CHARGES E QUADRINHOS
CONSTRUINDO IDENTIDADES

Eliana Maria Borges (UENF)
Sérgio Arruda de Moura (UENF)

Introdução

A pós-modernidade, altamente marcada por uma série de transformações de ordem social, cultural, política, econômica e tecnológica, tem afetado significativamente os modos de pensar e viver o mundo. Essa nova forma de enxergar a realidade conduz a um profundo questionamento dos valores, das ideologias, crenças e éticas da chamada vida social tradicional e, conseqüentemente, acaba produzindo também reflexos significativos na definição e no entendimento de quem somos. Isso porque qualquer alteração brusca na sociedade afeta diretamente o comportamento dos indivíduos que atuam nesse meio social, alterando, também, o entendimento de quem são.

Nossa pesquisa trata da investigação de como o discurso político-humorístico dos quadrinhos e das charges da mídia impressa capixaba constrói identidades sociais, através de seus personagens e suas interações discursivas. Ou seja, como leitores e produtores utilizam esses textos para construir retratos deles mesmos e das demais pessoas. Esclarecemos que, devido às limitações a que está sujeita esta publicação e, sobretudo, ao fato de que esse trabalho é parte de uma pesquisa ainda em andamento, não temos a pretensão de esgotar o assunto. Tratamos apenas de apresentar alguns esclarecemos acerca de nossas impressões sobre esses textos, isto é, especificamente sobre as charges e as tiras de quadrinhos veiculadas em dois jornais de grande circulação no Estado do Espírito Santo: A Gazeta e A Tribuna.

Discurso e Identidades Sociais

Discurso, palavra-chave na Análise do Discurso, pode ser compreendido como um processo de produção de significações. As linguagens estão no mundo e o homem está na linguagem. Através dela, o homem percebe-se homem, percebe o seu “eu”. A individualidade humana passa pelo senso coletivo, pois a sociedade se constrói pela comunicação. E a vida é impossível sem a comunicação. Se a linguagem é vista como mediação entre o homem e a realidade, possibilitando-lhe agir no mundo e interagir com as outras pessoas, o discurso é justamente o lugar, ou o momento, onde ocorre essa mediação: é ele que abre possibilidades para a continuidade ou as transformações pelas quais passam indivíduo e sociedade. Essa relação dinâmica de tradição e renovação permite que, a cada situação, o homem possa criar seus “dizeres”, seus ”modos de dizer” de que se vale para a produção de seu discurso.

Se considerarmos que “todo discurso provém de alguém que tem suas marcas identitárias específicas que o localizam na vida social e que o posicionam no discurso de modo singular assim como seus interlocutores” (Moita Lopes, 2003: 19), pode-se perceber que a temática das identidades está diretamente ligada a uma concepção de linguagem como discurso. Na perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, segundo Fairclough (2001) e Moita Lopes (2003), a identidade que cada pessoa possui é entendida como uma construção social que se dá nos e pelos discursos, os quais podem nos posicionar, por exemplo, como mulher, como negra ou como professora: (...) “as pessoas são em grande medida posicionadas em identidades de acordo com sua vinculação dentro de um discurso” (Shotter & Gergen apud Moita Lopes, 2003: 24). Ou seja, usar a língua significa expor valores, crenças e, conseqüentemente, refletir uma visão do mundo e a do grupo social de que se faz parte. Nesse sentido, a interação social é vista como o lugar das práticas nas quais a individualidade se constitui, assim como também é responsável pela constituição da sociedade que se constrói através de um infindável número de discursos que se entrecruzam.

Portanto, o discurso tem papel fundamental na representação e na constituição da vida social, já que se trata de uma ação na qual os significados são gerados pelos participantes de um evento discursivo específico. Em outras palavras, se as pessoas se constroem agindo no mundo através do discurso em relação aos seus interlocutores e, ao se construírem, constroem também os outros, significa que aprendemos a ser quem somos nas práticas discursivas nas quais agimos e atuamos no mundo com os outros e, nessa interação, estamos constituindo o mundo em significados. Dessa forma, discurso é ação (Faiclough, 2001: 91). Ele é entendido como um modo pelo qual as pessoas agem perante o mundo e, principalmente, perante uns aos outros. Ao considerar o discurso como uma forma de agir sobre o mundo e sobre os outros, Fairclough atenta para a força constitutiva deste, salientando que ele “contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social, que direta ou indiretamente, moldam-no e restringem-no” (Fairclough, 2001: 91). Partindo desse pressuposto, pode-se compreender a concepção segundo a qual o discurso também é visto como uma prática política e ideológica (Fairclough, 2001: 94).

Sendo construtos de natureza social, evidentemente, dependendo dos interesses políticos da ordem social dominante, as identidades sociais tanto podem ser suprimidas quanto promovidas (Kitzinger apud Moita Lopes, 2003: 13). Isso porque a prática discursiva pode ser constituída de maneira convencional, contribuindo para a reprodução da ordem social dominante. Entretanto, ela também pode se constituir de modo a contribuir para a transformação dessa mesma sociedade, pois “não estamos meramente posicionados de forma passiva, mas somos capazes também de atuar como agentes” (Fairclough, 2001: 61. Grifos nossos.). Ou seja, podemos construir o mundo com outros significados, a partir de outras bases discursivas. Sendo assim, as identidades sociais não devem ser entendidas como estáticas; elas estão abertas a transformações que podem originar-se parcialmente no discurso. Parcialmente porque a relação entre discurso e estrutura social é dialética: o discurso não é fonte do social, nem deve ser entendido como mero reflexo de uma realidade social mais profunda. Isso significa que o discurso atua conjugado a outras práticas, no interior de relações de luta de poder particulares.

Assim, a constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de idéias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sociais materiais, concretas, orientando-se para elas (Fairclough, 2001: 93).

Fica evidente a possibilidade de agir por parte dos participantes discursivos, pois, a princípio, eles podem optar por aceitar ou refutar o modo como são posicionados e, ainda, reposicionar-se diante de seu interlocutor. Acreditamos, portanto, que se trata de um sujeito que não é nem livre nem assujeitado, mas agente, conforme Possenti:

(...) aceitar que o sujeito não tem espaço de atuação implica conformar-se com o status quo, enquanto a posição contrária justifica que se formulem teoricamente e implementem praticamente alternativas ao “sistema”, ao invés de sentir-se congelado por ele (Possenti, 2004: 80-81).

O fundamental é reconhecer que ao mesmo tempo em que estamos interagindo no mundo via linguagem – produção social, na medida em que se define na relação entre indivíduo e exterioridade – estamos também construindo o mundo e os outros, em um processo contínuo e dinâmico. Dessa forma, pode-se conceber discurso e identidade como ação conjunta.

Representando Identidades
em Quadrinhos e Charges

Segundo Santos (1996), os cômicos desdenham o mundo porque conseguem perceber suas fragilidades. O humor das charges e tiras de quadrinhos pode revelar uma intenção discursiva que vai muito além de proporcionar simples diversão: na maior parte das vezes, acaba por conduzir o leitor a um posicionamento sobre as temáticas abordadas. Acreditamos que as circunstâncias sócio-culturais de produção, circulação e consumo desses textos são decisivas para se compreender o processo de caracterização de seus personagens, cujas práticas verbais e não-verbais podem veicular significados que vão além do efeito comunicativo imediato, gerando mecanismo de identificação com o leitor.

Vários elementos são trabalhados nessas produções: preconceitos, elementos morais e éticos, critérios para opções de vida, expectativas sociais, entre outros, na maioria das vezes, representando visões estereotipadas. São discursos que trabalham no sentido de privilegiar certos modos de ser, retomando valores e crenças profundamente arraigados. As charges, por exemplo, freqüentemente encontramos o discurso do cidadão que não admite a corrupção, mas que, em contrapartida, não hesita em utilizar os mesmos meios para se livrar de uma situação embaraçosa. O estereótipo identifica o brasileiro como aquele capaz de fabricar “jeitinhos”. As figuras políticas surgem nesse cenário essencialmente sob a marca da corrupção, numa crítica à impunidade e ao descaso com a coisa pública.

Nas tiras, tem-se observado diversas representações de identidades, sobretudo no que se refere à identidade de gênero. As representações da mulher, por exemplo, quando surge em cena, quase sempre aliam-se aos conceitos tradicionais do que é ser feminino. A preocupação doentia com a estética é um exemplo de referente social imposto à mulher; a estética é apresentada como um traço tipicamente feminino. Como a mídia divulga incessantemente padrões de comportamento e estilos de vida que se relacionam diretamente à necessidade humana de consumo, a mulher que não corresponder a esses padrões de beleza exigidos e fabricados pela mídia, sente-se socialmente excluída o que provoca um sentimento de insatisfação que gera frustração e infelicidade, tristeza e solidão. Assim, ela precisa adotar um estilo de vida que corresponda a esses padrões para não se sentir marginalizada, excluída do convívio social. Trata-se de um discurso que reflete um papel manipulado por uma ideologia machista (todas são personagens criadas por desenhistas homens), cristalizando o estereótipo da identidade feminina que comunga com os regimes de verdade sobre feminilidade no senso comum. É um produto já preparado por um certo “horizonte de expectativa” marcadamente ideológico, que traz em si um mecanismo que é de toda a sociedade: a determinação de lugares sociais femininos e masculinos. O discurso dessas identidades de gênero trabalha no sentido de apontar diferenças e desigualdades sociais entre homens e mulheres. Em suma, valores, crenças e comportamentos existentes em determinado meio social podem tornar-se parte das ideologias dos indivíduos que interagem nesse meio ao serem legitimados por práticas discursivas como essas.

Considerações Finais

Muito se diz nos meios acadêmicos que os discursos não são neutros, pois todo texto apresenta uma carga de significação implícita que pode ser recuperada pela atividade de leitura dos processos de sua produção e vinculação ao contexto e historicidade. A linguagem, dessa forma, possibilita a representação do mundo. Como veículo de idéias e experiências, a linguagem influencia diretamente na forma como pensamos e percebemos a realidade, pois, sendo constitutiva do processo discursivo, o qual se dá sob determinadas condições sócio-históricas e ideológicas, ela reflete aspectos do contexto sociocultural onde é produzida.

Os discursos que circulam na mídia assumem um papel crucial na construção e legitimação das identidades sociais, pois nossos significados passam, de certa forma, a serem construídos por esses discursos midiáticos. Dessa forma, o processo de construção identitária torna-se cada vez mais dependente de um grande fluxo de materiais simbólicos mediados. Através de diversas fontes e veículos, a mídia, muitas vezes, descreve um mundo que parece um recorte distorcido da realidade, considerando-se os múltiplos filtros de que se utiliza: “pode-se dizer que a mídia de notícias efetiva o trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada e oculta” (Fairclough, 2001: 144). Assim sendo, pode-se dizer que a opinião pública forma-se (e/ou conforma-se) a partir das visões construídas pelos veículos midiáticos.

Quadrinhos e charges são formas gráficas que não surgem isentas de influências sócio-históricas e ideológicas: os conflitos e as frustrações da vida humana é o ingrediente fundamental que o desenhista de quadrinhos vai buscar para a elaboração de histórias e construção de personagens, enquanto nas charges as temáticas estão voltadas principalmente para acontecimentos da realidade sociopolítica de uma determinada sociedade.

As identidades nesses discursos, quase sempre são representadas através de estereótipos, mostrando-se conservadora na maior parte das vezes. Apesar disso, acreditamos que, como se trata de sátiras do cotidiano, algumas dessas produções também podem promover uma espécie de subversão social exatamente por colocar em xeque uma identidade às avessas e adquirir ainda mais força para ser objeto de identificação e projeção por parte dos leitores. Trata-se, portanto, de um discurso que pode levar o leitor a posicionar-se criticamente sobre essa realidade, provocando mudanças de comportamento.

Costurado pelo viés de um humor irreverente, crítico, aparentemente inofensivo, esse discurso desvela o cotidiano da vida social urbana, refletindo diretamente valores, experiências, fraquezas, misérias e grandezas marcadamente humanas. Nesse sentido, o humor pode revelar-se poderoso instrumento de crítica social, possibilitando compreender os modos de sentir e pensar moldados pela cultura (Driessen apud Bremmer & Roodenburg, 2000). É o poder do discurso de nos posicionar na vida social, construindo-nos em identidades. Usar a língua nas interações diárias implica expor valores, crenças e refletir também a visão que temos do mundo e a do grupo social do qual fazemos parte. Dessa forma, pode-se perceber o discurso como uma forma de ação no mundo e na sociedade (Fairclough, 2001: 91). Além disso, o poder de projetar práticas e modos de vida como universais torna o discurso de quadrinhos e charges grande veículo de ideologia. Afinal, em que medida a presença desses textos no cotidiano dos leitores produz, reproduz ou dinamiza certos valores, crenças, sentimentos e preconceitos que circulam na sociedade? Ou seja, de que forma têm participado na disseminação de maneiras especiais de ser, de agir, de comportar-se, de os sujeitos envolvidos tratarem a si mesmos, aos outros e ao mundo?

Por serem presença constante na vida diária e funcionar como lugares de veiculação de modos de vida, conseqüentemente, quadrinhos e charges podem tornar-se também um lugar decisivo no processo de construção de identidades. Através da apropriação de uma realidade imaginária criada, constrói-se uma visão, ainda que parcial, capaz de ser confundida com o próprio real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Discurso de identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família. Campinas: Mercado das Letras, 2003.

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POSSENTI, Sírio. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. Curitiba: Criar, 2002.

SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasias e cotidiano nas histórias em quadrinhos. São Paulo: Annablume, 2002.

 

 

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