Ecos na poesia de Adélia Prado

Vilson de Oliveira (UNISA- SP)

 

Considerações iniciais

Certas palavras dão simplesmente um salto para trás e não voltam mais; outras atrasam-se, viram-se e tornam-se a virar dezenas de vezes, até sentirmos que uma delas encontrou o seu lugar..

(MAIAKÓVSKY, 1984:44)

 

O presente artigo é um recorte de uma pesquisa maior que desenvolvemos na Universidade de Santo Amaro (SP), na qual nos propomos a realizar um estudo da poesia de Adélia Prado à luz dos pressupostos da Análise do Discurso (AD), verificando seu diálogo tanto com o discurso bíblico quanto com o drummondiano e observando sua função argumentativa, a dimensão e o colorido instaurados no texto poético por meio desse diálogo.

O artigo está organizado em três partes: na primeira, apresentamos, sucintamente, os postulados da Análise do Discurso (AD); em seguida, desenhamos um retrato da autora mineira; depois, apoiados na AD, apontamos possíveis leituras do poema Antes do nome[1] do livro Poesia reunida, que teve sua primeira edição em 1991, para finalmente, depreendermos as conclusões.

 

Por que Análise do Discurso (AD)?

O que foi é o que há de ser; e o que  se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. (BÍBLIA SAGRADA, Eclesiastes 1:9)

Os estudiosos da AD entendem o discurso como um conjunto de enunciados advindos de várias formações discursivas que se remete a uma outra formação discursiva. Isto porque:

Todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados diferentes. (ORLANDI, 2003: 62)

E o texto, resultado concreto desse discurso, passa a se fazer através de um entrelaçamento perpétuo desse cruzamento. Nessa textura, o sujeito se desfaz, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. (BARTHES, 1973: 83)

Descentrado, múltiplo e perpassado por muitos, o sujeito elabora um discurso heterogêneo. Para AUTHIER (2004: 11-14) há duas formas de heterogeneidade: a constitutiva em que a unidade aparente do discurso não deixa marcas da polifonia, não se observa a marca do outro; e a mostrada em que há a presença explícita do outro, por exemplo, por meio do: discurso relatado nas formas do discurso indireto e do discurso direto; nas diversas formas marcadas da conotação autonímica, em fragmentos marcados por aspas, itálico, por uma entonação e/ou por uma forma de comentário; como marcas de uma atividade de controle-regulagem do processo de comunicação; por uma outra língua; por uma outra tomada de sentidos, observada no discurso poético mais até do que no discurso ordinário.

Esses pressupostos iluminarão as análises da poesia de Adélia Prado, na qual detectamos certo número de formas lingüísticas que nos remetem à presença do outro no discurso, revelando sua heterogeneidade.

Antes, porém, constituiremos um retrato da poetisa mineira, sua formação e identidade poética.

 

Um oráculo[2]

É o Espírito Santo. Ele quer falar e me usa. No caso, eu sou um oráculo. (CADERNOS: 27)

Adélia Luzia Prado, primeira filha de João e Ana Clotildes, nasceu no dia 13 de dezembro de 1935, em Divinópolis, Minas Gerais.

Iniciou e concluiu seus estudos em escolas de orientação católica estudando também com padres franciscanos. Desde a infância teve contato, portanto, com o texto religioso. Em 1950, ao morrer sua mãe, começou a escrever seus primeiros poemas. Casou-se, em 1958, com José Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil, com quem teve cinco filhos. Em 1972, morreu seu pai. Um ano depois, formou-se em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.

No dia 9 de outubro de 1975, Carlos Drummond de Andrade, ao escrever uma crônica sobre o novo fenômeno da natureza poética, nos dá uma apresentação da poetisa:

Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis. (CADERNOS: 5)

Em 1976, na sessão de lançamento de seu livro Bagagem, no Rio de Janeiro, estavam presentes Antonio Houaiss e Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant´Anna, Nélia Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho.

A identificação entre Drummond e Adélia surgiu logo no primeiro poema da autora, “Com licença poética”[3].

A terra natal é o lugar de onde Adélia se serviu para elaborar sua obra. Parte de sua bagagem veio lá da infância, vivendo seu cotidiano integrada a um universo caseiro e provinciano, com seus pais.

Ao percebermos sua formação e o estreitamento de seu fazer-poético com autores diversos, procuramos neste trabalho nos deter na verificação dos intertextos com a Bíblia e com Drummond, o que nós chamaremos de ecos discursivos.


 

Ecos discursivos

(...)
Essa voz que era sua e não era sua
Correspondência de mil vozes,
(...)
toda fragmentada, nessa queda violenta do mistério
(...)
sua voz – esforçado eco.

(MEIRELES, 1997:245)

O texto poético, mais do que o discurso ordinário, se faz atravessado por outros: é múltiplo, multifacetado, heterogêneo. Nele, diversos dizeres se cruzam, entrelaçam-se, mesclam-se. Os de Adélia Prado não são diferentes, nele várias referências literárias são facilmente perceptíveis – Drummond, João Cabral de Melo Neto, Nélia Piñon, Casimiro de Abreu, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, San Juan de la Cruz, Santa Teresa D´Ávila, pois como sabemos, toda palavra

remete a um contexto, ou a vários, nos quais viveu sua existência socialmente subjugada. Ela chega a seu próprio contexto, vinda de outro, penetrada pelo sentido dado por outros. O lugar do outro discurso não é ao lado, mas no discurso. (AUTHIER, 2004: 35,36)

O sentido de um texto não está, pois, jamais pronto, uma vez que ele se produz nas situações dialógicas, ilimitadas que constituem suas leituras possíveis: pensa-se evidentemente na leitura plural. (Idem, p. 26).

Nesse sentido, assevera Adélia:

“A poesia verdadeira vai levar só arroz e feijão para quem não conhece mais e algo além disso para as outras pessoas”. (CADERNOS: 32).

Antes do nome é um poema metalingüístico no qual vocábulos como “porém”, “que” são aspeados por serem participativos da significação, pois são relacionais de frases. Já “aliás”, surge como palavra de retificação, comumente usada na linguagem falada, na busca de precisão do sentido.

Essas aspas são a marca de uma operação metalingüística local de distanciamento, uma espécie de vazio a preencher, através de uma interpretação. As palavras aspeadas são palavras assinaladas como ‘deslocadas’, ‘fora de seu lugar’, pertencendo e adequando-se a um outro discurso. (AUTHIER, 2004: 221) As aspas são, portanto, em um discurso algo como o eco de seu encontro com o exterior.(Idem, p. 229)

O hibridismo do seu discurso pode ser percebido quando, ao lado de construções e de vocábulos mais comuns na linguagem oral, aparecem termos e construções mais formais, como “emerge”, “sítios escuros”, “incompreensível”, "infreqüentíssimos”.

Ao utilizar esse recurso a autora estabelece um diálogo tanto com o discurso da gramática, quanto com o discurso Bíblico, como veremos a seguir.

 

Com a Bíblia

É necessário acreditar que uma tal obra
é a soma, o resultado, de duas obras.

(MAIAKÓVSKY, 1984: 41)

A Bíblia muitas vezes é empregada na íntegra ou reescrita por Adélia Prado em seus poemas dando significado ímpar ao seu discurso. “À medida que você cresce na sua experiência com Deus, o horizonte da poesia se alarga”. (CADERNOS, 38)

Nesse poema o diálogo com o texto bíblico acontece no trecho da poesia que diz esplêndido caos de onde emerge a sintaxe com “A terra era sem forma e vazia, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”, encontrado em Gênesis 1:2. Esse verso bíblico descreve a condição do mundo como em estado caótico. Não havia luz sobre a terra e a matéria da superfície estava em estado líquido. Adélia sugere que as palavras, enquanto em situação de caos, isoladas, representam menos do que sua capacidade expressiva, assim como dizem Drummond e João Cabral: estão em estado de dicionário[4]. Além disso, podemos perceber nos versos dois e três do mesmo capítulo de Gênesis a referência ao Espírito de Deus, que primeiramente “se movia sobre as águas”, e depois, utiliza-se da palavra para fazer emergir do líquido caos planetário a luz, a ordem, as coisas, animadas e inanimadas, e, nesse sentido, aproximando-se da sintaxe que emerge do esplêndido caos, responsável pela organização das palavras nas frases.

A palavra é o elemento material que pode não somente dar um corpo como também vida à poesia. As palavras podem torná-la imortal. Drummond, no poema A procura da poesia[5], expressa a condição do poema antes de ser escrito: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.

A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema. (CANDIDO, 1977: 117-8)

Já, ao mencionar muleta, em muleta que me apóia, no verso cinco, a autora parece exteriorizar seu ponto-de-vista em relação à realidade do sistema lingüístico, referindo-se à necessidade da utilização de signos para se estabelecer a comunicação, considerando-o limitado e preso a regras e formas convencionadas que desafiam a criação de algo novo. O desejo da poetisa parece ser semelhante ao de uma pessoa que precisa de uma muleta para locomover-se; ambas desejam liberdade: aquela, das palavras, buscando ultrapassar seus limites significativos, indo além; esta, de movimentos, desvencilhando-se do aparato. Quem sabe até estabelecendo um contraste entre a limitação do ser humano com o poder ilimitado de Deus e uma semelhança no fato de poderem criar alguma coisa a partir do nada, utilizando apenas a palavra.

A reflexão sobre a arte literária e o ofício de escrever sempre foi uma preocupação dos grandes escritores conscientes de seu trabalho. No entanto, essa necessidade de pensar o "fazer poético" tornou-se verdadeira obsessão entre os escritores modernos, como é o caso, por exemplo, de Drummond e João Cabral de Melo Neto.

Esse cuidado com o uso da palavra pode ser compreendido com a leitura do que vem logo em seguida no texto quando Adélia Prado diz: Quem entender a linguagem entende Deus/ Morre quem entender, nos versos seis e sete. Aqui podemos perceber uma intertextualidade com a Bíblia em Esdras 9:15, onde encontramos um pensamento muito difundido em relação ao Velho Testamento:

Ó Senhor Deus de Israel, justo és, pois ficamos qual um restante que escapou, como hoje se vê. Eis que estamos diante de ti em nossa culpa; e, por causa disto, ninguém há que possa subsistir na tua presença.

Nele, a idéia de que Deus era um Ser poderoso e que estava pronto a castigar as criaturas errantes, submetendo-as a criatura à destruição pelo motivo da transgressão e da culpa, pode ser corroborada com o que lemos em Habacuque 2:20: “Mas o Senhor está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra”. O diálogo com esse trecho é recuperado quando Adélia assevera, no verso 9: foi inventada para ser calada.

O ser humano é limitado e Deus é ilimitado. Por mais significativas que sejam as descobertas sobre a linguagem, ainda há muito por fazer.

Se é, por toda parte, que um locutor se sente cercado de palavras que traem a realidade e o que ele queria poder dizer, ele encontra-se em situação de “sitiado” nas palavras, com uma fala abafada pelas aspas.(AUTHIER, 2004: 231)

Para finalizar, acrescentamos que a autora parece apresentar a epifania do surgimento do poema como fruto de um contato transcendente acontecido entre ela e Deus, somada à necessidade da transpiração, ou seja, a busca da palavra adequada, que poderá ser apanhada em momentos de graça, infreqüentíssimos, e agrupada numa formação discursiva.

 

Com Drummond

(...)

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.

São muitas, eu pouco.
(...)

(DRUMMOND, O lutador)

O sujeito, ao utilizar-se da palavra de outro, o faz marcando uma significação plural, resgatando o contexto histórico de um discurso anteriormente revelado. No caso de Adélia Prado, podemos perceber em freqüentes momentos o seu discurso dialogando, por meio do intertexto, com o discurso de Drummond.

Para este trabalho estudaremos o poema Antes do nome, de Adélia, e um recorte do poema A procura da poesia, de Carlos Drummond de Andrade.

Podemos dizer que há um intertexto com Drummond, quando ele enuncia:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra

E Adélia replica:

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe
os sítios escuros onde nasce o ´de´, o ‘aliás´,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apóia.

A heterogeneidade mostra-se entre o uso de alguns termos, como “reino” e “sítios”; “esperam ser escritos” e “onde nasce”. Drummond aconselha:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
ermas de melodia e conceito
e seu poder de silêncio

E Adélia responde:

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda
foi inventada para ser calada.

O contato com a palavra isolada e escolhida para ser inserida numa oração, não é uma obra fácil. São necessários tempo, conhecimento e sensibilidade.

Assim como Drummond, Adélia revela a necessidade de conhecimento do “reino das palavras”. A mesma luta com as palavras, o mesmo trabalho de lapidação do poema são apontados como elementos importantes do fazer-poético a fim de possibilitar uma leitura da máxima contemplação estética.

O desafio maior do poeta é o de dar sentidos especiais às palavras, demonstrando a maneira como ele vê o mundo, como estabelece um contato e uma inter-relação com o mesmo.

 

Considerações finais

Percebidos os diálogos nos textos de Adélia, podemos concluir que o seu discurso por ser poético é constitutivamente atravessado, permeado por outros que instaurando plurissignificância, deixa de ser um para tornar-se vários.

O leitor atento, ao perceber as teias tênues, descentraliza seu olhar numa visão caleidoscópica para “penetrar surdamente no reino das palavras”, estabelecendo relação, passando a “entender a linguagem” e, assim, aproximar-se de Deus.

 

Referências

ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. Revista e Atualizada. São Paulo:1993.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BAKTHIN, Voloshinov. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp, 2004.

CANDIDO, A. Inquietudes na poesia de Drummond. In: –––. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

Cadernos de Literatura Brasileira. Adélia Prado. São Paulo: Instituto Moreira Sales, nº 9, junho de 2000.

CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

MAIAKÓVSKY, Vladimir. Poética. São Paulo: Global, 1984.

MEIRELES, Cecília. Poesia completa, vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.

LAROUSSE. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural, 1992.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989.

NETO, João Cabral de Melo. Da educação pela pedra à pedra do sono. São Paulo: Círculo do Livro, 1965.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso. Campinas: Pontes, 2003.

PRADO, Adélia. Poesia Reunida. São Paulo: Arx, 1991.

QUEIROZ, Vera. O vazio e o pleno: a poesia de Adélia Prado. Goiânia: UFG, 1994.

 


 


 

[1] A íntegra do poema está em anexo 1.

[2] Oráculo: divindade que responde a perguntas dos crentes; sacerdote que intermediava as consultas. Houaiss, minidicionário da Língua Portuguesa. O oráculo é aquela voz que fala pelo invisível, é o invisível falando através daquele instrumento. (CADERNOS: 31)

[3] O poema está em anexo 2.

[4] Aqui Adélia faz referência a Carlos Drummond de Andrade em A procura da poesia “Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário”. E também a João Cabral de Melo Neto em Rios sem discurso “a uma palavra em situação dicionária”.

[5] O trecho do poema abordado está em anexo 3.

ANEXOS

Anexo 1

Antes do nome

Adélia Prado

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe;
os sítios escuros onde nasce o ‘de’, o ‘aliás’,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

 

Anexo 2

Com licença poética

Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


 

Anexo 3

A Procura da poesia

Carlos Drummond de Andrade

(...)

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

 


 

 

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