Construções de incerteza
em
narrativas
do
Sul
de
Minas
Luiz Fernando Matos Rocha
(UNINCOR)
Este
trabalho investiga as
construções
lingüísticas
que sustentam os
momentos de
incerteza
presentes
em
narrativas fantásticas
orais produzidas
por
falantes da
região sul-mineira. Postula-se
que
muitos dos
elementos
fantásticos
que compõem os
contos tradicionais do
gênero têm
fundamentos na
oralidade,
que
também apresenta
pistas
gramaticais
para o
estabelecimento da
hesitação do narrador. Tendo
em
vista a categorização de Todorov (1970, 1979)
sobre o
gênero
fantástico, analisam-se
ainda os
sinais
lingüísticos
que fazem
tal
narrativa
pender
para o
estranho
ou
para o maravilhoso.
O
texto se divide
em
três
partes
centrais: as duas primeiras
são reservadas à
apresentação de
noções
preliminares
em
torno de
construções e do
conto
fantástico; a
última se configura
como o
pontapé
inicial
para a
análise do
conjunto de
sinais
lingüísticos
que atua na
constituição do
gênero, considerando
suas
bases
orais. Basicamente, o
trabalho
mostra
que o
gênero
fantástico,
antes de
fazer
parte da
Literatura tradicionalmente concebida e
também dos
estudos
em
Teoria da
Literatura, está
amplamente disseminado na
oralidade,
em
forma de “causos”,
lendas e
mitos do
folclore
lingüístico e
literário.
Construções
gramaticais
e discursivas
Segundo Goldberg (1995),
instanciadas
em
sentenças,
construções
são emparelhamentos de forma-significado
que existem
independentemente de
palavras isoladas nas
sentenças e
que formam
unidades básicas das
línguas.
Por exemplo:
(a)
Ele bebe.
(b)
Ele bebe
água.
(c)
Ele bebe da
água.
Tais
exemplos
são instanciações de
construções distintas,
que,
por apresentarem
sintaxe
diferente, sinalizam
sentidos
também
distintos, o
que é
um pressuposto
básico
em se tratando de
Gramática das
Construções. O
exemplo (a) implica
que “Ele bebe”
bebida
alcoólica,
por
força da destransitivização do
verbo “beber”, o
que aciona
um
modelo cognitivo de
interdição (BRONZATO, 2000).
Já a
construção (b),
transitiva
básica, sugere
simplesmente o
ato de
beber
água,
enquanto (c) instancia uma
construção partitiva,
com
complemento preposicionado e
nome não-contável, focalizando-se
aí a
nuance de
que “Ele bebe”
parte da
água.
Lexicalmente, há
sentidos
similares,
mas, na
construção,
esses
sentidos
são redimensionados.
Cada
construção
passa a
ter
um
sentido
próprio.
Então, abandona-se a
noção de composicionalidade, de
soma de
partes, optando-se
por
um
olhar
holístico,
segundo o
qual a
construção
forma uma
unidade de
sentido.
Para Goldberg, o
que caracteriza uma
construção é o
seguinte:
C é uma
CONSTRUÇÃO se e
somente se C é
um
par forma-significado <Fi,
Si>
tal
que
algum
aspecto de Fi
ou
algum
aspecto de
Si
não seja
estritamente
previsto
em
partes componenciais de C
ou
em
construções previamente estabelecidas (GOLDBERG,
1995: 4).
Por
sua
vez, Miranda (2000: 116,
grifo da autora)
já admite a “possibilidade de
aplicação do
conceito de
construção ao
nível do
discurso”, assumindo
que
construções discursivas,
além das
lexicais e
gramaticais,
também formam
pares de
forma/sentido. Dessa
maneira, corrobora-se a
hipótese da “comensurabilidade
entre
construções
gramaticais e interativas (molduras
comunicativas)” (MIRANDA, 2000: 116,
grifo da autora).
Logo,
como diz a Miranda, “qualquer
diferença
interativa [...]
expressa
diferença de
significado”.
Sob a
perspectiva do pareamento
singular
entre
forma e
sentido, o
conceito de
construção pode
ser aproximado ao de
gênero discursivo. O
gênero
fantástico,
por
exemplo, apresenta “tipos
relativamente
estáveis” de
enunciados,
configurando-se
como
um
gênero discursivo. “Utilizamo-nos
sempre dos
gêneros do
discurso,
em outras
palavras,
todos os
nossos
enunciados dispõem de uma
forma
padrão e
relativamente
estável de estruturação de
um
todo” (BAKHTIN, 1952-1953/2000: 301).
A
apresentação de
noções
preliminares
sobre
construções se justifica
pelo
interesse
em se
analisar a
narrativa
fantástica, explicitando-se as
marcas
lingüísticas
ou as
construções
gramaticais
que sinalizam a
hesitação,
aspecto
primordial
para o
estabelecimento do
gênero. As
noções básicas de Todorov
sobre
contos
fantásticos encontram-se a
seguir.
A
ambigüidade
fantástica
Segundo Todorov (1970,
1979), o
gênero
fantástico se
manifesta
por
meio da
hesitação manifestada
pela
personagem
diante de
algum
fato
insólito.
Para
que essa
hesitação se efetive, é
necessário
que o
texto obrigue o
leitor a
considerar o
mundo das
personagens
como
um
mundo de
pessoas
vivas e
que
esse
leitor hesite
junto
com a
personagem,
entre uma
explicação
natural e uma
explicação
sobrenatural dos
acontecimentos evocados.
Para o
autor, a
ambigüidade
fantástica pode
também
depender do
emprego de
dois
processos
verbais: o
uso do
imperfeito,
que se caracteriza
pela
indefinição do
enunciado,
como na
oração "Eu amava
Aurélia",
que
não
precisa se o
sujeito da
enunciação
ainda a
ama
ou
não; e o
uso da modalização,
que se configura
pelo
uso de
certas
locuções introdutivas
que relativizam o
enunciado,
como,
por
exemplo, "Talvez chova
lá
fora" no
lugar de "Chove
lá
fora".
A
narrativa
fantástica pode
desembocar
em
soluções
que optam
pelo
maravilhoso
ou
pelo
estranho.
Conforme
esquema de Todorov, temos:
Fantástico
puro
↕
Estranho
puro
↔ Fantástico-Estranho ↔Fantástico-Maravilhoso ↔Maravilhoso
puro
Hesitação:
aspectos
temáticos
e
lingüísticos
Basicamente, pode-se
dividir a
hesitação estudada
por Todorov de duas
maneiras,
embora ambas atuem
em
conjunto na
consolidação do
gênero
literário
fantástico:
a)
hesitação provocada
por
fatos narrativos
insólitos,
como,
por
exemplo, no
conto de Murilo Rubião, “O
ex-mágico da
Taberna
Minhota”,
o personagem-narrador faz
mágicas involuntariamente, nas
quais
objetos e
seres aparecem retirados de
seus
bolsos,
chapéus
ou
por
meio de
movimentos das
mãos;
b)
hesitação provocada
por
construções
lingüísticas estritas,
já apresentadas
acima,
como,
por
exemplo, o
uso do
imperfeito e de
estratégias de modalização.
Tanto (a)
quanto (b) sustentam uma
atmosfera de
dúvida de
modo
interdependente, ao estabelecerem os
momentos
fantásticos.
Por
outro
lado, as
pistas
lingüísticas estritas podem
sugerir
dúvida,
mas
não necessariamente ancorada a
acontecimentos
extraordinários
ou
sobrenaturais.
Tanto é
que a
hesitação,
tomada
agora
como
fenômeno de
linguagem
oral, é estudada
por
lingüistas
como Marcuschi,
segundo o qual
Produzida
tanto no
nível suprassegmental (pela
prosódia)
como
nível segmental (com
elementos
formais da
língua), a
hesitação é a
presença de
atividades discursivas na
materialidade
lingüística, evidenciada numa
transcrição
fiel da
fala (MARCUSCHI, 1999: 159-160).
Tais
atividades
são instanciadas
em
pausas, gaguejamentos,
repetições,
reparos,
buscas de
palavras corretas,
expressões
como “éh”, “ah”, “ahn”, “mm”,
marcadores conversacionais acumulados
como “sei
lá”, etc.
Como se vem demonstrando, é
preciso
reforçar
que
nem
sempre
tais
recursos
orais suscitam a
hesitação todoroviana,
muito
fortemente marcada
pelo
elemento
insólito. Nesse
sentido, a
noção de
construção, importada dos
estudos
lingüísticos, é
relevante,
pois faz do
gênero
fantástico uma
construção
não
tomada
apenas
pela
soma das
partes
que a compõem,
mas
pela
unidade discursiva
que estabelece. Se
não fosse
assim, bastaria
reunir
tais
marcas
lingüísticas de
hesitação
para
compor o
fantástico. As
narrativas de
cunho
fantástico
não se sustentam
apenas
pela
expressão
lingüística
per se,
mas
também
pela
temática da
dúvida
insólita. Nota-se
claramente o emparelhamento da
forma
com o
sentido.
Considerando
que “a
conversação
face-a-face é o
berço
do
uso
da
linguagem”
(CLARK, 1996: 9), postula-se neste
trabalho
que o
gênero
fantástico
também tem
bases fundamentadas na
oralidade,
não sendo
exclusividade da
Literatura,
em
sentido
estrito.
Por
isso, examinam-se neste
trabalho as
construções de
incerteza
em
corpus audiogravado de
narrativa
oral, coletado na
cidade de Varginha (MG),
local
onde
supostamente teriam aparecido
alienígenas
em
janeiro de 1996. Verificam-se os
sinais
verbais de
hesitação
fantástica
mais
proeminentes manifestados
diante do
fato narrado,
similares
ou
distintos dos
que
já foram apontados
por Todorov.
Audiogravado
em 2005, o
trecho a
seguir é o
depoimento da irmã das moças
que
supostamente viram a
criatura. A
narrativa faz
parte de
um
conjunto de “causos”
fantásticos audiogravados
que estão sendo coletados
em
cidades do
Sul de
Minas,
como
Caxambu,
Bom
Jardim de
Minas,
Olaria, Baependi,
Três
Corações, Varginha, etc.. Considere (E)
como entrevistador e (I)
como a informante.
E:
Você
poderia
contar-nos alguma
história
sobrenatural
que
aconteceu
com
você
ou
com
alguém
da
sua
família?
I:
(1) É:: ((hes)) a
história
que
eu sei, o
que
eu posso
relatar procê é
sobre o
caso O et de Varginha,
que aconteceu
nove
anos
atrás, foi
exatamente vinte de
janeiro de noventa e
seis. (2) E:: ((hes)) aconteceu
com as
minhas irmãs né duas das
minhas irmãs. É vou
contar
bem vou (3) ex ((hes))
tentar
explicar direitinho (4)
pra procê ((hes))
entender. (5) É:: ((hes)) uma
conhecida
nossa
tava trabalhando na
casa de uma
família no
bairro
Jardim Andere
aqui
em Varginha.
Ela
era
empregada
doméstica (6) dessa dessa ((hes))
família. E essa
família ia se
mudar
pra
outra
cidade (7) e::: ((hes)) falou
com
ela
que se
ela
não ajudaria nessa
mudança. E as
minhas irmãs nessa
época tavam desempregadas e essa
amiga
nossa chamou
elas
pra
ajudar né. Foi num
sábado.
Aí
elas toparam, foram
pra
casa dessa
moça,
que
até
nem lembro o
nome dela, e trabalharam
lá o
dia
inteiro, ajudando
ela
encaixotar
mudança né
organizar
tudo direitinho (8)
pra
pra ((hes)) essa
família
que ia
embora.
Por
volta de umas
três
horas da
tarde
elas terminaram e foram
pra
casa. E o
Jardim Andere é
um
bairro
vizinho ao Santana,
que é o
bairro
onde a
gente
mora. E
entre
esses
bairros tem
um
caminho,
que (9) é:: ((hes))
mato. Tem
pasto,
mato,
árvores e tem várias
trilhas
que corta
caminho, do
Jardim Andere pro Santana. As meninas (10) pr
pra ((hes))
chegar
mais
rápido iam
cortar
caminho
por (11) e:
por essas
trilhas ((hes)). De
repente
um
moço apareceu
um
moço falou
assim
pra
elas
oh se
eu fosse
vocês num passava
por
aí
não
porque
cês
tão sozinhas e tem
muito
maconheiro
aí no
meio desse
mato. Num
passa
por
aí
não
que é
perigoso.
Aí
elas ficaram
com
medo e falaram
não
então tá, vamo
pelo
caminho
normal, né,
que seria
rua, a
rua
normal.
Aí de
repente
elas passando
por
um (12)
pé
próximo ((hes)) a
um
terreno
baldio. (13)
Eu num lembro
quem
qual ((hes)) delas
primeiro
que olhou
assim viu alguma
coisa olhou e observaram
um
ser
estranho
um
bicho
um ((hes)) agachado. E
elas
já começaram a
gritar. Nisso as outras duas viram
também e saíram correndo desesperadas. Foi
assim o
que aconteceu. (14) É:: ((hes)) todas
com
muito
medo. (15) E: ((hes))
tava
longe da
minha
casa.
Eu sei
que
elas foram correndo
mesmo. Chegaram
lá
em
casa
muito assustadas.
Aí foi
quando
eu vi,
eu
tava na
minha
casa limpando o
banheiro
pra
minha
mãe,
quando uma delas bateu na
porta do
banheiro
eu abri a
porta.
Ela
tava
muito assustada, chorando,
tremendo
demais,
nervosa,
muito
nervosa.
Aí
eu perguntei
pra
ela o
que
que aconteceu? E
eu
também fiquei assustada. E
eu falei
alguém
te assustou, o
que
que aconteceu? (16)
Ela falou
assim
pra
mim
eu acho
que
eu vi o
capeta ((hes)). Foi
isso
que
ela falou. (17)
Aí
eu falei o
quê? Num tô entendendo,
que
que tá acontecendo? ((hes))
Ela num parava de
chorar.
Ela
tava chorando
compulsivamente.
Aí nisso a
minha
mãe
muito preocupada as outras duas entraram chorando
né
porque essa
amiga
nossa
tava
junto
com
elas é
vizinha
também
então as
três entraram
lá
em
casa chorando. Todas as
três
muito
nervosa. (18) A
minha
mãe/ ((hes))
aí a
gente sentou
todo
mundo, as
três chorando,
conta o
que
que aconteceu. (19) Ai, num sei, a
gente viu
um
um
bicho, uma
coisa
muito
feia. ((hes)) (20) E:: ((hes))
aí
todo
mundo perguntando
mas
como
que
era? O
que aconteceu? E
elas de
tão
nervosa
não sabia
nem explica
direito. A
minha
mãe fico
muito preocupada, falou
assim
eu vou
lá
eu vou
lá
porque o
que apareceu procês vai
ter
que
aparecer
pra
mim
também. E pediu
carona
pra uma
vizinha,
porque
quando
elas passaram
pela
rua da
minha
casa chorando nervosas o
pessoal
que conhece achou
estranho né (21) e e ((hes)) essa
vizinha perguntou o
que
que aconteceu?
Elas (22)
nem
nem ((hes)) conseguiram
explicar. E
pra essa
mesma
vizinha a
minha
mãe falou
assim
oh
cê
me
leva
lá. Apareceu
um
bicho pras meninas. E
eu quero
ir
lá
ver o
que
que é.
Aí uma delas,
que é essa
amiga
que teve
coragem de
voltar
lá voltou
com a
minha
mãe
mais essa
vizinha e num
tinha
nada. Num
tinha
mais
nada no
lugar.
Aí
eu lembro (23)
que:: é:: ((hes)) naquele
mesmo
dia
por
volta de umas
seis e pou caiu uma
chuva na
cidade. Teve uma
chuva
muito
forte e andou derrubando
árvores
pela
cidade, foi de
muito
relâmpago,
muito
trovão. Foi uma
chuva
forte
mesmo (incompreensível)).
E à
noite
até (24)
elas uma ((hes)) das
minhas irmãs
não conseguiu
dormir
direito,
tava
muito assustada (25)
porque::: ((hes)) preocupada
mesmo né
era uma
coisa
tão
esquisita, uma
coisa
anormal.
Aí (26) e:: ((hes)) tá. Passou.
Mais
ou
menos uma
semana
depois
um
ufólogo né
professor
aqui de Varginha
que a
gente
até
então
não conhecia chegou
lá
em
casa procurando as meninas entrou conversou se
apresentou. (27) E:: ((hes)) falou
que recebeu
um
telefonema (28) explicou
isso começou a
explicar direitinho (((hes))
que
tava acontecendo
isso na
cidade
que (29)
ele::
ele ((hes))
tinha
notícia de
que algumas
criaturas estavam
aqui na
cidade. E
que
pelo
que
ele
tava estudando
que seria
um
extraterrestre. E pediu
pra
que
elas contassem
como
que aconteceu,
que
jeito
que
era.
Aí
elas contaram,
ele falou
assim óh o
que
vocês viram foi
um et.
Então
até
então (30)
ninguém
isso
não
tinha
passado
pela
cabeça de
ninguém. ((hes))
Ninguém né
tinha
nem
sequer pensado nessa possibilidade.
A
maioria dos
momentos de
hesitação apontados de (1) a (29) diz
respeito a
casos de
hesitação
estritamente
lingüísticos,
que
não necessariamente têm a
ver
com a
hesitação todoroviana.
Em (1), (2) (5), (7), (9), (11), (14), (15), (20),
(23), (25), (26), (27) e (30), ocorrem basicamente
alongamentos
vocálicos
em
final de
palavra.
Causador de
hesitação
lingüística
oral, o
fenômeno
prosódico é
observado
principalmente
em
monossílabos. Os
casos especificamente apontados
acima sugerem,
em
geral,
apenas
planejamento de
fala.
Já as
ocorrências (4), (6), (8), (10), (21), (22) e (29)
apresentam
repetição hesitativa, as
quais
também
não sinalizam
dúvida
diante do
fato
extraordinário, suscitando
também
planejamento de
fala. A
instância (12) tem a
ver
com
fragmentos
lexicais,
ou seja,
palavras não-concluídas.
Já os
casos (3) e (28)
são
próximos da
hesitação todoroviana
em
virtude do
movimento sócio-interacional. A
inserção dos
verbos “tentar” e “começar”
antes de “explicar” mitigam a
força da assertiva, tornando-a
menos
categórica
ou
taxativa,
ou seja, modaliza-se o
enunciado. No
entanto, instaura uma
dúvida
quanto à
convicção do
que é narrado.
Isso pode
ser
observado
nos
trechos replicados
abaixo:
(a)
É vou
contar
bem vou (3) ex ((hes))
tentar
explicar direitinho
(b) E:: ((hes)) falou
que recebeu
um
telefonema (28) explicou
isso começou a
explicar direitinho (((hes))
que
tava acontecendo
isso na
cidade
que (29)
ele::
ele ((hes))
tinha
notícia de
que algumas
criaturas estavam
aqui na
cidade.
Em (a), inicia-se a
produção do
verbo “explicar”, o
que é
interrompido
para a
inserção do
verbo “tentar”.
Em (b), a informante
permuta “explicar”
por “começou a
explicar”.
Tais
usos sugerem a
preocupação da informante
em
assumir uma
certa relatividade discursiva
frente ao
que está sendo narrado.
As
ocorrências a
seguir
também emblematizam a
junção da
hesitação todoroviana
com outras
incertezas
via
marca
lingüística,
fenômeno focalizado neste
trabalho. As
marcas
em (13),
por
exemplo, ilustram a
imprecisão sustentada
por
bases
verbais:
(13)
Eu num lembro
quem
qual ((hes)) delas
primeiro
que olhou
assim viu alguma
coisa olhou e observaram
um
ser
estranho
um
bicho
um ((hes)) agachado.
A
oração
negativa,
cujo
verbo é de
cognição (“num lembro”), gera
dúvida
sobre o
fato narrado
pelo
próprio
personagem,
dúvida esta complementada
pela
hesitação
entre “quem” e “qual”
— note-se
que esta
hesitação
lingüística
não necessariamente tem a
ver
com a
hesitação todoroviana.
Por
outro
lado, os
usos de
pronomes e
artigos
indefinidos fortalecem a
atmosfera de
incertezas. “Alguma” e “um”,
este proferido
três
vezes, sinalizam a
dificuldade do informante
em
enquadrar
lexicalmente o
que foi
visto. A
hesitação
após o
terceiro “um”,
por
exemplo, é sugerida
pela
elipse de
um
substantivo
inexistente, qualificado
como “agachado”. Há
ainda o
uso de
nomes
genéricos
como “coisa”, “ser
estranho” e “bicho”
que tornam
imprecisa a narrativa.
Em (16 –
Ela falou
assim
pra
mim
eu acho
que
eu vi o
capeta ((hes))), a
hesitação ocorre
por
conta do
uso da
expressão modalizadora “eu
acho”, a
qual demonstra a
dúvida do
personagem
diante de
um
acontecimento
insólito. É o
emblema “quase
que acreditei”, sugerido
por Todorov na
descrição do
momento
fantástico. A
resposta
em (17 –
Aí
eu falei o
quê? Num tô entendendo,
que
que tá acontecendo?)
reforça a
atmosfera de
dúvida.
Ambos os
casos estão emoldurados
por frames de
discurso reportado (“Ela
falou...”, “Eu falei...”).
Em
geral, a
estratégia de reportação da
fala de
outrem tem a
ver
com a
tentativa de
consolidar a
credibilidade daquilo
que é narrado (MATOS
ROCHA, 2004).
A
escolha
lexical “capeta” demonstra
novamente a
dificuldade de
enquadrar o
referente. A
mudança no enquadre, de “capeta”
para “et” —
este ao
final da
narrativa —, atua
decisivamente na
definição do
conto
como fantástico-maravilhoso,
segundo classificação de Todorov. Argumenta-se
que a
narrativa
oral apresentada traz
elementos
fantásticos
por
conta dos
sinais de
hesitação, pendendo, ao
final,
para o
maravilhoso
em
função da
opção
pelo
sobrenatural (“et” –
extraterrestre). É
importante
lembrar
que
até o
aparecimento do
ufólogo na
narrativa, a
criatura encontrada
não
era
chamada de “et” pelas avistadoras da
criatura. Se o enquadre
lexical fosse “cachorro”
ou “alguém
fantasiado”,
por
exemplo, a
narrativa propenderia
para o
estranho,
opção
pelo
natural.
É
preciso
acrescentar
ainda
que o entrevistador fornece o
comando
para a informante, pedindo-lhe
que conte uma “história
sobrenatural”. No
início de
sua
fala, a narradora explicita a
temática: “O
caso o ET de Varginha”.
Com
isso,
ela
dispara o
modelo cultural-cognitivo de
conhecimento
sobre
histórias de
extraterrestres, antecipando a
solução
pela
via
sobrenatural.
O
corpus analisado neste
trabalho emblematiza
bem as
ocorrências de
hesitação
constantes de outras
narrativas fantásticas coletadas
por
bolsistas do
projeto “Aspectos
cognitivos e
lingüísticos das
narrativas fantásticas do
Sul de
Minas” (UNINCOR,
Três
Corações e
Caxambu – 2005).
Por
isso, podemos
extrair dele
um
quadro generalizante
que apresenta as
manifestações construcionais
comuns ao
gênero
fantástico na
oralidade:
Categorias
lingüísticas |
Exemplos |
1)
Verbos
de
cognição
na
forma
negativa |
“Eu
num lembro”, “Num tô entendendo”, “Ai, num sei” |
2)
Verbos
no
imperfeito |
“tava trabalhando”, “tavam desempregadas”,
“se eu fosse vocês num passava por aí”, “As meninas (10) pr pra
((hes)) chegar mais rápido iam cortar caminho” |
3) Perguntas hesitativas |
“que que tá acontecendo?” |
4) Pronomes indefinidos |
“alguma coisa”, “ninguém” |
5) Artigos indefinidos |
“um ser estranho um bicho um ((hes))
agachado”, “a gente viu um um bicho, uma coisa muito
feia” |
6) Nomes genéricos |
“a gente viu um um bicho, uma coisa muito
feia” |
7) Expressões modalizadoras |
“Ela falou assim pra mim eu acho que eu vi o
capeta”, “É vou contar bem vou (3) ex
((hes)) tentar explicar direitinho”, “(27) E:: ((hes)) falou
que recebeu um telefonema (28) explicou isso começou a explicar
direitinho (((hes)) que tava acontecendo isso na cidade” |
8) Sujeito indeterminado |
“falaram que”, “dizem que” |
Considerações finais
Os fenômenos verbais
listados acima têm a ver com manifestações lingüísticas indefinidas,
indeterminadas e relativizantes, as quais são aqui tomadas como construções de
incerteza. É importante reforçar que os aspectos holísticos que envolvem a noção
de construção gramatical relacionam-se bem com a caracterização do gênero
literário. O todo construcional não é calculado pela soma das partes. Com
especial atenção para o conto fantástico, percebe-se que tanto os aspectos
formais quanto os de fundo temático contribuem para a sedimentação do gênero.
Somar as pistas lingüísticas hesitativas per se não compõem o conto
fantástico. A temática deve estar relacionada à narrativa de acontecimentos
insólitos. Por isso, é necessária a perspectiva discursiva, que somada a análise
das marcas verbais, fornece um mapeamento do gênero fantástico em sua modalidade
oral. Tais marcas carecem ainda de outros detalhamentos lingüístico-cognitivos,
mas que estão por vir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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verbal. 3ª ed. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
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destransitivização: o enquadre da interdição. 2000. 111 f. Dissertação
(Mestrado em Letras – Lingüística) – Instituto de Ciências Humanas e de Letras,
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2000.
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M. H. Gramática do Português Falado. Campinas: Unicamp, v. 7, 1999.
MATOS ROCHA, L. F. A construção
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reportado. 2004. 254 f. Tese (Doutorado em Lingüística) — Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ, 2004.
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das arenas comunicativas no discurso institucional: professores versus
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Minas Gerais - UFMG, 2000.
TODOROV,
T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1970.
––––––.
As estruturas da narrativa. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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