A CHARGE EM SALA DE AULA
UMA PERSPECTIVA INTERTEXTUAL DE LINGUAGENS

Tatiana Nunes de Lima Camara

Essa apresentação está baseada em minha Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

O trabalho com as charges busca um diálogo entre as áreas de comunicação e de Letras, já que desenvolve aspectos referentes às linguagens verbal e não- verbal, a partir de uma perspectiva intertextual de comunicação.

Buscamos com base nas charges jornalísticas leituras intertextuais a partir, não só das palavras, mas também das imagens, associadas ou não.

A opção por tal tipo de texto parece mais atraente, justamente, pelo fato de, muitas vezes, mesclar o verbal com o não-verbal, ou, um ou outro separadamente.

Além disso, a seqüência imagética, que podemos estabelecer entre as charges, pode nos provocar, a ponto de definirmos relações sintáticas, as quais contribuem definitivamente para a comunicação, ainda que sejam realizadas somente no âmbito não-verbal.

Dessa forma, com esses estudos, percebemos a questão sintática como uma relação que vai além das palavras, do código verbal; as imagens estabelecem entre si uma sintaxe que permite uma leitura, quase sem ruídos.

Em um dos exemplos com que trabalhamos em nossa pesquisa, identificamos essa questão sintática de forma bastante clara.

Em 23 de maio de 2001, Chico produz uma charge intitulada E na hora da verdade..

Nela, estão Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, de terno e de gravata, caminhando em cima de um trampolim. Arruda pergunta a ACM: Posso falar em seu nome?

Observando a charge em uma perspectiva sintática, inexiste, em termos verbais, um desfecho: há uma pergunta cuja resposta não sabemos. A questão não-verbal também deve ser levada em consideração, já que, em termos imagéticos, desconhecemos o local para onde cairão ao descerem ou saltarem do trampolim.

Sobre o trabalho de Caruso, no que tange às imagens, faltam informações que contribuirão para uma leitura plena da mensagem. Como estamos em nível de imagem, logo, em perspectiva não-verbal, notamos que a sintaxe imagética não está estabelecida, pois a construção de sentidos não se definiu ainda dentro de um padrão lógico baseado na coerência de idéias. É notório que se estabelece um gancho entre a publicação do dia e a publicação que virá ou as publicações que virão. Aqui entra a questão da sintaxe no nível das imagens.

Dando continuidade à charge do dia 23 de maio de 2001, Chico Caruso, em 25 de maio, prossegue o trabalho do dia 23. Na seqüência, Arruda já está dentro d´água, em pleno mar, chama ACM, que está na beira do trampolim – “Vem! A água tá boa!”.

A questão da necessidade sintática fica muito clara, pois, ao lermos a charge, temos a nítida impressão de que faltam informações; em outras palavras, em termos de imagem no que tange ao aspecto sintático, a mensagem está incompleta; não se definiu ainda uma sintaxe imagética.

Em 30 de maio, dando continuidade à imagem da charge proposta em 25 do mesmo mês, Chico apresenta um novo trabalho intitulado Hoje tem: sai de baixo, onde retrata ACM pulando do trampolim em direção ao mar.

Essa charge permite-nos estabelecer uma ponte relacional com as anteriores – trata-se da mesma cena, os mesmos personagens envolvidos e, além disso, ACM veste o mesmo traje listrado de banho e uma touca de natação.

Na descrição da charge, ressaltamos a expressão mencionada por Chico: Sai de Baixo, a qual se apresenta de forma intertextual com o programa Sai de Baixo, da Rede Globo, na época, transmitido aos domingos.

Retomando o viés da sintaxe, ainda estamos diante de narrativa sem desfecho. A utilização do termo narrativa foi em função de que, no caso das charges em seqüência, temos uma orientação discursiva definida a partir de um critério nitidamente cronológico: os fatos acontecem um a um; há personagens, espaço e tempo estabelecidos na trama. Assim, torna-se possível, com base em definições de textos narrativos, afirmarmos que a seqüência chargística, dentro de uma concepção de ordenação, é uma narrativa, já que existe o fato – o episódio – os personagens e as circunstâncias de tempo e de espaço.

Em outra, a seqüência apresentada, o desfecho da narrativa ou a definição sintática por meio das imagens está proposta na charge de Chico de 1 de junho, quando retrata ACM, já dentro d'água, nadando em direção a Arruda, como se estivesse com intenção de pegá-lo. Arruda grita Ei! Eu não matei! Eu não roubei!

Ainda sobre a questão sintática, um elemento importante que pode comprometer a lógica da seqüência sintática evidenciada pela imagem é o fato de, no último quadro, ACM não estar mais usando o roupa de banho que vestia, no trampolim, prestes a pular no mar, na seqüência anterior.

Uma justificativa plausível de que lançaríamos mão, a fim de não comprometermos nossa análise sintática a partir da imagem, é a idéia de que a roupa saiu, tal a força do impacto de ACM, retratado com excesso de peso, com a água do mar.

Partindo para a análise com base no contexto em que as charges de Caruso estão inseridas, temos que, em 24 de maio de 2001, Arruda renuncia ao mandato para não ser cassado e perder seus direitos políticos. O trabalho de Chico em que Arruda anda pelo trampolim, com ACM atrás, rumo ao mar, data de 25 de maio de 2001, provando que a charge é um gênero textual intimamente ligado ao contexto: comenta-se um fato ocorrido num passado não muito distante; no caso, dia anterior.

ACM sai do senado dia 30 e a charge de Chico é do dia 30 também. Neste momento, dentro da perspectiva sintática, chama a atenção para a noção narrativa e as variações de desfecho em vista dos fatos. Caruso, em 30 de maio, apresenta um trabalho em que ACM acaba de pular do trampolim, mas, se observarmos atentamente, em termos sintáticos imagéticos, o leitor não sabe se ele vai para a água ao encontro de Arruda ou se fará qualquer tipo de manobra e se esquivará no final- situação típica no cenário brasileiro em se tratando de política.

Convém lembrarmos que o jornal sai pela manhã, antes de qualquer pronunciamento oficial, daí, ou Caruso já tinha a informação – o que, em termos de narrativa, poderia estar finalizada no próprio dia 30, ou estabeleceu uma espécie de pacto discursivo imagético com o leitor, no qual se mostrou ainda não-informado sobre o desfecho do escândalo que envolveu, também, Antônio Carlos Magalhães.

Em 1 de junho, obedecendo às regras da notícia, o fato ocorrido no dia anterior, então, torna-se notícia: ACM sai do senado e, como retratou Chico, cai na água e faz companhia a José Roberto Arruda. Então, temos a certeza da finalização da narrativa, com base, principalmente, na questão sintática- a ordenação imagética criada por Chico Caruso permitiu a leitura e, conseqüentemente, o entendimento da mensagem.

Ao lado do aspecto verbal associado à questão da imagem, não podemos esquecer o caráter lúdico do referido gênero: o texto chargístico desperta uma curiosidade natural no leitor, pois este busca, no mínimo, saber se identifica ou não os personagens descritos no cenário.

Por mais óbvio que nos pareça perceber e, ainda, entender uma charge jornalística, na prática, não é tão evidente assim. Quantas vezes nos demos conta de que desconhecíamos os personagens desenhados no texto e, por isso, não compreendemos a mensagem do autor. A charge requer, acima de tudo, uma relação de percepção e de sensibilidade entre o leitor e o chargista, pois, do contrário, haverá ruídos comprometedores, ou mesmo, ausência total de comunicação entre o enunciador e o co-enunciador.

Ainda sobre o gênero, entendemos que a charge proporciona um campo fértil para diferentes análises com o objetivo do estudo da Língua materna, já que, como dissemos, falar nesse gênero é trabalhar no universo da intertextualidade, o qual contribui bastante em termos da formação de um leitor e não de um ledor.

O conceito semântico de ledor e de leitor foi baseado em uma obra da escritora Marisa Lajolo “Do mundo da leitura para a leitura do mundo”, já que a referida autora, em seu trabalho, faz a distinção entre essas designações. O ledor seria aquele indivíduo que lê superficialmente diferentes gêneros textuais, não compreende o que há ou pode haver nas entrelinhas de um texto; já o leitor traduz o indivíduo que lê de forma mais aprofundada, consegue perceber os sinais implícitos de um texto, independente do gênero a que este pertença.

Estudar intertextualidade é prazeroso. Se o ser humano é, por definição, um ser intertextual, por que não buscar essa concepção na construção dos sentidos das charges jornalísticas? Tal atitude só nos elucidará vários aspectos referentes à comunicação.

Não há dúvidas sobre a riqueza informativa e formativa, quando trabalhamos no âmbito da intertextualidade. Em vista disso, explicitamos desde já nossa despretensão e impossibilidade de esgotar o tema nessa apresentação.

Falar em intertextualidade é mencionar o teatro, o cinema, a música, a história, a literatura, as religiões; enfim, é desenvolver um estudo fértil e inesgotável de sentidos e de aspectos culturais.

Se trouxermos a intertextualidade também para as questões lingüísticas, outra vez, nos definiremos em campo vasto, pois poderemos trazer à baila, dentre outros assuntos, aspectos de formação de palavras – derivações, composições, neologismos, abreviações –; enfim, novas teias de comunicação, cujo objetivo maior é a expressividade lingüística.

Pelos motivos expostos, encaminhamos nossa pesquisa usando como corpus um gênero característico do jornalismo, mas buscando, por outro lado, uma análise baseada no aspectos lingüísticos, os quais envolvem a produção de texto – verbal e não-verbal – uma vez que entendemos ser essa uma proposta possível, a qual traz consigo um novo olhar no que tange à estrutura do ensino de Língua Portuguesa.

Ainda com relação a esse ponto – o ensino-, pensamos a charge, enquanto gênero textual, um instrumento capaz de desenvolver estudos, conforme mencionamos, sobre diferentes assuntos relacionados à Língua Portuguesa, de forma prazerosa.

Com base no exposto, entendemos que o ensino do português, a partir do gênero em questão, tem condição de proporcionar momentos agradáveis; diferente do que vemos, em várias escolas, no que tange às reações dos alunos.

Dessa maneira, tornar o ensino de nossa língua materna uma atividade agradável, é importante, pois faz com que haja maior interesse das partes envolvidas no processo. Assim, conseqüentemente, o mergulho nas diferentes linguagens pode ser cada vez mais fundo, despertando, por um lado, os ledores adormecidos e abrindo, por outro lado, os olhos dos leitores mais ingênuos, fazendo-os perceber que são as diferentes formas de se ler o mundo é que garantem nosso espaço nesta sociedade de comunicação.

 

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