O DISCURSO POÉTICO
METÁFORA E INTERTEXTUALIDADE

Ivone da Silva Rebello (PCRJ)

 

POESIA E METÁFORA

Durante muitos anos, estudiosos da literatura tentaram explicar a linguagem da poesia. Sabe-se, porém, que o poema é construído com uma linguagem verbal específica, que utiliza “regras” próprias, as quais transformam o sistema lingüístico de uma língua. O poeta, com a sua prática discursiva, cria diferentes relações sintagmáticas e paradigmáticas, lançando mão dos diferentes sistemas lingüísticos: o fonológico, o morfológico, o sintático e, principalmente, o semântico, a fim de dar significação ao seu fazer poético.

Lotman (1973: 38) afirma que o texto poético apresenta

Uma estrutura artística complexificada, elaborada a partir do material da linguagem, permitindo transmitir um conjunto de informações cuja transmissão é impossível pelos meios de uma estrutura elementar propriamente lingüística.

Ao lermos obras escritas há alguns anos atrás, observaremos que os estudiosos da metáfora foram unânimes em afirmar que essa figura sempre esteve associada à poesia e à retórica (visão tradicional), diferentemente do que constatamos hoje.

A metáfora tem sido muito discutida tanto na área da estilística literária quanto na da filosofia, da lingüística e da semântica. Tais ciências interrogam-se sobre a natureza do fenômeno metafórico e procuram estabelecer critérios classificatórios. No entanto, notamos que a metáfora inclina-se mais para a criação literária, em especial, a poesia, daí ser considerada a figura eminentemente “poética”.

Aristóteles, o primeiro estudioso do assunto, em sua Arte Retórica e Poética, já afirmava que a metaphorá tinha um pé em cada campo. (FILIPAK, 1983: 38). Existia uma distinção clara entre a linguagem poética (vista como um dom especial dos poetas) e a linguagem do quotidiano (a linguagem de todos) – não há ninguém que na conversação não se sirva de metáforas. (ARISTÓTELES, [s/d.]: 209)

O mestre grego ([s/d.]: 332) definiu a metáfora como a transposição do nome de uma coisa para outra (...) por via de analogia. Percebe-se nessas palavras de Aristóteles que, na metáfora, estão presentes dois elementos (A e B), os quais são associados por uma relação analógica (relação C). Ao falar Da beleza do estilo, afirma que

De um modo geral, de enigmas, bem feitos é possível extrair metáforas apropriadas, porque as metáforas são enigmas velados e nisso se reconhece que a transposição de sentido foi bem sucedida. (ARISTÓTELES, [s/d.]: 211)

Podemos inferir, a partir dos ensinamentos desse pensador grego, que a metáfora, entre outros recursos, enriquece a mensagem, mas também pode torná-la obscura. No entanto, a metáfora pode ser usada para esclarecer uma idéia pouco conhecida, ou de difícil compreensão em si mesma.

O livro Rethorique Gènèrale do Grupo de Liège (grupo de professores do Centro de Estudos Poéticos da Universidade de Liège), publicado em 1970, aborda vários estudos dos processos metafórico e metonímico, baseando-se nas pesquisas semânticas de Pottier e Greimas. Segundo esse grupo, na constituição da metáfora há sempre um termo de partida (P), uma chegada (CH) e um termo intermediário (I), o qual assinala a interseção entre os dois termos. A metáfora, portanto, nesse ponto comum, vai unir os dois termos, incorporando-os, tornando-os um único.

No início da década de 80, Garcia (1985: 85) apresenta a sua visão sobre a metáfora e afirma que ela

consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo, por excelência, de B, feita a exclusão de outros secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A.

Assim, ao estabelecermos um estudo histórico, observaremos que desde Aristóteles até hoje, a constituição da metáfora é descrita com o mesmo modelo, sofrendo modificações apenas no que se refere à nomenclatura, ou seja, permanece a idéia de que a metáfora é transferência de sentido de um conceito a outro (base das definições de Aristóteles), é o resultado de uma operação de substituição.

Em todos os modelos propostos para a metáfora, temos:

· A – o termo a definir (o plano real);

· B – o comparante (o plano poético);

· C – o traço comum (o intermediário).

Na visão de Paul Ricoeur (1983: 148), em sua obra A metáfora viva,

Não há metáfora no dicionário, apenas existe no discurso; neste sentido, a atribuição metafórica revela melhor que qualquer outro emprego da linguagem o que é uma fala viva; esta constitui por excelência uma “instância de discurso”.

A tese defendida pelo autor é que a metáfora vai além da palavra, ou seja, ela apresenta significação no nível da frase.

Enfim, a metáfora é a mais importante das “figuras de palavras”. É muito mais. Também é criação lingüística, é conhecimento de realidades, é mudança de sentido. (CASTRO, 1978: 12) Ela desempenha um papel de fundamental importância na linguagem literária. Para que o enunciado (poético ou não) seja entendido com clareza, é necessário que a metáfora seja decodificada, ou melhor, seja explicada por outros termos que a tornem clara e precisa.

A metáfora, portanto, é um processo pelo qual o signo desenvolve suas potencialidades alcançando a pluralidade de significados. E a poesia só destrói a linguagem corrente para reconstruí-la num plano superior.

Os autores modernos afirmam que a metáfora é sintética e a comparação é analítica ou discursiva. Ou seja, a metáfora é considerada uma comparação implícita ou condensada e a comparação, uma metáfora explícita ou desenvolvida. Aristóteles já afirmava que a comparação é uma metáfora desenvolvida.

Segundo Quintiliano, de maneira geral a metáfora é um símil abreviado.(RICOEUR, 1983: 41) Também afirma que um tropo é uma transposição de uma palavra ou de uma frase, da sua significação própria para uma outra significação para produzir certo efeito. (INST. ORAT., VIII, cap.VI) E ainda nos dá algumas razões que levam a metáfora a ser a mais bela das figuras:

A metáfora é de todos os tropos o mais belo por quatro razões: I- é o mais natural; II- o mais agradável; III- o mais brilhante; IV- o mais rico. Duas espécies de necessidade fazem a metáfora a todo o homem que fala: a pobreza da língua, que não podendo ter tantas palavras, quantos são os objetos sensíveis; a impossibilidade de exprimirem as idéias abstratas, e as operações refletidas do entendimento, sem o socorro das imagens sensíveis, que por meio desta aplicação passam a ser ‘metáforas’. (INST. ORAT., VIII, cap. VI)

Um outro autor, Jacques Derrida, também apresenta a sua preocupação com a origem da metáfora na linguagem e declara:

A linguagem é originariamente metafórica. A metáfora é o traço que reporta a língua à sua origem. Épica ou lírica, relato ou canto, a fala arcaica é necessariamente poética. A poesia, primeira forma de literatura, é de essência metafórica. (1973: 330)

O filósofo francês Rousseau também nos diz que a primeira linguagem teve de ser figurada (cap.III). Em seu Ensaio sobre a origem das línguas, esclarece que:

Como os primeiros motivos que fizeram o homem falar foram paixões, as suas primeiras expressões foram tropos. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, o sentido próprio foi encontrado por último.

Só se denominaram as coisas por seus verdadeiros nomes quando foram vistas sob sua forma verdadeira. A princípio só se falou em poesia, só se tratou de raciocinar muito tempo depois. (p.164)

Enfim, na metáfora, o termo real (A) desaparece, está oculto sob o comparante (B), único a ser expresso em palavras.

A seguir, analisaremos alguns fragmentos de textos poéticos, destacando o sentido metafórico transmitido por esse discurso.

Palavras ao mar

Mar, belo mar selvagem,
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!

(Vicente de Carvalho)

Tigre expressa metaforicamente a força do “mar selvagem”. O mar transforma-se em um tigre e as suas ondas encrespadas pelo vento transformam-se no pêlo do animal eriçado pelo vento. O poeta trabalha com signos reais (= mar, belo mar selvagem) e signos metafóricos (= tigre). Entre o mar e o tigre, o poeta estabelece uma semelhança semântica: com a força indomável de ambos os seres.

Em Drummond, no seu poema No meio do caminho, temos:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Observamos que o poeta deixa transparecer uma relação entre a pedra e os “possíveis obstáculos da vida” que o deixa com as retinas tão fatigadas, pois sente uma forte resistência contra a qual todos os esforços seriam inúteis para transpor. Assim, a pedra, com sua dureza, irredutibilidade, constituindo-se num obstáculo no “meio do caminho”, está associada à significação de uma vida dura, cheia de decepções, frustradora para o homem.

Machado de Assis soube tirar grande proveito das figuras de palavras ou tropos, não só usando o que já havia sido teorizado por estudiosos no assunto, como recriando inúmeras figuras pelo jogo habilidoso das palavras, pela nova ordenação dos termos, pela alteração de seus próprios constituintes formais ou pela criação de novos campos significativos de muitas outras imagens.

Analisemos o poema Livros e flores:

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?

Observamos que no verso inicial de cada uma das quadras, o poeta compara olhos a livros e lábios a flores. Esse tipo de metáfora, denominada “pura” por alguns lingüistas, tem apenas o termo comparante B, que levará o leitor através do contexto a entender de forma “figurada”. Assim, nos três versos seguintes de ambas as quadras, a comparação desenvolve a figura expressa no primeiro verso. Notamos ainda que as duas quadras são sintaticamente semelhantes, estando metáforas e comparações organizadas em paralelismo sintático.

Segundo Vianu (1971: 28), o papel da metáfora é evitar a comparação. E a metáfora é o produto de uma operação mental mais rápida que a comparação.

Além disso, observamos que a poesia contemporânea utiliza-se de muito mais metáforas do que comparações, e Vianu esclarece que nossos processos mentais são mais rápidos, ao passo que a existência quase exclusiva de comparações nos poemas homéricos, pode ser interpretada como sintoma de sua Antigüidade intelectual e artística (...), mas não de seu primitivismo. (1971: 29)

Como exemplo, podemos citar o poema Menina na janela de Sérgio Caparelli:

A Lua é uma gata branca,
mansa,
que descansa entre as nuvens.
O Sol é um leão sedento,
mulambento,
que ruge na minha rua.

E, também, A ponte dos meninos de Maria Dinorah:

A ponte
é um rinoceronte
com pés de cimento,
peito de ferro
e um ar de eternidade.

No último poema do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles,

Treva da noite
lanosa capa
nos ombros curvos
dos altos montes
aglomerados...

percebe-se a alteração de sentido das palavras capa, lanosa e ombros, as quais recebem um segundo significado , em que o sentido de base e o acrescentado apresentam uma relação de semelhança, isto é, traços semânticos comuns. Assim, podemos entender que “a noite cobre os cumes dos montes com sua espessa treva”, tal qual uma capa de lã (lanosa capa) cobre os ombros. Temos, então, a relação de cimos dos montes com os ombros, porque ambos são curvos.

Observemos, ainda, o poema Lua cheia de Cassiano Ricardo:

Boião de leite
que a noite leva
com mãos de treva,
pra não sei quem beber.
E que, embora levado
muito devagarinho,
vai derramando pingos brancos
pelo caminho.

Nesse poema, a expressão boião de leite foge totalmente de seu sentido literal. Não podemos entendê-la como “um vaso bojudo de boca larga, usado para guardar líquidos...” (Cf. Dicionário do Aurélio), pois boião de leite/ que a noite leva/ com mãos de treva diz respeito ao movimento da lua no céu. Assim, boião de leite, metaforicamente, seria a “lua” (redonda e branca); os pingos brancos seriam as “estrelas”, construídas a partir do derramamento do leite.

Manuel Bandeira, em seu poema O bicho, apresenta-nos toda uma construção poética calcada na metáfora.

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Neste poema, o homem realiza atividades próprias dos animais: catando comida entre os detritos, ou seja, apanhando tudo sem escolher, sem selecionar; engolia com voracidade, isto é, devorava tudo ansiosamente sem sentir o gosto. No final do poema, esse homem é definido como um bicho. Todo o processo de construção do texto é metafórico, pois homem tem relação significativa com bicho. Enfim, o poema é uma crítica à degradação humana.

Catulo, um dos maiores poetas líricos de Roma, assinala em sua poesia uma profunda paixão por Lésbia. Seu amor aparece sob a linguagem metaforizada:

Iocundum, mea vita, mihi proponis amorem
hunc nostrum inter nos perpetuumque fore.

(Carm. 109)

Minha Vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.

A metáfora, portanto, é um recurso de criação e recriação dentro da língua, seja ela literária ou não.

 

POESIA E INTERTEXTUALIDADE

Nossa leitura intertextual se apóia nas teorias de Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Leila Perrone-Moisés, Laurent Jenny e outros. Esses autores mostraram como cada texto desconstrói outros textos, reescrevendo-os em outro momento histórico.

Não há texto primeiro, original, já que cada texto é uma citação de outro texto. E, do ponto de vista do escritor, o seu texto é citação (imitação, referência consciente ou inconsciente, pastiche, paródia, enxerto etc.) de um outro escritor passado, mas dentro de uma estética do receptor.

Em Bakhtin, as relações dialógicas são o princípio básico da intertextualidade. Essas relações consistem basicamente em pensar a história e a sociedade como textos que o autor assimila e, logo, insere em seu próprio texto. Assim, entendidas, veremos que a história e a sociedade se escrevem, e se lêem na infra-estrutura dos textos dos quais elas fazem parte e estes, por sua vez, fazem parte delas. (KRISTEVA, 1974: 62) O diálogo entre textos assegura, portanto, a continuidade literária e constitui, em nossos dias, um princípio fundamental de sobrevivência da prática poética. (KRISTEVA, 1974: 98)

Kristeva (1979: 13) observa que todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.

As relações textuais encerram toda a organização de um texto. Este, por sua vez, possui antecedente(s), ou seja, tem correlação com outro(s) texto(s).

Umberto Eco, ao escrever sobre o seu romance O nome da rosa, afirmou:

Descobri que os escritores sempre souberam (e nos disseram muitas e muitas vezes): os livros sempre falam sobre outros livros, e toda história que já foi contada. (HUTCHEON, 1991: 167)

Michel Faucault também declara que

As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma,        ele fica preso num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede. (HUTCHEON, 1991: 167)

Os três poemas a seguir ilustram claramente essa relação entre textos:

Meus oito anos

Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
(...)

Casimiro de Abreu

 

Meus oito anos

Oh! Que saudades que eu tenho
Da aurora de minha vida
Das horas
De minha infância
Que os anos não trazem mais
Naquele quintal de terra
Da Rua de santo Antônio
Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais
(...)

Oswald de Andrade


 

Ai que saudade...

Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais...
Me sentia rejeitada
Tão feia, desajeitada,
Tão frágil, tola, impotente,
Apesar dos laranjais.
(...)

Ruth Rocha

Ao lermos esses três poemas, observamos que apresentam muitos pontos comuns. O texto de Casimiro de Abreu foi escrito primeiro, os outros dois, publicados anos depois, tomam-no como modelo, citando alguns de seus versos. Essa citação é implícita, pois não se indica de onde foram retirados os trechos citados.

Há duas finalidades bem distintas no processo intertextual: reafirmar a idéia do texto citado e parodiar, ou contestar o texto citado.

Segundo Laurent (1979: 14),

A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizado, que detém o comando do sentido.

Se fizermos um estudo interpretativo, notaremos que o poema de Casimiro de Abreu apresenta um compromisso com a estética romântica, exalta o saudosismo, no caso, a infância, colocando-a como algo idealizado. Já o poema de Oswald de Andrade retoma os versos iniciais do texto primitivo e, logo a seguir, faz uma paródia, procurando desmistificar a infância como algo inocente. O mesmo faz Ruth Rocha: o eu do seu poema não sente de fato saudades da infância que passou.

O poema de Cacaso também dialoga com o de Casimiro de Abreu, mas acrescenta um leve tom de humor, muito bem adaptado ao espírito pós-moderno. O poeta utiliza expressões criadas por Casimiro, adaptando-as à sua expressividade em sentido paródico. Há todo um trabalho de recriação, mantendo, porém, algo da sua significação, embora constitua um desvio em relação a elas.

Meu verso é profundamente romântico.
Choram cavaquinhos luares e derramam e vai
Por aí a longa sombra de rumores ciganos.

Ai que saudades que tenho de meus negros verdes anos!

(CACASO, E com vocês a modernidade, poema de Beijo na boca, 1975)

E, conforme nos diz Affonso Romano (1988: 31-32),

O que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica. A paródia não é um espelho. Ou, aliás, pode ser um espelho, mas um espelho invertido. Mas é melhor usar outra imagem. E, ao invés do espelho, dizer que a paródia é como a lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura. (...)

A intertextualidade, portanto, não é o resultado da leitura paralela de muitos textos, não se dá em função desses textos, mas sim, estabelece uma relação com eles.

Todorov, em seu livro Estruturalismo e poética (1970: 33), afirma que

Um erro grosseiro consiste em considerar o texto imitador como substituível pelo texto imitável. Esquece-se que a relação entre dois textos não é de simples indicação, mas conhece uma grande variedade (uma primeira teoria da qual foi proposta por Bakhtin) e sobretudo, que uma grande parte da significação do segundo texto reside na referência ao primeiro. As palavras de um discurso conotativo remetem para dois sentidos, privá-lo de um ou de outro não é compreendê-lo.

Assim, a intertextualidade se apresenta como um processo de incorporação de um texto em outro, com a finalidade de reproduzir o sentido incorporado ou para transformá-lo.

A Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, por exemplo, já foi parodiada ou parafraseada em diversas épocas. No entanto, na criação desse poema, o poeta romântico se inspira numa balada do poeta alemão Goethe, da qual foi extraída a seguinte epígrafe:

Conheces a região onde florescem os limoeiros?
laranjas de ouro ardem no verde escuro da folhagem;
conheces bem? Nesse lugar
eu desejava estar.

(Tradução de Manuel Bandeira)

Vários outros poetas produziram intertextos, a partir desse poema, ou por simples imitação, ou para repensá-lo.

Vejamos o diálogo intertextual com o referido poema:

Canção do Exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
(...)

Nessa mesma época, Casimiro de Abreu também escreveu uma canção do exílio:

Eu nasci além dos mares:
os meus lares,
Meus amores ficam lá!
- Onde canta nos retiros
            seus suspiros,
Suspiros de sabiá!
(...)

Em outro poema, Casimiro de Abreu usa como epígrafe os dois primeiros versos do poema de Gonçalves Dias:

Minha Terra

Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá

Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da lira
hei de fazê-la rainha;
(...)

E, no Modernismo, com um tom de crítica, assim escreve Murilo Mendes a sua Canção do exílio:

Minha terra tem macieiras da Califórnia,
onde cantam gaturamos de Veneza.
(...)
Ai quem me dera comer uma carambola de verdade
e ver um sabiá com certidão de idade.

Drummond também escreve a sua Nova canção do exílio, que é dedicada a Josué Montello:

Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
(...)

Só na noite,
seria feliz;
um sabiá,
na palmeira, longe.
(...)

Ainda um grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
o fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

O poeta Mário Quintana escreve também a sua canção, mas com um olhar bem crítico e irônico:

Minha terra não tem palmeiras...
Em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
(...)

Mais recentemente, por volta dos anos 70, Cacaso, satirizando a ditadura, escreve:

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

Nesse poema, além da referência ao texto de G.Dias, encontramos também referências a outros textos: ao texto bíblico do milagre que Jesus transforma a água em vinho, juntamente com uma alusão irônica ao chamado, na época, “milagre brasileiro”, e, ainda, à letra da música “Tico-tico no fubá” de Zequinha de Abreu.

Podemos, portanto, perceber as várias formas de apropriação textual. As versões feitas por Casimiro de Abreu são paráfrases, enquanto as demais constituem paródias.

Um outro exemplo que podemos citar é com o Poema de Sete Faces de Carlos Drummond.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai Carlos! ser guache na vida

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
(...)

Adélia Prado, em seu poema Com licença poética, o primeiro de seu primeiro livro, dialoga com o texto de Drummond.

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
(...)
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
(...)
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

O anjo da poetisa é esbelto e toca trombeta. E o próprio título já nos dá pistas de um pedido de autorização ao poeta de Itabira, para poetar enquanto mulher. Dentro desse processo intertextual, o poema de Drummond pode ser lido como um discurso masculino, marcado pela melancolia, enquanto que o de Adélia, apresenta-se como um discurso eminentemente feminino.

E, Chico Buarque, parodiando o poema drummondiano, escreve:

Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim.
(...)

Portanto, na intertextualidade poética – segundo Perrone-Moisés – o resultado é um discurso único e totalmente novo (...). Nele assistimos a uma apropriação e a um englobamento. (1979: 215)

 

ORIGINALIDADE E INTERTEXTUALIDADE
NOS CLÁSSICOS

A mais antiga relação com a Natureza está no conceito de imitação. Escreve Aristóteles que a arte imita a natureza e que a imitação produz-se segundo... três modos,... a saber: os meios, os objetos, a maneira. ([s/d.]: 292)

Segundo M. Chauí

Imitar não significa reproduzir, mas representar a realidade através da fantasia e da obediência a regras para que a obra figure algum ser (natural ou sobrenatural), algum sentimento ou emoção, algum fato (acontecido ou inventado). (1994: 332)

Além da imitação, temos a criação vista segundo Aristóteles, como um ato sobrenatural, pois cabia à natureza humana copiar e repetir as criações dos deuses. Diante dessa visão, havia a necessidade da presença de um modelo para determinar os parâmetros da criação.

E assim, comparando a visão aristotélica com a de hoje, M. Chauí nos diz que

Enquanto na concepção anterior o valor era buscado na qualidade do objeto imitado (imitar um deus é mais valioso do que imitar um humano, mais valioso do que imitar um animal, planta ou coisa), agora o valor é localizado na figura do artista como gênio criador e imaginação criadora. (1994: 322)

Calpúrnio Sículo, poeta romano, é freqüentemente chamado de poeta pouco original.

Enquanto Virgílio se preocupava em pintar quadros que mostrassem a dor humana causada pela paixão, pelo sofrimento e a glória política dos tempos augustanos, Calpúrnio apresenta uma obra voltada para as glórias do novo soberano (Nero) que ascendia ao trono.

A imitação de Calpúrnio combina os elementos poéticos de seus predecessores, ou seja, estabelece um diálogo intertextual com as obras dos poetas Teócrito e Virgílio, sintetizando-as numa obra pessoal e, por isso, seus poemas não devem ser julgados como adaptações mas como uma criação.

Segundo Lyra (1980: 27):

O autor é, antes de mais nada, um indivíduo histórico concreto, nascido numa determinada época, numa determinada sociedade, com uma estrutura econômica, uma organização política, um sistema jurídico que condicionam sua existência desde antes do seu nascimento e aos quais ele não pode fugir. (...) ...ele tem que agir sobre a sua sociedade com os instrumentos fornecidos por essa própria sociedade, ou seja, por seu momento histórico.

A originalidade em Calpúrnio consiste na maneira como ele aborda os fatos de sua época. E assim temos:

et tenuere suos properantia flumina cursus;

Calp. Buc. II, 15

e os rios apressados retiveram seus cursos;

 

et mutata suos requierunt flumina cursus,

Virg. Buc. VIII, 4

e os rios mudados detiveram seus cursos;

...ite procul (sacer est locus) ite profani.

Calp. Buc. II, 55

...afastai-vos para longe, ó profanos, (o local é sagrado) afastai-vos.

...Procul, o procul este profani,

Vir. Aen. VI, 258

...Ó profanos, afastai-vos para longe, para longe daqui!-

rusticus est, fateor, sed non net barbarus Idas.

Calp. Buc. II, 61

Idas é rústico, eu reconheço, mas não é também bárbaro.

Rusticus es, Corydon:...

Virg. Buc. II, 56

És um rústico, ó Coridão:...

cerea sub tenui lucere Cydonia lana.

Calp. Buc. II, 91

que os marmelos amarelados luzem na árvore sob leve lanugem.

Celantur simili uentura Cydonia lana,

Martial, X, 42, 3

Na verdade estão escondidos os marmelos sob a nova lanugem,

At simul argutae nemus increpuere cicadae,

Calp. Buc. V, 56

E logo que as melodiosas cigarras fizeram ressoar o bosque,

Sole sub ardenti resonant arbusta cicadis.

Virg. Buc. II, 13

Debaixo de um sol ardente, os bosques ressoam com as roucas cigarras,

Assim é o fenômeno da intertextualidade: um entrecruzar de “fios” de obras de autores, de épocas e de espaços diferentes. E, conforme nos diz Barthes (1976: 166):

Cada fio, cada código é uma voz, estas vozes trançadas, ou que se trançam, formam a escritura. Quando está só, a voz não trabalha, não transforma nada, mas logo que a mão intervém para reunir e entremear os fios inertes, há trabalho, há transformação.

 

CONCLUSÃO

Concluímos, portanto, que desde Aristóteles, a metáfora vem sendo alvo de estudo e continua a desafiar lingüistas e literatos, que apresentam as mais diversas explicações para a sua natureza.

A metáfora sempre se constituiu num dos maiores recursos de criação e recriação dentro da língua. E assim, Coseriu (1955: 15) afirma que o conhecimento lingüístico é muitas vezes um conhecimento metafórico (...)

De qualquer modo, as expressões metafóricas numa língua, numa obra literária, refletem a intenção do autor, do falante em manifestar a sua emoção, a sua maneira de ver e avaliar os fatos, os acontecimentos de sua sociedade, como também de estabelecer um juízo de valor acerca de tudo.

Com relação à intertextualidade, podemos constatar que não há caminhos fechados no texto, pois todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos. (KRISTEVA, 1974: 174)

Nenhum texto é um fato isolado. Ele se insere num determinado momento histórico, além de ser marcado por condições inerentes a esse momento. O dialogismo, característico da linguagem poética, em suas estruturas, a estrutura lê uma outra escritura, se lê ela mesma e se constrói numa gênese destrutiva. (KRISTEVA, 1974: 98) Assim, a intertextualidade pode estar ligada ao conteúdo, à forma ou mesmo à forma e ao conteúdo de um texto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Arte retórica e poética. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d.].

BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: USP, 1999. (Ensaios de Cultura, 7)

BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1976.

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