OLHA SÓ, OLHA LÁ NA DÊIXIS CONVERSACIONAL
Sandra Bernardo (UERJ e PUC-Rio)
Apresento, nesta comunicação, reflexões acerca dos sinalizadores olha só e olha lá (aqui e ali) em ocorrências do Banco de Dados Interacionais (Roncarati, 1996). Este trabalho integra o estudo de algumas formas que desempenham funções dêiticas em conversas informais à luz da abordagem sociocognitiva.
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Embora a forma olha não figure como elemento dêitico nos estudos de pragmática da língua portuguesa, seu papel na sinalização de referentes, a partir da abertura de um espaço‑FOCO, me levou a considerá-la entre as estratégias dêiticas empregadas na conversa ora em análise.
Outro fator que me permitiu atribuir ao olha a referida função é a concepção de dêixis como uma projeção da metáfora APONTAR PARA (Marmaridou, 2000). Em outras palavras, o ato físico de apontar é projetado num espaço conceptual. Além disso, a dêixis é interpretada como uma noção escalar em cujo extremo poderiam ser encontrados alguns mecanismos anafóricos e discursivos.
Foram encontrados na amostra casos de olha prototípico, com sentido de identificar algo visualmente, e casos que envolvem projeções metafóricas, com o sentido de prestar atenção, empregados como sinalizadores que assinalam a introdução de novos argumentos/tópicos na conversa. Em geral, tais (sub)tópicos envolvem acesso a entidades novas ou inferíveis no discurso. Assim, nessa função, o olha é estruturado pelas metáforas COMPREENDER É VER, IDÉIAS SÃO OBJETOS e O DISCURSO É UMA FONTE DE LUZ. Registram‑se ainda casos limítrofes que reforçam o caráter gradiente desses usos.
A categorização proposta para tais formas se baseia em propriedades interacionais que emergem de experiências partilhadas entre as pessoas nos diversos ambientes físicos e culturais. Repousa, sobretudo, em duas dimensões naturais dessas propriedades: (i) a dimensão funcional, baseada na concepção das funções dos objetos, e (ii) a dimensão intencional, baseada nos usos de um objeto em determinadas situações. Essas propriedades foram consideradas as mais relevantes no caso das formas em estudo, devido ao modo como são empregadas nas interações, sinalizando a organização e o propósito do discursivo.
Concentrar-me-ei, aqui, nos casos em que olha aparece ligado a delimitadores como só e lá (aqui e ali), especulando sobre a hipótese desses hedges (Lakoff & Johnson, 2002) reforçarem o caráter metafórico da função dêitica de olha. Tais delimitadores revelam uma categorização de olha no sentido de uma abstratização crescente, à medida que a projeção metafórica atua sobre a semiose dessa forma.
Nesse sentido, postulei que o aqui delimita/insere o olha na categoria de dêitico prototípico, como na unidade entonacional olha aqui óh (BDI 12), em que o falante se refere às suas cartas numa conversa entre aposentados durante um jogo. O fato de aqui ser um dêitico de lugar delimita o sentido de dêitico prototípico a essa ocorrência de olha aqui. Contudo, há casos dessa forma considerados limítrofes, porque foram empregados para sinalizar os participantes da interação e não um referente situacional, conforme os excertos (1) e (2), abaixo:
(1) J = 90 Olha aqui Neide (Inint) ... eu vou cortar você também ...[1] (BDI 1)
(2) J = Olha aqui querida- (BDI 5)
Em (1), falante afirma que vai interromper fala de Neide, que, em passagem anterior, reclamou de não conseguir falar. Em (2), a falante tenta se expressar, mas não consegue a posse de turno. Nos dois casos, a forma olha aqui é emprega para chamar atenção sobre o papel dos referidos participantes da interação, ou seja, falantes ressaltam, ou tentam ressaltar, seu próprio papel no evento em andamento, chamando a atenção para seu discurso e não para o tópico do discurso.
Todavia, como essa participação visa à construção conjunta da conversa, considerei uma categoria intermediária entre um emprego prototípico e um metafórico (prestar atenção), para o olha. O hedge aqui delimita falante como centro dêitico no discurso, tornando‑o uma entidade que refere e é referenciada. O fato de ter ocorrido na conversa a forma aqui olha com função de dêitico prototípico pode reforçar a tendência de olha ser interpretado metaforicamente.
Entre os casos de olha prototípico, também foram encontrados olha lá e olha ali, conforme (3) e (4), abaixo:
(3) G = 308 Um coxão. ... Olha lá. ... Nossa mãe (BDI 3)
(4) I = 295 Quanto que tá a batata frita? (...) Se não me engano. ...
300 Olha ali. (BDI 4)
Em (3), conversa que ocorre no alojamento masculino, o falante ressalta espessura da coxa de uma das participantes que ofereceu colo ao colega sem travesseiro. Em (4), após dúvidas quanto ao preço da batata frita, falante C localiza a placa do trailer onde os preços estão listados.
Os casos de olha só revelaram sentidos prototípicos, limítrofes e metafóricos. O só funciona como um delimitador que atenua o custo da atenção dos demais participantes e/ou a posição defendida pelo falante. No excerto (5), abaixo, um caso de olha só prototípico.
(5) M = 013 Ô meu pé inchado
olha só. ... Chega a fazer dobrinha ... tá vendo? (BDI 2b)
Nessa passagem, a falante M muda o tópico da conversa, sinalizando seu pé inchado, já que, na passagem anterior, duas participantes do evento comentavam sobre teor calórico do arroz‑doce que estava sendo preparado por uma delas. Trata‑se, portanto, de um olha só prototípico, em que o só ressalta o inchaço.
Em seguida, apresento alguns casos considerados limítrofes, a partir dos excertos em que ocorrem.
(6) S = 384 Como é que você fez essa perspectiva? ... Com um ponto no centro?
M = 386 Ponto de fuga.
387 Um ponto cá longe
J = 388 Olha só.
389 e outro aqui mais pertinho.
390 Vamos então logo (Inint.) logo agora
S = 391 [Você colocou medidas?]
392 A gente fica na fila lá
[[
M = 393 Coloquei. (BDI 2a)
Devido à transcrição não deixar claro quem expressa os enunciados 387 e 389, o olha só foi classificado como limítrofe, embora a leitura do contexto anterior das unidades acima tenha me conduzido a atribuir tais falas a M, enquanto a falante J apressa a participante Ana sobre a ida a algum lugar. Nesse caso, a fala de J em 388 teria um caráter modalizador, no sentido de atenuar a cobrança acerca do horário, devido ao delimitador só. O mesma função de só pode ser observada abaixo
(7) M = 333 UAU! ... Que lindo! ... Que baRA:to:!
J = 337Olha só gente. ... Tem que ser caro assim mesmo. (BDI 2b)
Em passagem anterior a (7), as falantes vinham discutindo sobre os produtos da Natura serem caros ou não, enquanto examinavam alguns produtos, até que M ressalta a beleza de um estojo de maquiagem, levando a falante J a retomar a questão do valor dos produtos dessa empresa. Logo, um caso de olha com função limítrofe, pois, ao mesmo tempo em que a falante pode estar mostrando o estojo, também está reforçando a tese de que os produtos não seriam tão caros, se considerada a qualidade dos produtos. Em (6) e (7), o só confere uma espécie de sentido concessivo ao posicionamento inerente ao enunciado, protegendo a face do falante.
(8) J = 645 Aí
646 olha só ... dondoca. ... Óleo ... manteiga ... dá aquela refogadinha. (BDI 2b)
Em (8), a falante J explica como refogar o arroz que vinha sendo preparado sem muita perícia. Outro caso de expressão que pode significar presta atenção devido ao delimitador, não obstante a referência à participante dondoca. Esse tipo de uso apresenta um paralelo com o emprego de olha aqui em (1) e (2), reforçando o contínuo de abstratização e o caráter delimitador desse dêitico e de só.
(9) C = 1127 Por sinal ... aperta aqui a mão que você deve a mim né? ... ((Risos))
A = 1129 Ih é!
1130 Olha só! (BDI 4)
Nessa passagem, falantes estão conversando sobre um colega agregado no alojamento de uma das participantes, quando A afirma que possui um colchão sobrando. Em seguida, C lembra algum tipo de favor prestado ao falante A. Após isso, todos comentam sobre o lugar onde colchões são escondidos, bem como sobre empréstimos dos mesmos. Assim, embora o que tenha levado ao enunciado 1130 não fique explícito, devido ao conhecimento partilhado pelos participantes, atribuí ao olha só um caráter limítrofe, porque o falante pode estar enfatizando a atitude do colega ou o ato de ambos apertarem as mãos.
Nos excertos (10) a (13), analiso casos de olha só que sinalizam argumentos.
(10) M = 405 Olha só... porque a Maria Amália... você sabe eles têm medo... né? (BDI 5)
(11) R = 528 Olha só! ... Eu fiquei com raiva ... porque eu- eu fui lá ... com toda boa vontade ... me vesti de noiva (BDI 5)
(12) M = 751 Olha só ... é que vocês rodam- ((Pigarreando)) {segue trecho com superposição}
759 Hein Júlio.
760 Vocês rodam ... prova demais. (BDI 5)
(13) F1 = 378 O trabalhador NUNCA foi responsável pela inflação.
379 Todo mundo sabe disso ... Até o seu Delfim Neto!
381 Olha só ... Delfim Neto ... até o Dr. Delfim Neto ... que já enfiou muito a mão no nosso bolso outro dia tava na Folha de São Paulo dizendo ... que o governo ... tá dizendo agora ... que o trabalhador é o culpado pela inflação. ... Achou um absurdo. (BDI 9d)
Em (10), a falante introduz um (sub)tópico questionando a intervenção de uma colega na organização da festa junina, a qual aparentemente se impõe em relação aos demais colegas. O só delimita/atenua a força da crítica, protegendo a face da falante. Em (11), a falante M relembra falta de reconhecimento de seus esforços para participar da festa junina, que, segundo sua avaliação, foi mal organizada. Nesse caso, o olha só, com entonação exclamativa, reitera a indignação da falante.
A passagem de (12) refere‑se a um trecho em que os participantes da conversa estão reclamando dos gastos com cópias de provas e da relação preço-qualidade do serviço de algumas copiadoras próximas à escola. Nesse contexto, a falante introduz de forma modalizada uma crítica à postura dos colegas.
Em (13), observa‑se parte do discurso de um sindicalista que critica argumento do governo para não conceder aumento aos trabalhadores de uma empresa estatal. O falante enfatiza seu argumento, citando opinião de autoridade em economia de governo anterior.
Em todas essas ocorrências, o olha só assinala a abertura de um novo (sub)tópico na conversa que reforça a posição do falante, de forma modalizada (10, 12 e 13), ou enfática (11). Na passagem (14), abaixo, também pode ser observado o caráter modalizador de olha só.
(14) Rol = 54 Aí... houve uma comissão... hein...
Ros = 57 Desfilaram?
Rol = dos oficiais
olha só ... os oficiais ficaram sentados assim... numa comitiva né? ... E elas {mulatas} desfilando na frente deles. Então... o pessoal sentado ficava com- ... com os olhos assim bem no horizonte né?
AC = 69 Hum-
Rol = No horizonte ... certo né?
Ros = Sei.
Rol = Aí ... olha só... elas fizeram... davam aquelas voltas e tudo ... aí o pessoal... (BDI 13b)
Nesse excerto (14), falantes conversam sobre uma festa promovida pela Aeronáutica, a fim de comemorar a libertação do rei Zulu, na qual houve desfile de mulatas. Todos conversam em tom jocoso sobre o evento. O falante Rol tenta relatar certo embaraço dos oficiais, que, por estarem muito próximos às mulatas, pareciam evitar olhá‑las diretamente. A expressão olha só é empregada em momentos de ameaça à posse de seu turno, como forma de sinalizar aos interlocutores que está chegando ao seu objetivo, ou seja, é como se sinalizasse que quer somente mais um pouco da atenção dos demais participantes. Nesse sentido, minimiza a necessidade de atenção.
De uma maneira geral, pode‑se considerar como propriedades comuns às formas analisadas aqui o fato de participarem da estruturação do discurso em termos organizacionais, já que sinalizam etapas da construção do discurso, e em termos conceptuais, na medida em que sinalizam FOCOS e PONTOS de VISTA do enquadre dessa construção. Em outras palavras, tais formas sinalizam etapas, posições e intenções inerentes à compreensão do discurso conversacional.
Referências bibliográficas
BERNARDO, Sandra Pereira. Foco
e
CLARK, Herbert H. Using language. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
FAUCONNIER, Gilles.
LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things. Chicago: Chicago University Press, 1987.
–––––– &
JOHNSON, Mark.
MARMARIDOU,
Sophia S.A.. Pragmatic meaning and cognition. Amsterdam/Philadelphia:
John
RONCARATI, Cláudia (org.).
[1] As reticências foram utilizadas para delimitar as unidades entonacionais da transcrição, ao passo que o hífen foi usado para marcar unidades truncadas.
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