O acesso ao sagrado
através do discurso trágico
na poesia de Murilo Mendes
Alexandra Vieira de Almeida
Tenho como objetivo, neste trabalho, associar a poesia, o trágico e o sagrado, percebendo que pela via do trágico se chega ao sagrado através do discurso poético. Observamos na poesia de Murilo Mendes uma série de tensões e elementos conflitantes que caracterizam o trágico. A partir da experiência do contato com o numinoso, o “tremendum” e “fascinans” , temos o desejo humano pela transcendência do banal, da matéria e da finitude, num desejo sobre-humano de “deificar-se”, de tornar-se imortal como Deus. Mas, por outro lado, temos o componente trágico da conscientização do limite da materialidade humana, da morte sobre a vida, do finito sobre o infinito, que separam o “sanctum” do pecador. Meu trabalho pretende analisar como reconciliar realidades tão paradoxais a partir do trágico na literatura.
Percebemos na poesia de Murilo Mendes um diálogo com a cosmovisão do mundo trágico, na medida em que a idéia da irrealidade fundada no incomunicável é realizada através de um realismo extremamente forte. O plano divino e humano se interpõem, porque são comunicáveis, apesar da aparente incomunicabilidade do plano transcendental. Aqui, podemos comparar com o próprio fazer literário, que por ser incomunicável, expressa um sentido que está para além da simples forma. Jacques Garelli exprime este paradoxo, afirmando se o inefável se manifesta ao nível da sensação, ele aparece para além do conhecimento fenomenal (GARELLI, 1966: 11). O inefável seria a única possibilidade humana de ultrapassar o conhecimento fenomenal. Mas Garelli não nega a materialidade de sua manifestação. Assim, poderíamos dizer que a experiência do sagrado é fenomenal? A materialidade da sua manifestação está presente no imaginário realista das tragédias gregas, em que os planos humano e divino se tocam. Da mesma forma, a poesia de Murilo Mendes dialoga com essa permeabilidade física, sensitiva, do completamente outro, do inefável. O cerne desta materialidade no inefável está no Cristianismo, no mistério da encarnação. Deus tornando-se humano é um dos pólos da poesia do poeta mineiro, enquanto que o homem (poeta) querer se tornar um Deus é outro elemento encontrado na sua poesia mística. A descida para a materialidade e a subida para a imaterialidade divina. No poema “O justificador” (MENDES, 1994: 252), temos a imagem humana do divino Cristo. O poeta diz que o espírito de Deus se dilata para abraçar a criação. A imagem de Deus está em todo o canto do planeta, até mesmo no mundo moderno, com seus aeroplanos. Deus se corporifica na matéria para justificar sua ausência por uma presença física, mas também eterna que perdura através dos tempos. Este Cristo espalha seu corpo e sua alma em pedaços, sendo que cada alma é uma relíquia deste corpo mortificado. O mundo, ao mesmo tempo, que o mata, o ressuscita, demonstrando a força poderosa do objeto numinoso, que é aquele que causa temor e atração ao mesmo tempo. Na poesia de Murilo Mendes, é o contato com o outro, com as formas do mundo físico, que é possível o contato com o mundo divino. Como no êxtase místico e no ato sexual, a imagem poética aproxima realidades díspares, recriando uma nova imagem, como ponto de fusão erótica. Nesse sentido, percebemos como a poesia mística está relacionada com o trágico, na medida em que neste, também encontramos as camadas subterrâneas, pensadas por Hölderlin a partir do elemento irracional, que encontramos naquilo que ele definiu como realidade hispérica, um elemento imponderável, fantasmático, ambíguo, que a norma não consegue registrar, assim como o Deus oculto. Assim, os discursos duplos se formam, nos dissoì lógoi da tragicidade: o tempo humano e o divino, o passado e o presente, o racional e o irracional, o visível e o invisível. Ana Cristina Chiara, no ensaio “Murilo Mendes, o poeta do futuro”, assim afirma sobre a poesia de Murilo Mendes:
Na poética de Murilo Mendes, compaixão é inclinação amorosa à vida compartilhada com a natureza, com a mulher, com o insólito e com o outro, sob a irrestrita condição de elevação e de arrebatamento sublimes para alcançar a substância divina... (CHIARA, 2.002: 71)
No outro pólo, encontramos o desejo de o poeta tornar-se um Deus, subindo aos céus, à eternidade, abstraindo-se do tempo e do espaço, como podemos ver na poesia de cunho essencialista, sendo Murilo Mendes influenciado por Ismael Nery. No mundo trágico, encontramos o herói querendo ultrapassar os limites do humano, do métron, para chegar até Deus, através de sua arrogância, sendo castigado por isso. Ao mesmo tempo, que o poeta busca o infinito, tem, tragicamente, a consciência dos limites do mundo das formas, como podemos ver no poema “O poeta na Igreja” (MENDES, 1994: 106):
Entre a tua eternidade e o meu espírito
se balança o mundo das formas.
Não consigo ultrapassar a linha dos vitrais
pra repousar nos teus caminhos perfeitos.
Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres,
pronto.
Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade,
sitiado pelas imagens exteriores.
Todo o meu ser procura romper o seu próprio molde
em vão! noite do espírito
onde os círculos da minha vontade se esgotam.
Talhado pra eternidade das idéias
ai quem virá povoar o vazio da minha alma?
Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
seios decotados não me deixam ver a cruz.
Me desliguem do mundo das formas!
O próprio poeta seria, por assim dizer, a figura trágica por excelência, pois habitando o mundo das formas, consegue dar imaterialidade às coisas a partir da palavra, que é ausência de corpo, mas, ao mesmo tempo, não consegue se desligar do mundo sensório, pois é através dele que constrói a imaterialidade da poesia. O poeta é também aquele que é capaz de ter consciência do limite da linguagem em expressar algo que está além do tempo e do espaço. Consciente deste limite, ele utiliza, intencionalmente, uma linguagem cheia de erotismo, para, paradoxalmente, se comunicar com o invisível, pois é através da visibilidade, que se percebe aquilo que está ausente, o inefável. Mas também, é negando essa mesma visibilidade, os limites do tempo e do espaço, que se chega a Deus. O que mais distancia nos aproxima da divindade. No poema “Alma numerosa”, temos presente a imagem da multiplicação dos pães como multiplicação de Cristo na humanidade. O poeta deseja se desdobrar ao infinito, estando em todos os lugares, em todas as pessoas: “...estarei nos olhos da criança nascendo,/na cabeça dos amantes, nos degraus do espaço,/na última luz dos velhos morrendo, no sonho do místico...” (MENDES, 1994: 107). A imagem da solidariedade é outro recurso que o poeta utiliza para se aproximar do próprio Deus, ou, até mesmo, se “deificar”, como podemos ver na poesia “Solidariedade” (MENDES, 1994: 205-206). Todos são construídos à imagem e semelhança do poeta, que se identifica com Deus, sobre o qual todos podem se moldar.
Essa vontade de ser como Deus não constituiria totalmente uma hýbris, pois o objetivo do místico é alcançar a plenitude divina, imitar Deus. Como conciliar realidades irreconciliáveis? O elemento trágico está contido na tensão existente na poesia mística, pois, segundo Vernant, o trágico se constrói sobre o equilíbrio que repousa sobre tensões. A realidade da poesia mística é agônica do início ao fim. Ele vai dizer também que talvez o que defina o trágico...
É que o drama levado em cena se desenvolve simultaneamente ao nível da existência quotidiana, num tempo humano, opaco, feito de presentes sucessivos e limitados e num além da vida terrena, num tempo divino, onipotente, que abrange a cada instante a totalidade dos acontecimentos, ora para ocultá-los, ora para descobri-los, mas sem que nada escape a ele, nem se perca no esquecimento. (VERNANT, 1999: 20)
Podemos perceber no elemento numinoso um grau elevado de tragicidade, pois demonstra a intensa tensão entre o humano e o divino. Segundo Vernant, os planos humano e divino são distintos, mas inseparáveis. Toda essa separação e, ao mesmo tempo, fusão, constituem a força trágica do erotismo místico. Em Murilo Mendes, a sublimação é vista como a experiência “numinosa” do ser ínfimo-humano não perante o “mysterium tremendum” de Deus todo-poderoso, pois não temos o embate tão preciso entre a paternidade divina, a figura antropomórfica do Deus-pai e seu filho-homem, mas temos o embate entre o homem e sua máxima humanidade, o Deus-filho, que leva ao arrebatamento, ao êxtase místico, como experiência paradoxal de plenitude e aniquilamento do ego. A tensão é essencialmente trágica. Segundo Szondi, o trágico se constitui a partir de um jogo dialético:
Se pode extrair a concepção do trágico que, em vez de apenas determinar um gênero poético, diz respeito à relação dialética entre o absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o particular. (SZONDI, 2004: 17).
Toda história da poesia mística se manifesta a partir dessa dialética.
No poema, “Vidas opostas de Cristo e dum homem” (MENDES, 1994: 107), encontramos este embate entre o humano e o divino-humano, que aproxima o homem, mas também o distancia do transcendente. O elemento de humanidade é a ponte e, ao mesmo tempo, o abismo, que separa o homem de Deus:
Senhor do mundo,
cada vez que ressuscitas um homem, me destruo a mim mesmo.
Enquanto o demônio te tenta no deserto
eu sonho com os corpos que a terra criou.
Enquanto passas fome e sede quarenta dias
os meus sentidos se desalteram.
Cada vez que cais ao peso da tua cruz
eu caio com uma mulher de última classe.
Enquanto te multiplicas na humanidade
não saio dos limites da minha pessoa.
Depois da morte voltas pra absolver o justo e o pecador,
eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo.
Senhor do mundo,
me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo.
Com relação ao trágico, percebemos a dialética entre distância e aproximação na relação entre os deuses e os homens. Na peça Eumênides, os deuses novos ajudam Orestes na sua purificação e libertação e, ao mesmo tempo, as Erínias são seres hediondos que querem a vingança realizada. No livro de Szondi, já citado, este mostra como Hölderlin considerou a infidelidade divina. Os deuses não querem saber de nós, de nossos interesses. Os homens têm seus próprios interesses. Nós cultuamos deuses, queremos ser como eles, mas, os deuses não têm nada a ver com nossa problemática. Isso não se dá totalmente com relação ao trágico, pois os deuses não são vistos de modo unilateral, mas ambíguo, com paradoxos que se constroem o tempo todo. No poema acima, de Murilo Mendes, percebemos que há uma indiferença do Deus-pai, ao colocar em seu lugar, como via de comunicação e julgamento do homem, o Deus-filho. Dessa forma o homem se aproxima do divino a partir da própria indiferença de Deus-pai com relação a seus filhos.
Murilo Mendes apresenta uma poesia imbuída de negatividade e anulação, com a positivação da dor e do sofrimento como guia para a ascese mística. Essa positivação da dor e do sofrimento é outro elemento que se liga ao trágico, pois estes sentimentos nos levam a uma compreensão, uma aprendizagem, como podemos perceber na fala do coro em algumas peças trágicas. Se no trágico encontramos o esvaziamento do humano, seu sofrimento e dor, podemos perceber também a plenitude e o preenchimento, como elementos de tensão do trágico, pois Édipo é a própria encarnação do salvador e do bode-expiatório, que traz a cura, o remédio, mas também o veneno. Édipo é o phármakos, a droga curativa e peçonhenta, propriedade mística do sóter (salvador) e do mago. Cumulado de semas da positividade, Édipo se vê como parte positiva da droga. Mas, ao mesmo tempo, encontramos a negatividade do phármakos. Nesta ambigüidade, reside a organização dialética do trágico. O herói se torna trágico porque é derrotado. O poeta místico é derrotado pelo poder de Deus, do numinoso, mas se levanta em presença do próprio Deus no ponto de fusão erótica. Édipo fere os olhos, porque não aceita a realidade que se descortina perante ele. Murilo Mendes condena os olhos, por ver que eles não se dirigiram aos objetivos mais altos. Em “Juízo final dos olhos” (MENDES, 1994: 205), percebemos que os olhos serão julgados com mais inclemência que o resto do corpo. O poeta observa que tais olhos pousaram mais em elementos carnais e eróticos do que nas mãos dos pobres e nos corpos dos doentes. Como condenação, eles não poderão apreciar a beleza das criaturas puras do outro mundo. No poema “Meu novo olhar” (MENDES, 1994: 247), encontramos o ponto de plenitude e reconciliação com o plano divino, pois os olhos não mais se detêm nas ancas, nas nucas e nas coxas, mas se dilatam à vista da musa bela e serena, que conduzirá ao amor essencial. Mas, novamente, temos aqui, a indiferença do pai, pois foi o olhar de quem assistiu à paixão e morte do filho, que o poeta se modificou, e não frente ao olhar fixo e incompreensível de Deus.
Concluindo, podemos dizer, que através da poesia, encontramos o ponto de junção entre o trágico e o sagrado na poesia de Murilo Mendes, percebendo os elementos de tensão que permeiam a poesia deste poeta, que não se prende a uma linha definitiva e unívoca, mas demonstra um conjunto de elementos plurais e paradoxais, que elevam sua poesia para além de uma estética determinada.
REFERÊNCIAS BibliogrÁFICAS
CHIARA, Ana Cristina de Rezende; OLIVEIRA, Ana Lúcia de; NUÑEZ, Carlinda Fragale Pate; BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira; PINTO, Sílvia Regina; ROCHA, Fátima Cristina Dias. Forçando os limites do texto – estudos sobre representação. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2002.
GARELLI, Jacques. La gravitation poétique. France: Mercure de France, 1966.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa, volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga I e II. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquet. São Paulo: Perspectiva, 1990.
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