O PERFIL DA MULHER NA MPB
NO PERÍODO DE 1930 A 1945
léxico e discurso

Manoel Pinto Ribeiro (UERJ)

 

“Mulheres são seres de cabelos longos
 e idéias curtas”

 

A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA
QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Análise de discurso – Contexto histórico e epistemológico

A Análise de Discurso surgiu na França, na década de 60, como resposta aos sintomas de crise (mudança no estatuto atribuído à análise do texto): crise na Lingüística; crise nas Ciências Humanas (História, Sociologia, Antropologia). Segundo Mariani (1997: 125),

A escola francesa de análise do discurso (de agora em diante AD) se apresenta como sendo uma teoria crítica da linguagem, constituindo uma disciplina que, por se situar no entremeio das ciências sociais humanas, encontra-se sempre reinvestigando os fundamentos de seu campo de conhecimento: as relações entre a linguagem, a história, a sociedade e a ideologia, a produção de sentidos e a noção de sujeito.

Os estudos no campo da língua deixam de se concentrar na palavra ou na sentença (limitando-se à frase), para ter como interesse o texto (Lingüística Textual, Semiótica e Análise de Discurso). Possibilita-se, assim, a instauração de novos objetos de análise: o texto e o discurso. Para este novo tratamento da língua, o texto não é uma simples soma de frases, mas um todo interligado, que significa.

A Análise de Discurso de linha francesa, foco deste trabalho, apresenta-se em duas correntes:

1. Análise de Discurso que concebe um sujeito onipresente com intenções e controle sobre o que diz (Charaudeau);

2. a que concebe um sujeito afetado pelo inconsciente e pela ideologia, constituído pela linguagem (M. Pêcheux).

Para a análise de discurso ora adotada, o discurso é um conjunto de textos disperso no espaço e no tempo: um discurso não se encontra todo reunido no mesmo texto. Ele está disperso por muitos textos, originários de diferentes “autores”, escritos em distintos espaços e em épocas diversas (Indursky, 1998: 10). Através do exame da materialidade do texto e da articulação do discurso com a história, pode-se atingir a discursividade. Assim, o texto, aqui, é considerado uma unidade aberta e pragmática, que se relaciona com a exterioridade, sendo marcado fortemente pela incompletude. Nessa perspectiva, o texto é o nosso objeto teórico, sendo lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade.

Além disso, o texto é afetado pela ideologia, posto que é na língua que ela se materializa, nas palavras dos sujeitos. Nesse sentido, o discurso pode ser considerado também como o lugar do trabalho da língua e da ideologia.

A análise nessa linha teórica permitirá que percebamos como um texto/dizer funciona, como produz sentidos como um objeto lingüístico-histórico.

O sentido, aqui, se dá no encontro da estrutura com o acontecimento (Pêcheux, 2003), por isso se pode falar em exterioridade de sentido, em pré-construído, interdiscurso. É nesse lugar de exterioridade que trabalharemos. É onde se encontram a ordem da língua e a ordem da história (Orlandi, 2004).

Outra categoria teórica que utilizaremos neste trabalho é a memória, que é a “re-atualização de acontecimentos e práticas passadas em um momento presente, sob diferentes modos de textualização, na história de uma formação ou grupo social” (Mariani, 1990: 38). Relendo as construções discursivas em torno da mulher no cancioneiro no período de 1930-1945, re-significaremos o lugar da figura feminina na memória sócio-histórica.

 

Paráfrase e polissemia: repetição e deslocamento do significado

A relação entre a paráfrase e a polissemia é contraditória, posto que ambas ocupam um lugar de tensão discursiva, um eixo que estrutura o funcionamento da linguagem (Orlandi, 1998). Um processo não existe sem o outro, o que conduz a uma diferença necessária e constitutiva. A paráfrase, em termos discursivos, é a reiteração, o uso do mesmo. Na polissemia, temos a produção da diferença.Tem-se uma relação entre o mesmo e o diferente, a produtividade e a criatividade na linguagem. O que funciona nesse jogo entre o mesmo e o diferente na constituição dos sentidos é o imaginário, é a historicidade na formação da memória.

Assim: 1) há um retorno ao mesmo espaço dizível (paráfrase), mesmo com variedade da situação e dos locutores: o MESMO; 2) há um deslocamento, um deslizamento de sentidos (polissemia), nas mesmas condições de produção imediata: o DIFERENTE.

Assim, na materialidade das letras do cancioneiro da MPB de 1930 a 1945, pretendemos perceber a identidade do jogo de sentidos entre paráfrase e polissemia, que configuram o confronto entre o simbólico e o político, ali em funcionamento.

 

O DISCURSO RELIGIOSO

A primeira notícia que se tem da ação da mulher é a da figura bíblica, que se encontra no Gênesis: 3, 6-7:

Viu, pois, a mulher que o fruto da árvore era bom para comer, e formoso aos olhos, e de aspecto agradável; e tirou do fruto dela, e comeu; e deu a seu marido, que também comeu. E os olhos de ambos se abriram; e tendo conhecido que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram para si cinturas.

O episódio bíblico é conhecido como a queda – ou perda da graça – de Adão e Eva e está inextricavelmente ligado à serpente que, em forma feminina, tentou a primeira mulher a provar do fruto proibido. A serpente é vista, por isso, como símbolo do logro e do mal causada pela língua solta, encarnando a tentação e o pecado (Bruce-Mitford. 2001: 59).

Eis o chamado pecado original, transmitido a todos os descendentes de Eva, que nascem em estado de culpa. Este pecado só pode ser regenerado, segundo a igreja cristã, pelo batismo. No texto bíblico nota-se o primeiro movimento discursivo cujos efeitos de sentidos relacionam à mulher a fraqueza diante do mundo, visto que foi Eva — ser de sexo fraco oposto, construído de uma ‘parte’ dispensável, diga-se de passagem, do corpo do forte homem — quem sucumbiu aos mandamentos divinos, “comendo o fruto proibido” e levando Adão ao infortúnio de ser desvirtuado e expulso por Deus do paraíso. Esse episódio bíblico parece marcar uma trajetória que irá, durante séculos, macular o papel da mulher no convívio social, devido aos reiterados processos parafrásticos a que será submetido.

Em textos medievais, encontramos a reprodução de discursos religiosos em que se inscrevem, por exemplo, efeitos de sentidos diabolizantes, que caracterizam a mulher como figura do “pecado”.

O imaginário daquela época tinha como discurso hegemônico que

Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é um animal imperfeito, sempre decepciona a mente (Araújo, 46).

 

Análise do perfil da mulher
em algumas canções do corpus
DIVISÃO DAS CANÇÕES EM GRUPOS DISCURSIVOS

Partimos de formações discursivas e formações ideológicas semelhantes, de modo que elas sejam amplamente justificadas, conforme as condições de produção do cancioneiro.

1.     Figura feminina associada a “pecado”/a “proibido”, a “mal”, atravessada pelo interdiscurso religioso da primeira mulher, Eva. O léxico associado a “perdão” foi registrado: Da cor do pecado, Os homens são uns anjinhos, Para me livrar do mal, Pra que mentir, Eva querida, Mentiras de mulher... Total: 10 canções.

2.     Figura feminina ainda atrelada aos discursos fomentados pela estética do Romantismo, a ela imputadas características de submissão, pureza, beleza, domesticidade, aquela mulher que é a base da família. De outra parte, na mesma formação discursiva, inscreve-se a “coita” de amor: Ai que saudades da Amélia, Emília.... Total – 27 canções.

3.     Ao mesmo tempo em que é afirmada a posição da “Amélia”, mulher do lar, doméstica e domesticada, está presente a mulher que é exatamente seu antagonismo, mulher da “orgia”, do “samba”, a “prostituta de luxo”, a “mulher motivo de chacota pública”, a “que abandona o lar”: A mulher faz o homem, Mulher indigesta, Quatro horas... Total – 11 canções.

4.     A construção discursiva maior, que se opõe à mulher “Amélia”, abre espaço não só para a mulher “da noite”, “da orgia”, mas também para a “negra e a “mulata”, esta considerada tipicamente como brasileira: Fez bobagem (atentar para a voz do eu lírico), O teu cabelo não nega... Total – 13 canções.

5.     Mulher que se revolta diante da atitude boêmia do homem Þ DISCURSO DE RESISTÊNCIA: Abre a janela, Se você jurar... Total – 8 canções.

TOTAL – 69 CANCÕES

No conjunto de letras do corpus que reunimos até o momento, a imagem da mulher ali refletida é dotada de heterogeneidade. Apesar de a época de 1930 a 1945 ser marcada por uma mulher coagida pelo controle social, pelas responsabilidades de esposa e mãe de família, pela instituição religiosa e por sua forte autoridade, uma outra figura feminina aparece:

Quatro horas da madrugada
mulher, por que veio tarde assim?
Você, quando vai para a orgia
emendando a noite ao dia
Não se lembra mais de mim

(H. Martins / F. Senna, Quatro horas)

Essa outra mulher parece agir como um homem boêmio. O léxico, composto de palavras como “madrugada” e “orgia”, remete a uma figura de mulher da noite, dotada de furor sexual. Dela o homem cobra uma satisfação — são “quatro horas da madrugada” — e carinho — “não se lembra mais de mim”. O sentimentalismo romântico do homem diante da atitude masculina e fria da mulher mostra uma inversão nos papéis sociais tradicionais. O homem ocupa o lugar até então relegado à mulher. Nessa tendência de identidade discursiva, também podemos citar:

Eu nunca vi tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz (...)

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê, você quer
Ai, meu

Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher.

(Ataulpho Alves/ Mário Lago, Ai que saudades da Amélia)

Nossa hipótese para esse tipo de construção da figura feminina é de que está em inscrição uma outra mulher, que deseja independência, que é vaidosa, que se preocupa com o próprio bem-estar e reivindica o equilíbrio das funções do lar. Nos dois últimos versos, podemos notar pistas do antigo lugar ocupado pela mulher, dentro do pensamento dominante na época.

Há, dessa forma, duas imagens de mulher inscritas na letra da canção “Ai que saudades da Amélia”, confirmando nossa hipótese de que podemos, analisando as condições de produção da música, perceber o perfil da mulher oscilando entre dois pólos:

a) a mulher sob o jugo da família, pura, casadoura, virgem, fiel, submissa ao marido após o casamento e cumpridora dos afazeres domésticos;

b) a mulher que busca o prazer, seja pelo luxo, seja pela liberdade, pelos novos desejos e exigências.

Nesse sentido, “Amélia” é atravessada por interdiscursos que colaboram na sua heterogeneidade constitutiva (Authier-Revuz: 1998). A exterioridade que cerca a imagem da mulher é o que permite que tracemos os dois pólos acima. Ali, em acordo com nosso recorte teórico, duas ideologias antagônicas se materializam:

a) a mulher do passado, nomeada “Amélia”, “mulher de verdade”, “dotada de razão”;

b) a mulher do presente, à procura do prazer de viver, tendo sua conduta dotada de emoção — “não tem consciência”.

Ainda em “Amélia, podemos ainda notar, a título de reforçar nossa hipótese de que a mulher está se deslocando de lugar naquela sociedade, a posição de resistência que ocupa o homem: sente saudades de uma mulher que sofria sem reclamar, ao contrário, apaziguava o que poderia ser índice de conflito:

Às vezes passava fome ao meu lado
e achava bonito não ter o que comer
e quando me via contrariado
dizia: meu filho, o que se há de fazer?

Para se perceber o esforço do homem em manter o anterior controle sobre a mulher, veja-se:

Me respeite, ouviu?
por favor
o ambiente está carregado, ó filha
(...) eu não quero perder a linha (...)
eu já vim da rua um bocado aborrecido
(...) em vez de me acalmar, para eu poder dormir
você procura um pé para brigar, pra discutir
cala a boca, Lili

(“Me respeite, ouviu? / Walfrido Silva – 1933)

Certamente que a posição discursiva de resistência do homem é domesticada pelo recurso do humor (tanto em “Amélia”, quanto em “Me respeite, ouviu?”) e da aproximação da Amélia com uma mulher oriunda da população de menores recursos financeiros.

De outra parte, analisando a mulher da elite que viveu aquele período histórico, verifica-se que ainda estava sob o jugo de discursos hegemônicos e moralizadores. Ela não era “Amélia”, nem nunca fora. Todavia, se submetia da mesma forma ao seu esposo, não se achando no direito de questioná-lo, cumprindo seus “deveres” de esposa e mãe de família.

A instituição religiosa fazia parte dos recursos que permitiam o controle do deslocamento do lugar da mulher. A autoridade imposta pela tipologia do discurso religioso é reproduzida em diversas composições:

Todo mal que há no mundo
Foi a mulher quem criou
só não sabe esta verdade
Quem nunca experimentou

(Mesquita e Zeca Ivo. Os homens são uns anjinhos)

Acima, percebe-se a paráfrase bíblica da primeira mulher, Eva, expulsa do paraíso por não resistir à tentação da serpente. Também, no decorrer da letra da música, são notados traços típicos do discurso religioso como o emprego de antíteses — “diabinhos” x “anjinhos”; “verdade” x “mentira”/”falsidade”; “mulher” x “homem” (Orlandi, 2004).

O léxico configura-se predominantemente com substantivos relacionados à religiosidade: “anjos”, “diabinhos”, “diabo”, “encarnação”, “pecado”, “tentação”.

A mulher, nas letras acima, é o oposto da pureza romântica. Está no plano terreno/mundano, longe de ser idealizada pelo homem — “mulher é a mãe da mentira”.

Na mesma filiação discursiva, notamos outra produção:

Pra que mentir,
se tu não tens esse dom
de saber iludir?
Para quê? Pra que mentir,
Se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir,
se tu não tens a malícia
de toda mulher? (Noel Rosa / Vadico – 1937)

Novamente, efeitos de sentidos relativos a uma demanda de razão da mulher são parafraseados. O homem chama a mulher à razão, tece argumentos que vão tirando da mulher motivos por que “mentir”. A busca pela razão é reiterada pelas orações condicionais, que constituem premissas para que se conclua a desnecessidade da mentira.

Analisando as condições de produção de “Pra que mentir”, pesquisamos o perfil da mulher que motivou a escritura da música. Trata-se de Ceci, uma mulher que trabalha como dançarina de cabaré, na noite. A informação nos foi relevante à medida que passamos a perceber outra direção discursiva do perfil feminino: o homem parece sofrer pela mulher que está fora do padrão social: pela dançarina de cabaré — que possui vários “affairs” — ou pela “morena” — a mulata que caracterizamos na introdução deste trabalho como figura do proibido.

Morena boca de ouro
o que me faz sofrer o teu jeitinho que me mata
roda, morena, cai , não cai
(...) samba, morena, e me desacata,
morena, em brasa viva (...)
O amor é um samba tão diferente, morena,
samba no terreiro, pisando sestrosa, vaidosa (...)
morena, tem pena de mais um sofredor

(Ary Barroso. Morena boca de ouro)

Sobre a questão da mulata e sua presença em algumas produções da época, nossa hipótese inicial é de que estamos diante de uma ruptura com a tradição escravista: até então, o negro não tinha participação expressiva na cultura. As produções desse período, que misturam compositores da Zona Sul com aqueles que habitavam os morros do Rio de Janeiro permitem que os mecanismos de controle social (Foucault, 2003) abram um espaço, ainda domesticado por estigmas e preconceitos, para a etnia negra, maciçamente presente no país.

O teu cabelo não nega,
mulata,
Porque és mulata na cor
mas como a cor não pega,
mulata,
mulata quero o teu amor

(Lamartine Babo, & Irmãos Valença. O teu cabelo não nega)

O fragmento acima tem como efeito a contradição – admiração e preconceito em torno da figura da mulata convivendo na mesma materialidade lingüística.

Os interdiscursos que colaboram para a nossa hipótese se inscrevem no movimento estético e literário Modernista, eclodindo no país e sendo disseminado, através da paráfrase e da polissemia.

 

CONCLUSÃO

Procuramos com este pequeno ensaio trabalhar alguns conceitos introduzidos pela teoria da Análise de Discurso francesa, representada por Pêcheux, Orlandi, Mariani e outros. Nossos esforços se concentraram na leitura da bibliografia do curso e no aproveitamento do que já temos como material de pesquisa de doutoramento.

Reiteramos que este trabalho postulou lançar hipóteses iniciais acerca do corpus de que dispomos. Desta forma, pretendemos dar curso e aprofundar nossa pesquisa em termos do que vinha ocorrendo no período histórico em torno da mulher e identificar outras filiações discursivas e ideológicas que possam ter colaborado na significação da mulher do modo como descrevemos.

 

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