Construções de incerteza
em
narrativas do Sul de Minas

Luiz Fernando Matos Rocha (UNINCOR)

 

Este trabalho investiga as construções lingüísticas que sustentam os momentos de incerteza presentes em narrativas fantásticas orais produzidas por falantes da região sul-mineira. Postula-se que muitos dos elementos fantásticos que compõem os contos tradicionais do gênero têm fundamentos na oralidade, que também apresenta pistas gramaticais para o estabelecimento da hesitação do narrador. Tendo em vista a categorização de Todorov (1970, 1979) sobre o gênero fantástico, analisam-se ainda os sinais lingüísticos que fazem tal narrativa pender para o estranho ou para o maravilhoso.

O texto se divide em três partes centrais: as duas primeiras são reservadas à apresentação de noções preliminares em torno de construções e do conto fantástico; a última se configura como o pontapé inicial para a análise do conjunto de sinais lingüísticos que atua na constituição do gênero, considerando suas bases orais. Basicamente, o trabalho mostra que o gênero fantástico, antes de fazer parte da Literatura tradicionalmente concebida e também dos estudos em Teoria da Literatura, está amplamente disseminado na oralidade, em forma de “causos”, lendas e mitos do folclore lingüístico e literário.

 

Construções gramaticais e discursivas

Segundo Goldberg (1995), instanciadas em sentenças, construções são emparelhamentos de forma-significado que existem independentemente de palavras isoladas nas sentenças e que formam unidades básicas das línguas. Por exemplo:

(a) Ele bebe.

(b) Ele bebe água.

(c) Ele bebe da água.

Tais exemplos são instanciações de construções distintas, que, por apresentarem sintaxe diferente, sinalizam sentidos também distintos, o que é um pressuposto básico em se tratando de Gramática das Construções. O exemplo (a) implica queEle bebe” bebida alcoólica, por força da destransitivização do verbobeber”, o que aciona um modelo cognitivo de interdição (BRONZATO, 2000). a construção (b), transitiva básica, sugere simplesmente o ato de beber água, enquanto (c) instancia uma construção partitiva, com complemento preposicionado e nome não-contável, focalizando-se a nuance de queEle bebe” parte da água. Lexicalmente, há sentidos similares, mas, na construção, esses sentidos são redimensionados. Cada construção passa a ter um sentido próprio. Então, abandona-se a noção de composicionalidade, de soma de partes, optando-se por um olhar holístico, segundo o qual a construção forma uma unidade de sentido.

Para Goldberg, o que caracteriza uma construção é o seguinte:

C é uma CONSTRUÇÃO se e somente se C é um par forma-significado <Fi, Si> tal que algum aspecto de Fi ou algum aspecto de Si não seja estritamente previsto em partes componenciais de C ou em construções previamente estabelecidas (GOLDBERG, 1995: 4).

Por sua vez, Miranda (2000: 116, grifo da autora) admite a “possibilidade de aplicação do conceito de construção ao nível do discurso”, assumindo que construções discursivas, além das lexicais e gramaticais, também formam pares de forma/sentido. Dessa maneira, corrobora-se a hipótese da “comensurabilidade entre construções gramaticais e interativas (molduras comunicativas)” (MIRANDA, 2000: 116, grifo da autora). Logo, como diz a Miranda, “qualquer diferença interativa [...] expressa diferença de significado”.

Sob a perspectiva do pareamento singular entre forma e sentido, o conceito de construção pode ser aproximado ao de gênero discursivo. O gênero fantástico, por exemplo, apresenta “tipos relativamente estáveis” de enunciados[1], configurando-se como um gênero discursivo. “Utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 1952-1953/2000: 301).

A apresentação de noções preliminares sobre construções se justifica pelo interesse em se analisar a narrativa fantástica, explicitando-se as marcas lingüísticas ou as construções gramaticais que sinalizam a hesitação, aspecto primordial para o estabelecimento do gênero. As noções básicas de Todorov sobre contos fantásticos encontram-se a seguir.

 

A ambigüidade fantástica

Segundo Todorov (1970, 1979), o gênero fantástico se manifesta por meio da hesitação manifestada pela personagem diante de algum fato insólito. Para que essa hesitação se efetive, é necessário que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e que esse leitor hesite junto com a personagem, entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.

Para o autor, a ambigüidade fantástica pode também depender do emprego de dois processos verbais: o uso do imperfeito, que se caracteriza pela indefinição do enunciado, como na oração "Eu amava Aurélia", que não precisa se o sujeito da enunciação ainda a ama ou não; e o uso da modalização, que se configura pelo uso de certas locuções introdutivas que relativizam o enunciado, como, por exemplo, "Talvez chova fora" no lugar de "Chove fora".

A narrativa fantástica pode desembocar em soluções que optam pelo maravilhoso ou pelo estranho. Conforme esquema de Todorov, temos:

Fantástico puro

Estranho puro ↔ Fantástico-Estranho ↔Fantástico-Maravilhoso ↔Maravilhoso puro

 

Hesitação: aspectos temáticos e lingüísticos

Basicamente, pode-se dividir a hesitação estudada por Todorov de duas maneiras, embora ambas atuem em conjunto na consolidação do gênero literário fantástico:

a)     hesitação provocada por fatos narrativos insólitos, como, por exemplo, no conto de Murilo Rubião, “O ex-mágico da Taberna Minhota”, o personagem-narrador faz mágicas involuntariamente, nas quais objetos e seres aparecem retirados de seus bolsos, chapéus ou por meio de movimentos das mãos;

b)    hesitação provocada por construções lingüísticas estritas, apresentadas acima, como, por exemplo, o uso do imperfeito e de estratégias de modalização.

Tanto (a) quanto (b) sustentam uma atmosfera de dúvida de modo interdependente, ao estabelecerem os momentos fantásticos. Por outro lado, as pistas lingüísticas estritas podem sugerir dúvida, mas não necessariamente ancorada a acontecimentos extraordinários ou sobrenaturais. Tanto é que a hesitação, tomada agora como fenômeno de linguagem oral, é estudada por lingüistas como Marcuschi, segundo o qual

Produzida tanto no nível suprassegmental (pela prosódia) como nível segmental (com elementos formais da língua), a hesitação é a presença de atividades discursivas na materialidade lingüística, evidenciada numa transcrição fiel da fala (MARCUSCHI, 1999: 159-160).

Tais atividades são instanciadas em pausas, gaguejamentos, repetições, reparos, buscas de palavras corretas, expressões como “éh”, “ah”, “ahn”, “mm”, marcadores conversacionais acumulados como “sei ”, etc.

Como se vem demonstrando, é preciso reforçar que nem sempre tais recursos orais suscitam a hesitação todoroviana, muito fortemente marcada pelo elemento insólito. Nesse sentido, a noção de construção, importada dos estudos lingüísticos, é relevante, pois faz do gênero fantástico uma construção não tomada apenas pela soma das partes que a compõem, mas pela unidade discursiva que estabelece. Se não fosse assim, bastaria reunir tais marcas lingüísticas de hesitação para compor o fantástico. As narrativas de cunho fantástico não se sustentam apenas pela expressão lingüística per se, mas também pela temática da dúvida insólita. Nota-se claramente o emparelhamento da forma com o sentido.

Considerando que “a conversação face-a-face é o berço do uso da linguagem” (CLARK, 1996: 9), postula-se neste trabalho que o gênero fantástico também tem bases fundamentadas na oralidade, não sendo exclusividade da Literatura, em sentido estrito. Por isso, examinam-se neste trabalho as construções de incerteza em corpus audiogravado de narrativa oral, coletado na cidade de Varginha (MG), local onde supostamente teriam aparecido alienígenas em janeiro de 1996. Verificam-se os sinais verbais de hesitação fantástica mais proeminentes manifestados diante do fato narrado, similares ou distintos dos que foram apontados por Todorov.

Audiogravado em 2005, o trecho a seguir é o depoimento da irmã das moças que supostamente viram a criatura. A narrativa faz parte de um conjunto de “causosfantásticos audiogravados que estão sendo coletados em cidades do Sul de Minas, como Caxambu, Bom Jardim de Minas, Olaria, Baependi, Três Corações, Varginha, etc.. Considere (E) como entrevistador e (I) como a informante.

E: Você poderia contar-nos alguma história sobrenatural que aconteceu com você ou com alguém da sua família?

I: (1) É:: ((hes)) a história que eu sei, o que eu posso relatar procê é sobre o caso O et de Varginha, que aconteceu nove anos atrás, foi exatamente vinte de janeiro de noventa e seis. (2) E:: ((hes)) aconteceu com as minhas irmãs né duas das minhas irmãs. É vou contar bem vou (3) ex ((hes)) tentar explicar direitinho (4) pra procê ((hes)) entender. (5) É:: ((hes)) uma conhecida nossa tava trabalhando na casa de uma família no bairro Jardim Andere aqui em Varginha. Ela era empregada doméstica (6) dessa dessa ((hes)) família. E essa família ia se mudar pra outra cidade (7) e::: ((hes)) falou com ela que se ela não ajudaria nessa mudança. E as minhas irmãs nessa época tavam desempregadas e essa amiga nossa chamou elas pra ajudar né. Foi num sábado. elas toparam, foram pra casa dessa moça, que até nem lembro o nome dela, e trabalharam o dia inteiro, ajudando ela encaixotar mudançaorganizar tudo direitinho (8) pra pra ((hes)) essa família que ia embora. Por volta de umas três horas da tarde elas terminaram e foram pra casa. E o Jardim Andere é um bairro vizinho ao Santana, que é o bairro onde a gente mora. E entre esses bairros tem um caminho, que (9) é:: ((hes)) mato. Tem pasto, mato, árvores e tem várias trilhas que corta caminho, do Jardim Andere pro Santana. As meninas (10) pr pra ((hes)) chegar mais rápido iam cortar caminho por (11) e: por essas trilhas ((hes)). De repente um moço apareceu um moço falou assim pra elas oh se eu fosse vocês num passava por não porque cês tão sozinhas e tem muito maconheiro no meio desse mato. Num passa por não que é perigoso. elas ficaram com medo e falaram não então tá, vamo pelo caminho normal, né, que seria rua, a rua normal. de repente elas passando por um (12) próximo ((hes)) a um terreno baldio. (13) Eu num lembro quem qual ((hes)) delas primeiro que olhou assim viu alguma coisa olhou e observaram um ser estranho um bicho um ((hes)) agachado. E elas começaram a gritar. Nisso as outras duas viram também e saíram correndo desesperadas. Foi assim o que aconteceu. (14) É:: ((hes)) todas com muito medo. (15) E: ((hes)) tava longe da minha casa. Eu sei que elas foram correndo mesmo. Chegaram em casa muito assustadas. foi quando eu vi, eu tava na minha casa limpando o banheiro pra minha mãe, quando uma delas bateu na porta do banheiro eu abri a porta. Ela tava muito assustada, chorando, tremendo demais, nervosa, muito nervosa. eu perguntei pra ela o que que aconteceu? E eu também fiquei assustada. E eu falei alguém te assustou, o que que aconteceu? (16) Ela falou assim pra mim eu acho que eu vi o capeta ((hes)). Foi isso que ela falou. (17) eu falei o quê? Num tô entendendo, que que tá acontecendo? ((hes)) Ela num parava de chorar. Ela tava chorando compulsivamente. nisso a minha mãe muito preocupada as outras duas entraram chorando né porque essa amiga nossa tava junto com elas é vizinha também então as três entraram em casa chorando. Todas as três muito nervosa. (18) A minha mãe/ ((hes)) a gente sentou todo mundo, as três chorando, conta o que que aconteceu. (19) Ai, num sei, a gente viu um um bicho, uma coisa muito feia. ((hes)) (20) E:: ((hes)) todo mundo perguntando mas como que era? O que aconteceu? E elas de tão nervosa não sabia nem explica direito. A minha mãe fico muito preocupada, falou assim eu vou eu vou porque o que apareceu procês vai ter que aparecer pra mim também. E pediu carona pra uma vizinha, porque quando elas passaram pela rua da minha casa chorando nervosas o pessoal que conhece achou estranho(21) e e ((hes)) essa vizinha perguntou o que que aconteceu? Elas (22) nem nem ((hes)) conseguiram explicar. E pra essa mesma vizinha a minha mãe falou assim oh me leva . Apareceu um bicho pras meninas. E eu quero ir ver o que que é. uma delas, que é essa amiga que teve coragem de voltar voltou com a minha mãe mais essa vizinha e num tinha nada. Num tinha mais nada no lugar. eu lembro (23) que:: é:: ((hes)) naquele mesmo dia por volta de umas seis e pou caiu uma chuva na cidade. Teve uma chuva muito forte e andou derrubando árvores pela cidade, foi de muito relâmpago, muito trovão. Foi uma chuva forte mesmo (incompreensível)). E à noite até (24) elas uma ((hes)) das minhas irmãs não conseguiu dormir direito, tava muito assustada (25) porque::: ((hes)) preocupada mesmoera uma coisa tão esquisita, uma coisa anormal. (26) e:: ((hes)) tá. Passou. Mais ou menos uma semana depois um ufólogoprofessor aqui de Varginha que a gente até então não conhecia chegou em casa procurando as meninas entrou conversou se apresentou. (27) E:: ((hes)) falou que recebeu um telefonema (28) explicou isso começou a explicar direitinho (((hes)) que tava acontecendo isso na cidade que (29) ele:: ele ((hes)) tinha notícia de que algumas criaturas estavam aqui na cidade. E que pelo que ele tava estudando que seria um extraterrestre. E pediu pra que elas contassem como que aconteceu, que jeito que era. elas contaram, ele falou assim óh o que vocês viram foi um et. Então até então (30) ninguém isso não tinha passado pela cabeça de ninguém. ((hes)) Ninguémtinha nem sequer pensado nessa possibilidade[2].

A maioria dos momentos de hesitação apontados de (1) a (29) diz respeito a casos de hesitação estritamente lingüísticos, que não necessariamente têm a ver com a hesitação todoroviana. Em (1), (2) (5), (7), (9), (11), (14), (15), (20), (23), (25), (26), (27) e (30), ocorrem basicamente alongamentos vocálicos em final de palavra. Causador de hesitação lingüística oral, o fenômeno prosódico é observado principalmente em monossílabos. Os casos especificamente apontados acima sugerem, em geral, apenas planejamento de fala.

as ocorrências (4), (6), (8), (10), (21), (22) e (29) apresentam repetição hesitativa, as quais também não sinalizam dúvida diante do fato extraordinário, suscitando também planejamento de fala. A instância (12) tem a ver com fragmentos lexicais, ou seja, palavras não-concluídas.

os casos (3) e (28) são próximos da hesitação todoroviana em virtude do movimento sócio-interacional. A inserção dos verbostentar” e “começarantes de “explicar” mitigam a força da assertiva, tornando-a menos categórica ou taxativa, ou seja, modaliza-se o enunciado. No entanto, instaura uma dúvida quanto à convicção do que é narrado. Isso pode ser observado nos trechos replicados abaixo:

(a)   É vou contar bem vou (3) ex ((hes)) tentar explicar direitinho

(b) E:: ((hes)) falou que recebeu um telefonema (28) explicou isso começou a explicar direitinho (((hes)) que tava acontecendo isso na cidade que (29) ele:: ele ((hes)) tinha notícia de que algumas criaturas estavam aqui na cidade.

Em (a), inicia-se a produção do verboexplicar”, o que é interrompido para a inserção do verbotentar”. Em (b), a informante permutaexplicarpor “começou a explicar”. Tais usos sugerem a preocupação da informante em assumir uma certa relatividade discursiva frente ao que está sendo narrado.

As ocorrências a seguir também emblematizam a junção da hesitação todoroviana com outras incertezas via marca lingüística[3], fenômeno focalizado neste trabalho. As marcas em (13), por exemplo, ilustram a imprecisão sustentada por bases verbais:

(13) Eu num lembro quem qual ((hes)) delas primeiro que olhou assim viu alguma coisa olhou e observaram um ser estranho um bicho um ((hes)) agachado.

A oração negativa, cujo verbo é de cognição (“num lembro”), gera dúvida sobre o fato narrado pelo próprio personagem, dúvida esta complementada pela hesitação entrequem” e “qual” — note-se que esta hesitação lingüística não necessariamente tem a ver com a hesitação todoroviana. Por outro lado, os usos de pronomes e artigos indefinidos fortalecem a atmosfera de incertezas. “Alguma” e “um”, este proferido três vezes, sinalizam a dificuldade do informante em enquadrar lexicalmente o que foi visto. A hesitação após o terceiroum”, por exemplo, é sugerida pela elipse de um substantivo inexistente, qualificado como “agachado”. Há ainda o uso de nomes genéricos comocoisa”, “ser estranho” e “bichoque tornam imprecisa a narrativa.

Em (16 – Ela falou assim pra mim eu acho que eu vi o capeta ((hes))), a hesitação ocorre por conta do uso da expressão modalizadora “eu acho”, a qual demonstra a dúvida do personagem diante de um acontecimento insólito. É o emblemaquase que acreditei”, sugerido por Todorov na descrição do momento fantástico. A resposta em (17 – eu falei o quê? Num tô entendendo, que que tá acontecendo?) reforça a atmosfera de dúvida. Ambos os casos estão emoldurados por frames de discurso reportado (“Ela falou...”, “Eu falei...”). Em geral, a estratégia de reportação da fala de outrem tem a ver com a tentativa de consolidar a credibilidade daquilo que é narrado (MATOS ROCHA, 2004).

A escolha lexicalcapeta” demonstra novamente a dificuldade de enquadrar o referente. A mudança no enquadre, de “capetapara “et” — este ao final da narrativa —, atua decisivamente na definição do conto como fantástico-maravilhoso, segundo classificação de Todorov. Argumenta-se que a narrativa oral apresentada traz elementos fantásticos por conta dos sinais de hesitação, pendendo, ao final, para o maravilhoso em função da opção pelo sobrenatural (“et” – extraterrestre). É importante lembrar que até o aparecimento do ufólogo na narrativa, a criatura encontrada não era chamada de “et” pelas avistadoras da criatura. Se o enquadre lexical fosse “cachorrooualguém fantasiado”, por exemplo, a narrativa propenderia para o estranho, opção pelo natural.

É preciso acrescentar ainda que o entrevistador fornece o comando para a informante, pedindo-lhe que conte uma “história sobrenatural”. No início de sua fala, a narradora explicita a temática: “O caso o ET de Varginha”. Com isso, ela dispara o modelo cultural-cognitivo de conhecimento sobre histórias de extraterrestres, antecipando a solução pela via sobrenatural.

O corpus analisado neste trabalho emblematiza bem as ocorrências de hesitação constantes de outras narrativas fantásticas coletadas por bolsistas do projetoAspectos cognitivos e lingüísticos das narrativas fantásticas do Sul de Minas” (UNINCOR, Três Corações e Caxambu – 2005). Por isso, podemos extrair dele um quadro generalizante que apresenta as manifestações construcionais comuns ao gênero fantástico na oralidade:

Categorias lingüísticas

Exemplos

1) Verbos de cognição na forma negativa

Eu num lembro”, “Num tô entendendo”, “Ai, num sei”

2) Verbos no imperfeito

tava trabalhando”, “tavam desempregadas”, “se eu fosse vocês num passava por aí”, “As meninas (10) pr pra ((hes)) chegar mais rápido iam cortar caminho”

3) Perguntas hesitativas

“que que tá acontecendo?”

4) Pronomes indefinidos

alguma coisa”, “ninguém

5) Artigos indefinidos

um ser estranho um bicho um ((hes)) agachado”, “a gente viu um um bicho, uma coisa muito feia”

6) Nomes genéricos

“a gente viu um um bicho, uma coisa muito feia”

7) Expressões modalizadoras

“Ela falou assim pra mim eu acho que eu vi o capeta”, “É vou contar bem vou (3) ex ((hes)) tentar explicar direitinho”, “(27) E:: ((hes)) falou que recebeu um telefonema (28) explicou isso começou a explicar direitinho (((hes)) que tava acontecendo isso na cidade”

8) Sujeito indeterminado[4]

“falaram que”, “dizem que”

 


 

Considerações finais

Os fenômenos verbais listados acima têm a ver com manifestações lingüísticas indefinidas, indeterminadas e relativizantes, as quais são aqui tomadas como construções de incerteza. É importante reforçar que os aspectos holísticos que envolvem a noção de construção gramatical relacionam-se bem com a caracterização do gênero literário. O todo construcional não é calculado pela soma das partes. Com especial atenção para o conto fantástico, percebe-se que tanto os aspectos formais quanto os de fundo temático contribuem para a sedimentação do gênero. Somar as pistas lingüísticas hesitativas per se não compõem o conto fantástico. A temática deve estar relacionada à narrativa de acontecimentos insólitos. Por isso, é necessária a perspectiva discursiva, que somada a análise das marcas verbais, fornece um mapeamento do gênero fantástico em sua modalidade oral. Tais marcas carecem ainda de outros detalhamentos lingüístico-cognitivos, mas que estão por vir.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3ª ed. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRONZATO, L. H. A abordagem sociocognitiva da construção de destransitivização: o enquadre da interdição. 2000. 111 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Lingüística) – Instituto de Ciências Humanas e de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2000.

CLARK, H. Using language. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

MARCUSCHI, L. A. A hesitação. In: MOURA NEVES, M. H. Gramática do Português Falado. Campinas: Unicamp, v. 7, 1999.

MATOS ROCHA, L. F. A construção da mímesis no reality show: uma abordagem sociocognitivista para o discurso reportado. 2004. 254 f. Tese (Doutorado em Lingüística) — Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 2004.

MIRANDA, N. S. A configuração das arenas comunicativas no discurso institucional: professores versus professores. 2000. 196 f. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, 2000.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1970.

––––––. As estruturas da narrativa. São Paulo: Perspectiva, 1979.


 


 

[1] Bakhtin (1952-1953/2000) explica que enunciado é uma unidade de comunicação verbal limitada pela alternância de locutores, numa perspectiva dialógica.

[2] A narração não termina aqui. Foi feito um corte no momento em que se percebe que há uma unidade narrativa estabelecida. Optou-se por manter o trecho completo, não se recuperando apenas partes, para que o leitor tenha noção dessa unidade construcional.

[3] Não estou discutindo agora da hesitação em linguagem oral, aquela apresentada por Marcuschi (1999).

[4] Apesar de serem comuns ao gênero fantástico em sua versão oral, casos de indeterminação de sujeito não foram encontrados no trecho da narrativa analisado neste trabalho.

 

 

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