pode-se dizer que a Edição Crítica de Textos é uma das atividades mais antigas da filologia. Apropriando-se das palavras de Erich Auerbach (1972: 11), “é a atividade mais nobre, a mais clássica e a mais autêntica da filologia, que se ocupa da reconstrução do texto, com a finalidade de restabelecê-lo de acordo com a última vontade do autor”. Segundo Heinrich Lausberg, (1981: 22) a filologia tem de cumprir com os textos: “a tarefa tripla da crítica textual, interpretação de textos e a integração superior dos textos tanto na história literária como na fenomenologia literária”.
Todo esse manancial histórico, literário e lingüístico encontrava-se disperso e na eminência de desaparecer por completo. Fazia-se necessário reuni-lo, preservá-lo em caráter permanente e colocá-lo ao alcance de pesquisadores e da comunidade de modo geral. O resgate da produção literária e jornalística de João Gumes fazia-se necessário em Caetité porque reunir e editar a obra de um escritor, cuja produção é expressiva, mas que, infelizmente, encontrava-se sob uma camada espessa de poeira e não recebera o devido valor, é buscar integrá-la na história e na fenomenologia literária, cumprindo com um dos deveres que a filologia tem com o patrimônio espiritual produzido por uma comunidade.
O resgate da memória cultural desse período da história de Caetité permite não só reconstruir a vida cultural local, mas, principalmente, contribuir para a (re)escritura de um capítulo da historiografia literária baiana, inserindo o nome de um escritor com uma produção expressiva e significativa como a do caetiteense João Antônio dos Santos Gumes.
DOS PROBLEMAS
PARA A EDIÇÃO DA OBRA FOLHETINESCA
A preparação de edições da obra de João Gumes, aplicando-lhe os procedimentos metodológicos da Crítica Textual Moderna, requer o cumprimento das seguintes etapas operacionais norteadoras: recensio, levantamento de todas as versões; collatio, exame atento das relações de parentesco entre as versões recenseadas, para a eliminação das que forem cópias, sem valor autônomo; eliminatio codicum descriptorum, eliminação das versões que sejam meramente cópias; classificação estemática da tradição, estabelecimento da cronologia das versões autônomas, selecionadas após a collatio, de forma que evidencie sua genealogia; emendatio, emenda de determinadas passagens do texto, corrigindo os erros e os contra-sensos; apresentação do texto crítico, última etapa da preparação de uma edição. O editor oferece ao público o texto criticamente estabelecido, acompanhado do aparato crítico, com indicação preliminar das fontes, genealogia do texto, tradição, notas, comentários, glossário, índice e referências.
O levantamento dos textos e suas versões e do material pré e para-textual da obra com vistas à composição do seu dossiê mostrou-nos ser uma tarefa não muito fácil de ser executada, devido à sua dispersão e da falta de informações que pudessem levar a localizá-la. Parece-nos que não houve uma preocupação por parte dos familiares e amigos e/ou contemporâneos em conservar a produção literária de Gumes, contrariando o desejo do escritor. O contato com os documentos do autor revela-nos que ele tinha um cuidado especial com os seus textos. Os manuscritos, por exemplo, antes mesmo de começar a escrever, os cadernos de papel almaço eram organizados e costurados, compondo um livro. Da mesma forma procedia com os folhetins. Estes, além de serem organizados cronologicamente, recebiam uma encadernação em capa dura, revelando, portanto, a preocupação do escritor em preservar a sua obra para que as gerações futuras pudessem ter acesso àquele patrimônio espiritual que tinha produzido.
No resgate da obra do caetiteense, a recensio de todos os textos realmente tem se mostrado, até o momento, um problema insolúvel, dado à impossibilidade de localizar as obras Pelo Sertão, Vida campestre, Sorte Grande e A vida doméstica e algumas de suas crônicas publicadas no jornal A Penna.
Do romance Pelo Sertão, que descreve os costumes da zona alto-sertaneja, localizaram-se apenas o primeiro e o último capítulos que circularam em 4 de abril de 1913 e em 27 de março de 1914, respectivamente.
Do romance Vida Campestre localizaram-se o primeiro e o último capítulos que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917, respectivamente, e os folhetins correspondentes aos capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, dos quais, infelizmente, não foi possível identificar a data de publicação, devido ao estado de conservação dos jornais, faltando justamente a parte superior das folhas, local onde se encontra a datação. Sobre o seu conteúdo pouco ou quase nada pode se dizer porque os capítulos localizados oferecem apenas algumas pistas. Entretanto, dois fatos autorizam a inferir que se trata dos costumes do homem sertanejo e do folclore da região. O primeiro é que, conforme Gumes, no segundo volume d'O Sampauleiro, ao falar das "queimadas", diz: "Na “Vida Campestre”, nosso trabalho ainda infelizmente inédito, já fizemos uma demorada descrição desses incêndios." O segundo é que a contracapa do mesmo romance traz: "VIDA CAMPESTRE – (Interessante romance de folklorismo desta zona). Inédito".
Viu-se que no capítulo X, às linhas 103-110, e na contracapa do romance O Sampauleiro, Gumes faz referência a sua obra Vida Campestre como sendo um texto ainda inédito. Interessante observar que, em 1929, quando a obra que traz essas informações foi publicada, Vida Campestre já havia circulado em folhetim, como atestam os exemplares do A Penna que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917. Ao chamá-la de "obra inédita" Gumes poderia ter se equivocado ou, simplesmente, não considerava a veiculação de um texto em periódico como uma forma de publicação que o tornaria um édito.
As obras Sorte Grande e A vida doméstica também não foram localizadas. Só sabemos da sua existência porque aparecem, na contracapa do romance O Sampauleiro, no rol das "OBRAS DO MESMO AUTOR", com a indicação de serem comédias. Pelas mesmas razões que expusemos anteriormente, não sabemos se as duas comédias de fato foram escritas e qual o assunto abordado.
A Enciclopédia de literatura brasileira (COUTINHO; SOUSA, 2001) faz referência à segunda obra com o título A intriga doméstica como uma das produções de Gumes. Quanto à sua existência parece-nos evidente, caso contrário, não teria sido citada por um crítico da estirpe de Afrânio Coutinho. Acreditamos que Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa só poderiam citá-la se tivessem tido contato com a referida obra, seja através dos folhetins do A Penna seja através do livro. Mas onde localizá-la? Estas e outras dúvidas ainda não foram solucionadas.
Outro tão grave, ou até mais, a depender do ponto de vista com o qual se encare a questão, é a impossibilidade de seu manuseio. O material recenseado também apresenta problemas sérios de conservação. A leitura de alguns exemplares do jornal A Penna, conforme atesta a figura abaixo, é impossível, devido às péssimas condições físicas do suporte. Muitos exemplares estão total ou parcialmente destruídos e os que aparentemente se encontram em boas condições de conservação não podem ser manuseados em decorrência do avançado estado de desidratação e do alto nível de acidez; o papel rompe-se ao simples leve toque da mão ao serem abertos.
A situação é tão grave que quase não nos restam alternativa. Se abrirmos os jornais para fazermos microfilmagem, escaneá-los ou fotografá-los, corremos o risco de destruí-los por completo. Em contrapartida, se não os abrirmos, não teremos acesso nem a uma parte significativa da produção literária de João Gumes, que foi publicada em forma de folhetim no jornal A Penna como, por exemplo, os romances Pelo Sertão e Vida Campestre, nem às centenas de crônicas que fazem parte de sua produção como jornalista. Se escolhermos esta ou aquela opção estaremos, da mesma forma, cometendo um crime contra a preservação do patrimônio cultural baiano, uma vez que inviabilizaríamos, é claro que de formas distintas, a manutenção e a veiculação do saber produzido pelo intelectual caetiteense.
Fig. 1: Foto da coleção do jornal A Penna correspondente ao ano de 1898.
A preparação da edição da obra folhetinesca de João Gumes publicada no jornal A Penna revelou ainda a dificuldade de leitura e a restauração de alguns textos, por se tratarem de versão única e incompleta. Muitos exemplares do jornal foram recortados e apresentam partes faltantes, ou porque se decompuseram pela falta de cuidado no seu manuseio ou pela ação do tempo. A título de ilustração, o exemplar de n° 163, página 2, traz publicado um capítulo do romance O Sampaleiro. Justamente nessa coluna falta metade da página que corresponde à coluna onde iniciava um capítulo do romance. Por esta razão muitas crônicas, infelizmente, não foram recolhidas.
Quanto à reunião das crônicas, conseguimos, até o momento, recolher 99 textos, ou porque tínhamos dois exemplares da edição do jornal ou porque o estado do suporte permitia o seu manusear, caso contrário, isso não seria possível. É projeto do Arquivo Público Municipal de Caetité, local onde se encontra o Acervo de João Gumes, microfilmar e digitalizar os exemplares que permitirem um único e cuidadoso manuseio, o que nos viabilizará, tão logo, transcrever e editar as centenas de crônicas que ainda não foram recolhidas.
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reiterando, o filólogo tem o dever de preservar o patrimônio cultural produzido pela humanidade, recolhendo, colecionando, comparando, restaurando, restituindo-lhe a autenticidade para disponibilizar tanto para os leitores especialistas como para os leitores comuns. O labor filológico não terá sentido se o material recuperado e/ou restaurado não for colocado à disposição da comunidade a qual o seu autor, de forma direta ou indireta, faz parte. Por isso que, quando a obra editada apresenta dificuldades de leitura, é necessária a preparação de edições críticas, adotando-se uma postura metodológica modernizadora para que o leitor contemporâneo tenha, sem nenhum tipo de dificuldades, acesso ao saber produzido.
Daí afirmarmos que a principal tarefa do filólogo é o estabelecimento crítico do texto, cabendo ao editor trazer a público a última vontade do autor, ou seja, o texto autêntico. Para alcançar este objetivo, o editor crítico deverá proceder, primeiro e acertadamente, à escolha do texto de base, que, em se tratando de textos modernos, é a versão que representa “o texto terminal”. Mas como proceder com textos de imprensa, versão única e apresentando sérios problemas de leitura devido às más condições de conservação?
Quanto ao texto de base, não resta alternativa, não há escolhas a serem feitas. Se o objetivo fim da edição for difusão do conhecimento, tornar conhecido um autor e sua obra, o editor tomará esta versão, limpando-a das dificuldades de leitura, para disponibilizá-la ao leitor comum, não especialista. Caso contrário, o aconselhável é a reprodução fiel através da edição fac-similar, ou seja, reprodução do testemunho através da fotografia, xerografia, escanerização, por exemplo, permitindo ao leitor especialista ter acesso ao texto de forma direta, conferindo-lhe autonomia e liberdade de interpretação.
Alguns textos de imprensa de Gumes apresentam problemas de leitura: faltam palavras, gralhas sobrepostas impedem ler o que fora escrito, trechos no interior dos textos foram rasgados. São trechos impossíveis de serem recuperados porque não dispomos de outra cópia para compararmos. Diante de uma situação textual como esta, como proceder? O labor filológico exige do editor a tomada de algumas decisões importantes. Dependendo dos objetivos fins da edição, o editor optará ou por uma transcrição fiel do documento, assinalando, com recursos previamente definidos, no texto as lacunas. Ou, transcrição fiel do documento, assinalando, com recursos previamente definidos, no texto as lacunas daqueles trechos que não puderam ser recuperados e, quando for possível a recuperação através das pistas indicadas pelo contexto, apresentar os critérios e procedimentos adotados para as interpolações do editor para estas passagens emendadas e corrigidas. Deve-se destacar a cautela que o editor necessita ter nestes casos: publicar os textos chamando a atenção do leitor para o fato de que aquilo que lerá sofrera em alguns trechos interferência do editor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução José Paulo Paes. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 11-18.
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de (Dir.). Enciclopédia de literatura brasileira. 2ª ed. rev., ampl., atual., il. São Paulo: Global; Fundação Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001, v.1.
GUMES, João. O sampauleiro. Caetité: A Penna, 1929. 2 v.
GUMES, João. Os analphabetos. Bahia: Escola Typographica Salesiana, 1929.
LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Tradução Marion Ehrhardt e Maria Luísa Schemann. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa de ficção, de 1870 a 1920. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1973.
REIS, Maria da Conceição Souza. O Sampauleiro: romance de João Gumes. 2004. 520 f. Tese de Doutoramento em Letras. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
TAVANI, Giuseppe. A Recuperação do texto. In: Estudos universitários de língua e literatura: homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
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