PROCESSOS CONCESSIVOS
UM ESTUDO FUNCIONAL-DISCURSIVO

Clara Araujo Vaz (UFRJ)

Este trabalho só foi possível devido ao apoio dado pelo CNPq.

Introdução

É muito freqüente o uso de processos concessivos em textos do domínio jornalístico, especialmente os que exprimem opiniões e abordam assuntos polêmicos. A concessão se revela, então, uma ferramenta indispensável na tessitura de textos em que a argumentação é a estratégia dominante.

Apesar de sua larga utilização como estratégia argumentativa e organizacional de textos, apresentando usos variados, o estudo dos processos concessivos pela Gramática Tradicional (GT) leva em conta somente o nível sentencial e reserva o termo concessão apenas para as orações e conjunções subordinadas adverbiais. Desse modo, a Tradição limita o escopo da concessão a um único tipo de classificação e deixa de lado o contexto interacional e discursivo.

Para a realização deste trabalho, foram analisados 10 textos do gênero editorial, do projeto VARPORT, na variante do português brasileiro, selecionados entre os anos de 1960 e 2000.

A partir da análise de dados de usos reais, o trabalho visa a demonstrar:

1) que os processos concessivos não se limitam apenas às cláusulas subordinadas adverbiais, envolvendo também as tradicionalmente chamadas orações coordenadas adversativas;

2) que a concessão é uma estratégia que auxilia na organização textual, orienta argumentativamente os enunciados e deixa transparecer as várias vozes contidas em um texto polêmico, em que opiniões contrárias se entrechocam, ou seja, se revela como índice do fenômeno da polifonia;

3) que a concessão e suas muitas realizações são constitutivas da lógica argumentativa e que, por isso, se mostram tão presentes em textos de tipologia argumentativa dominante, como o gênero editorial.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Abordagem Funcionalista

O Paradigma funcional leva em conta que a finalidade da linguagem humana é a comunicação e vai, então, analisar os componentes lingüísticos de dada língua em situações reais de uso. Para Van Dijk (2004: 183)

...constitui uma das marcas específicas das abordagens funcionais da língua enfatizar a natureza discursiva da linguagem e analisar (pelo menos algumas) estruturas sentenciais como funcionalmente dependentes de estruturas de texto e de fala.

Assim, para Halliday e Hasan, a concessão está inserida nas realizações adversativas, que possuem o significado básico de “contrário às expectativas” e chamam atenção par o fato de que essa expectativa pode ser derivada do conteúdo do que se está falando ou da situação comunicativa entre falante e ouvinte (1976: 250).

The speaker of the language recognizes that the same phenomena may appear in different structural shapes and sizes; and he is aware that certain types of phenomena are likely to be linked to one another by certain types of meaning relation. (Hallyday & Hasan, 1976: 229)

Outro ponto a ser enfatizado na abordagem funcionalista tanto de Halliday e Hasan, quanto na de Matthiessen e Thompson é o fato de que somente o nível sentencial não é suficiente para abordar de forma satisfatória o fenômeno da subordinação e outras formas de conjunção. É necessário se ater a uma análise que leve em conta o nível do discurso.

...we will suggest that it is not possible to define or even characterize ‘subordinate clause’ in strictly sentence level terms...in order to characterize what is what distinguishes a ‘subordinate’ from a ‘main’ clause one must appeal to the discourse context... (Matthiessen & Thompson, 275)

Van Dijk, por sua vez, ao priorizar o aspecto semântico em sua análise, agrupa as concessivas no grupo das contrastivas. Para o autor as contrastivas representam eventos não esperados, exceções ao curso normal dos acontecimentos em ‘mundos normais’. Dentro desse grupo estão conectivos que expressam relação de contraste entre fatos e que pertencem a diferentes categorias, como conjunções (coordenativas e subordinativas), advérbios e preposições (Van Dijk, 1982: 81).

Já para Moura Neves (2000: 872), a análise das concessivas deve também levar necessariamente em consideração a relação falante-ouvinte, conhecimento partilhado, argumentação e objeção. Logo, a análise das construções concessivas sob o ponto de vista da pragmática se torna essencial para um estudo mais acurado e completo de sua natureza argumentativa.

O mecanismo argumentativo das concessivas se resumiria, segundo a mesma autora (2000: 874-5), à existência de dois argumentos que conduzem a conclusões implícitas contrárias. O falante registra uma objeção provável que o ouvinte possa ter sobre o assunto, mas deixa prevalecer a da oração principal, ou seja, o seu ponto de vista.

Moura Neves (2000: 874) aponta para o fato de que “como construções contrastivas, as concessivas são essencialmente argumentativas”. Daí seu parentesco com as adversativas.

Sobre essa idéia de uma base essencialmente argumentativa da construção concessiva, podem ser examinadas as similaridades e as diferenças entre concessivas e adversativas. (Moura Neves, 2000: 876)

Abordagem Semântico-Argumentativa

Ducrot cunhou o termo operador argumentativo para designar que certos elementos de uma língua orientam argumentativamente os enunciados. Dentro dessa perspectiva, há um argumento mais forte dentro de uma escala argumentativa que vai se sobrepor aos outros argumentos ali existentes (Anscombre & Ducrot, 1983: 105).

O esquema básico da concessão para Ducrot (1980: 97) é representado pelo operador argumentativo mas, nas seguintes proposições: “Le mouvement de pensée impliqué par une phrase affirmative du type P mais Q pourrait être paraphrasé ainsi: “oui, P est vrai; tu aurais tendence a conclure r; il ne faut pas, car Q (Q étant présenté comme un argument plus fort pour non-r que n’est P pour r).”

Para Ducrot, mas faz mais que simplesmente adicionar uma informação ao enunciado e não indica que as proposições P e Q são propriamente opostas em si mesmas, mas que elas se opõem no que concerne ao movimento argumentativo em relação à conclusão r: “Elle (a proposição introduzida por mas) ne l’annule pas, en ce sens qu’elle la maintient au niveau des faits. Mais elle la dépasse, en ce sens qu’elle la disqualifie du point de vue argumentatif” (Ducrot, 1980: 97-8).

Por fim, resta falar do fenômeno da polifonia lingüística, desenvolvida por Ducrot (1984) em seu célebre artigo “Esquisse d’une théorie polyphonique de l’énonciation”. A polifonia, segundo Koch (2001: 58) é “o fenômeno pelo qual, num mesmo texto, se fazem ouvir “vozes” que falam de perspectivas ou pontos de vista diferentes com as quais o locutor se identifica ou não”.

Os operadores do grupo do mas e do embora são índices de polifonia (Koch, 2001: 58), pois veiculam enunciados que orientam para conclusões contrárias em que há sempre vozes que se entrechocam, mostrando perspectivas diversas. Essas vozes estão representadas na proposição p que representa uma outra opinião, que não a do locutor, a que se dá certa legitimidade e importância, sendo mesmo capaz de negar a proposição do locutor. Contudo, a proposição q a anula, mostrando que o argumento do locutor é o mais forte. Logo, mas e embora mostram a “não adesão do locutor à perspectiva polifonicamente introduzida” (Koch, 2003: 65).

A polifonia é uma estratégia argumentativa em que o locutor dá importância e legitimidade à outra ou outras vozes para atenuar, mas não enfraquecer, o impacto de seus argumentos. Segundo Guimarães (2001: 118): “...pela convivência de perspectivas opostas o texto se constrói numa direção e busca a adesão do leitor para a direção oposta à sua própria construção”. Para Charaudeau e Maingueneau (2004: 111): “Na interação, a concessão surge como um passo feito em direção ao adversário; ela é constitutiva de um ethos positivo (abertura, atenção para com o outro)”.

Os Processos Concessivos,
a Tipologia Argumentativa e o Gênero Editorial

A concessão é uma estratégia argumentativa e como tal ela é parte integrante e constitutiva da lógica argumentativa. A organização da lógica argumentativa, segundo Charaudeau (1992: 787-794) engloba cinco componentes, dentre eles: os elementos de base da relação argumentativa, que são a asserção inicial (premissa), a asserção final (conclusão) e a asserção de passagem (inferência, argumento, prova). Dentro dessa relação argumentativa ainda há os modos de encadeamento, dentre eles a concessão, as relações semânticas, os tipos de ligações lógicas e a posse do valor de verdade.

Para Charaudeau (1992: 799-800), a concessão também figura entre os “modos de raciocínio”, ou seja, é um procedimento da lógica argumentativa. A “concessão restritiva”, como é denominada na terminologia do autor, consiste em

...accepter A1 comme vrai (faire une concession) tout en rectifiant la relation argumentative. On accepte l’assertion de départ, mais on conteste qu’elle puísse aboutir à la conclusion proposée ou sous-entendue. Cette conclusion est niée ou modifiée, et c’est souvent du fait de cette modification ou négation que l’on découvre ce que pouvait être la conclusion initiale.

Ainda segundo o mesmo autor (1992: 800) , o modo de raciocínio da concessão restritiva pode ser encontrado nas situações de troca polêmica “au cours desquels on accorde (ou fait semblant d’accorder) à l’autre certaines de ses assertions pour mieux les invalider ou les rectier”. Charaudeau ainda afirma que o procedimento da concessão restritiva é menos agressivo que o da “negação brutal” (idem).

Dentre os textos em que esse modo de raciocínio pode configurar estão as análises e comentários jornalísticos (Charaudeau, 1992: 801), de cujo editorial, gênero textual estudado neste trabalho, faz parte.

No mesmo sentido discorre Boissinot (1994: 42), que considera a concessão dentre as características principais do modelo argumentativo de tendência dialógica e polêmica, em que diversas vozes se fazem presentes, como é o caso do editorial.

Para finalizar, segundo Marcuschi (2003: 29), “quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma lingüística e sim uma forma de realizar lingüisticamente objetivos específicos em situações particulares”. Portanto, dentro desta perspectiva, o gênero editorial será encarado como um texto, que por ser polêmico, apresenta muitos pontos de vista sobre o mesmo assunto, porém tem como objetivo argumentar e convencer o leitor a adotar a perspectiva do autor/ locutor, daí sua tipologia predominantemente argumentativa. Para alcançar seu intento, o autor/ locutor vai se utilizar de formas lingüísticas específicas, como a concessão.

Metodologia

Os operadores argumentativos de concessão englobarão neste trabalho, segundo perspectiva de Ducrot, tanto as tradicionais conjunções coordenativas aditivas, encabeçadas por mas, quanto as conjunções subordinadas adverbiais, representadas por embora. O único fator de diferenciação será a estratégia argumentativa utilizada pelo locutor ou autor do texto.

Os processos concessivos são, então, os enunciados que contêm duas proposições p, mas, q, em que p corresponde a um argumento em favor de uma conclusão r e q corresponde a um argumento mais forte em conclusão a não-r. Mas representa todos os operadores de concessão, tanto os que introduzem orações, subordinadas ou coordenadas, quanto os que modificam construções não-oracionais.

A concessão é considerada uma estratégia argumentativa que permite orientar os enunciados de maneira a privilegiar o argumento mais forte do locutor para a conclusão não-r, sem que se menospreze outras perspectivas existentes no texto, servindo-se, para isso, do fenômeno da polifonia lingüística, que deixa transparecer outras vozes no discurso. Deve-se ater também ao fato de que a conclusão r, que provém da perspectiva do interlocutor ou do saber comum e que será anulada argumentativamente pela construção concessiva, pode ser implícita ou não.

Ainda, segundo Gouvêa (2001: 238), a concessão pode vir a servir como estratégia de preservação da face do outro, “mostrando-lhe que sua maneira de ver as coisas não é completamente absurda, mas...”.

Análise dos processos concessivos
em um editorial

A fim de considerar os processos concessivos como parte integrante da lógica argumentativa e, desse modo, constitutivo de um gênero de tipologia argumentativa dominante como o editorial, parte-se para uma análise mais específica de um dos textos do corpus, “Partidos Fortes”, do jornal O Fluminense de 16 de outubro de 1987.

Partidos fortes (O Fluminense, 16/10/1987)

O esforço do presidente José Sarney, visando a compor sua base de sustentação parlamentar através do apoio individual dos congressistas, pode ter sido a única saída vista por ele e por sua assessoria para livrar-se de contingências incômodas diante da falta de consistência do quadro partidário brasileiro, mesmo depois da implantação do pluripartidarismo(e talvez até em conseqüência dela)

O Brasil viveu quase vinte anos sob o signo do bipartidarismo e, apesar de ele haver sido considerado camisa-de-força das várias correntes do pensamento nacional, criou hábitos ainda não de todo vencidos, como bem o demonstra o PMDB ao alcançar a hegemonia partidária do País graças às eleições de 1986, mas mantendo dentro de si mesmo a fragmentação que o caracterizava quando ainda MDB.

À volta dele formaram-se diversos outros Partidos infinitamente menores, os quais criaram uma situação anômala às vistas do cidadão comum, também este habituado em duas décadas a raciocinar bipartidariamente. E poucas dessas legendas têm, efetivamente, consistência suficiente para se fazerem presentes na vida nacional como um organismo político vivo e atuante.

Historicamente, os Partidos do Brasil têm vida apenas eleitoral, e para isso muito contribui a legislação branda a permitir o surgimento de agremiações, com interesses exclusivamente eleitoreiros, como foi visto com fartura na campanha passada, em que nada menos de 28 legendas disputaram os cargos, embora não mais de 6 delas pudessem ser apontadas verdadeiramente como Partidos.

É possível que esse quadro de inconsistência, somado às dificuldades econômicas que abalam o panorama político, tenham levado o Presidente José Sarney à opção do apoio individualizado. Porém, ao agir em legítima defesa de seu Governo e, por extensão, do regime presidencialista e do mandato de 5 anos, não adotou a melhor solução para a própria transição política ora vivida pelo Brasil.

O procedimento não se esgota em si mesmo, nem nas metas de curto prazo por ele visualizadas, indo mais adiante, ao ferir profundamente o conceito original da democracia ocidental, assentada em Partidos fortes. A individualização do apoio retira das legendas, por piores ou melhores que sejam, o pressuposto de sua própria existência, não mais estando em jogo os programas por elas defendidos.

Com presidencialismo ou parlamentarismo, a consolidação democrática passa necessariamente pela existência de Partidos que estejam acima dos homens, como instituições fortes e permanentes. A reconstrução da Democracia não se faz com varinha de condão, e a transição por sua própria natureza versátil e adaptadora, deve ter como princípio e fim o fortalecimento das organizações partidárias fundadas nas quais tenhamos instituições duradouras em defesa dos interesses do País e do povo.

De acordo com Charaudeau (1992), o modo de organização argumentativo se constrói relevando-se os elementos de base da relação argumentativa, que são a asserção inicial (premissa), a asserção final (conclusão) e a asserção de passagem (inferência, argumento, prova).

Logo, os elementos de base do texto acima são:

- Premissa: Falta de consistência do quadro partidário brasileiro

- Conclusão: O Brasil precisa de partidos fortes e permanentes para que haja consolidação democrática

Na asserção de passagem, ou seja, para defender seu ponto de vista, o editorialista vai se utilizar de várias estratégias argumentativas, dentre elas a concessão. Como argumento a favor de sua conclusão, o autor usa os processos concessivos introduzidos pelos operadores apesar de, mas, porém e por.

Conclusão

Os processos concessivos são uma estratégia argumentativa que orienta os anunciados para a perspectiva do autor do texto em contraposição às perspectivas polifonicamente introduzidas no discurso. Os processos concessivos são parte integrante da lógica argumentativa, sendo constitutivo de textos de tipologia predominantemente argumentativa, como o editorial. Isso é provado pelo fato de que os dez textos analisados no trabalho continham pelo menos um processo concessivo.

De acordo com a Semântico-Argumentativa, a Análise Funcional do Discurso e a mais recente Análise do Discurso, deve se estudar os processos concessivos como um todo, englobando operadores argumentativos de categorias diversas, tradicionalmente separados por questões sintáticas e não semânticas. O que se mostra relevante em situações reais de uso é a capacidade de orientação argumentativa dos enunciados e a relação semântica e não lógica dos processos concessivos.

Por fim, ficou claro que a concessão se manifesta em contextos que ultrapassam o nível sentencial, mostrando que a utilização dos processos concessivos está a serviço do discurso e da argumentação.

Tout le monde sait que la concession est, parmi les stratégies de la persuasion, une des plus efficaces, essentielle en tout cas au comportement dit ‘libéral’ (Ducrot, 1984: 230-1)

Referências Bibliográficas

ANSCOMBRE, J. C. & DUCROT, O. L’Argumentation dans la langue. Bruxelles: Mardaga, 1983.

BOISSINOT, A. Les textes argumentatifs. Toulouse: Bertrand-Lacoste, 1994.

CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

DUCROT, O et alli. Les mots du discours. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.

––––––. Le dire et le dit. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984.

GUIMARÃES, E. Texto e argumentação: um estudo das conjunções do português. Campinas: Pontes, 2001.

GOUVÊA, L. H. M. Concessão e conectores. Scripta. Belo Horizonte, v. 5, nº 9, p. 234-40, 2º sem. 2001.

HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976.

KOCH, I. V. G. A Inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2001.

––––––. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.

SANTOS, L. W. dos. Articulação textual na literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, MACHADO & BEZERRA (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

MATTHIESSEN, C. & THOMPSON, S. The structure of discourse and ‘subordination’.

NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.

VAN DIJK, T. A. Text and context. New York: Longman, 1982.

––––––. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 2004.

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos