RESUMO
uma
Andréa Lourdes
Ao
Essa é a perspectiva encontrada em livros de metodologia científica e afins que orientam os universitários quanto ao uso de algumas normas na elaboração de trabalhos acadêmicos. Salvador (1978: 17-19), ao discutir métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica, define o gênero como “uma apresentação concisa e freqüentemente seletiva do texto de um artigo, obra ou outro documento, pondo em relevo os elementos de maior interesse e importância”. Com relação aos objetivos, baseando-se nas normas da ABNT, o autor classifica o resumo em três categorias, relacionadas ao tipo de informação que divulgam:
· resumo indicativo, que não dispensa a leitura do texto, uma vez que apenas descreve a natureza, a forma e o propósito do escrito;
· resumo informativo, que contém as principais informações apresentadas no TF, dispensando assim a leitura desse;
· resumo crítico, também chamado de resenha crítica, que formula julgamento sobre o trabalho que é resumido.
Outros autores bastante consultados no meio acadêmico tais como Severino (1986) e Salomon (1971/2001), ambos em consonância com as normas da ABNT, adotam a mesma definição e classificação para o resumo. Medeiros (1991) inova ao apresentar uma quarta categoria que conjuga duas já existentes: o resumo indicativo/informativo, que dispensa a leitura do texto-fonte quanto à conclusão, mas não quanto aos aspectos tratados.
Medeiros
Entre os autores consultados, verifica-se que sob o rótulo geral de resumo são reunidos diferentes gêneros textuais (ou sub-gêneros) – resumo indicativo, resumo informativo, resumo crítico ou resenha – que se distinguem na forma e na função. As diferentes categorias estabelecidas para o resumo pautadas na ABNT acentuam a confusão terminológica, uma vez que as nomenclaturas adotadas confundem-se com a denominação dada por outros manuais aos mesmos gêneros acadêmicos, com por exemplo: resumo indicativo e fichamento; o resumo crítico e resenha. Essa confusão terminológica traz conseqüências para a produção do resumo tanto para o professor como para os alunos que muitas vezes não conseguem chegar a um consenso quanto à expectativa um do outro.
Além disso, as definições apresentadas são de cunho estruturalista e oferecem uma visão simplista do processo de produção, uma vez que, de acordo com elas, para resumir, bastaria ao leitor descodificar o texto-fonte para depois codificá-lo sinteticamente. Elas desconsideram o funcionamento discursivo em jogo no processo de elaboração do resumo. Por isso, rever o conceito de resumo a partir de perspectivas que tenham como base a teoria da enunciação e que partam da noção de gênero torna-se fundamental.
Os gêneros se realizam empiricamente nas mais diferentes espécies de texto, orais ou escritas, que circulam em nosso uso cotidiano e são denominados de receita culinária, telefonema, carta, romance, manuais de instrução, bula de remédio, lista telefônica, notícias, dentre muitos outros. Para produzir qualquer um desses textos, o sujeito aciona, além de suas representações sobre a situação de ação linguagem, seus conhecimentos sobre os modelos portadores de valores de uso elaborados pelas sociedades anteriores, ou seja, os gêneros indexados disponíveis no intertexto (cf. Bronckart, 1999: 137).
Embora qualquer falante da língua portuguesa consiga identificar facilmente qualquer dos textos listados anteriormente, isso só é possível porque esses gêneros são formas convencionais de enunciados, mais ou menos estáveis, histórica e socialmente situadas. No entanto, o aspecto convencional não impede a tendência à inovação e à mudança, que confere aos gêneros dinamicidade e complexidade variável. Isso porque eles se definem não apenas por propriedades lingüísticas, mas predominantemente por propriedades funcionais e pragmáticas (cf. Marcuschi, 2002: 19-36).
A tendência à inovação e mudança gera a necessidade de os gêneros serem apreendidos no dia-a-dia pelos membros de uma comunidade. Isso porque, tal como postulou Bakhtin (1952/1992) os gêneros são modelos comunicativos utilizados socialmente, que funcionam como uma espécie de padrão global que representa um conhecimento social localizado em situações concretas e que nos permitem identificar um texto individual como membro de uma classe mais geral. Por isso, para Marcuschi (2002: 20-21), os gêneros não dependem de decisões individuais e não são facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de expectativas de compreensão mútua, sendo as propriedades inalienáveis dos textos empíricos guias que direcionam produtor e receptor.
Uma outra consideração de Marcuschi (2002) sobre os gêneros é que esses podem apresentar-se bastante heterogêneos com relação à forma lingüística. Isso porque há muitos casos em que não é a forma não determina o gênero, tal como exemplifica o autor (p. 21), um texto pode ser considerado como um artigo científico se publicado numa revista científica, já se o mesmo texto for publicado num jornal diário ele passa a ser um artigo de divulgação científica. O que muda não é o texto, mas sim sua função e principalmente os seus aspectos sócio-comunicativos. Assim, para definir um gênero Marcuschi defende que é preciso considerar os papéis dos atores, as funções e objetivos do evento comunicativo e o modelo disponível no intertexto[2]. Essas considerações atestam que dominar um gênero não é dominar suas características lingüísticas, mas sim uma forma de realizar lingüisticamente objetivos específicos em situações particulares de uso (cf. Marcuschi, 2002: 35-36).
A perspectiva teórica sócio-interacionista postula que a comunicação humana é realizada através de uma forma textual concreta, produto de uma atividade de linguagem em funcionamento numa dada formação social. De acordo com Bronckart (1999: 137), as formações sociais elaboram os diferentes gêneros em função de seus objetivos, interesses e questões específicas. Para o autor, as formações sócio-discursivas[3] designam “as diferentes formas que toma o trabalho de semiotização em funcionamento nas formações sociais” (p. 141).
Bronckart (op. cit., p. 103), tal como Marcuschi (2002), baseando-se também em Bakhtin, postula ainda que, se os gêneros são meios sócio-historicamente construídos para realizar objetivos comunicativos determinados, “a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”. Por isso, para a realização de uma comunicação eficiente, é fundamental o conhecimento do gênero envolvido numa determinada prática social.
Diante desse quadro teórico, podemos considerar o resumo como um gênero na medida em que ele é uma realização lingüística em funcionamento em diferentes instâncias da sociedade atual, entre elas o ensino superior.
Diante dessas considerações, optei por realizar em primeiro lugar uma investigação sobre o meio de circulação desse gênero, o contexto acadêmico, abordando também os papéis dos atores, configurando também as funções e os objetivos desse evento comunicativo. Em seguida passo ao levantamento das contribuições de alguns lingüistas que se preocuparam em entender o resumo como um gênero textual.
Contexto acadêmico
Resumir é também um saber-fazer necessário ao universo do ensino. Schneuwly e Dolz (1999) acreditam que o resumo constitui-se num “eixo de ensino/aprendizagem essencial para o trabalho de análise e interpretação de textos e, portanto, um instrumento interessante de aprendizagem” (p. 15).
Na prática acadêmica, a atividade de resumir é freqüentemente solicitada pelos professores de ensino superior que propõem a produção de resumos de gêneros em circulação no contexto universitário. Esses gêneros caracterizam-se por possuírem um enunciador “autorizado” pelo meio científico a veicular conhecimentos advindos de estudos e pesquisas. Essa autorização, somada ao poder da escrita, pode criar para o leitor um efeito de verdade, situando o discurso científico num espaço do saber que encontra respaldo na ciência.
Como lugar de práticas discursivas, o contexto acadêmico também estrutura um saber-fazer. Nas ciências humanas, o saber no meio acadêmico é um saber de teorias, de modelos de outros. A origem desses diferentes saberes e a forma de apropriar-se dos mesmos podem ou não manifestar-se lingüisticamente nos textos teóricos[4]. No entanto, tal como aponta Bakhtin (1929/2002) ao referir-se ao discurso retórico, o discurso científico não é tão livre na sua maneira de tratar o enunciado pelo outro. “Ele tem, de forma inerente, um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade” (p. 153). Em virtude disso há no meio acadêmico determinações específicas sobre como representar o discurso do outro, as regras de citação. Esse fazer obedece a convenções normatizadas, no caso do Brasil, pela ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas (cf. FRANÇA, 2003).
As regras estabelecidas pela ABNT para a citação nos resumos colocam à disposição do textualizador duas maneiras de expressar as vozes secundárias em seus resumos: a citação direta e a indireta. Tal como apontou Bakhtin (1929/2002: 147), embora essas formas sejam convencionadas socialmente, elas traduzem de maneira ativa e imediata uma apreensão ativa e apreciativa do discurso do outro.
Quanto ao funcionamento discursivo da linguagem, adaptando-o às considerações de Orlandi (1983), no contexto acadêmico, o estabelecimento da cientificidade no discurso pode ser observado em dois pontos: a) a metalinguagem; e b) a apropriação do cientista feita pelo aluno. Como a “metalinguagem tem um espaço para existir” (ORLANDI, 1983: 13), a expectativa no meio acadêmico é que o aluno-textualizador empregue as convenções estabelecidas para a linguagem em uso nesse contexto, ou seja, que reproduza com suas próprias palavras o saber legitimado pela instituição. A distância sócio-discursiva entre cientista, enunciador do texto-fonte, e textualizador não permite que esse se confunda com aquele. Por isso, acredito que a origem da voz veiculada no texto-fonte seja apontada pelo textualizador, através da referência bibliográfica e até mesmo do uso de citações, revelando assim para o professor-avaliador a origem do saber veiculado.
Quanto aos parâmetros da situação de ação da atividade didática, o resumo parece ter objetivos diferentes para os sujeitos envolvidos no processo comunicativo. Para o aluno, o resumo tem como função cumprir uma exigência do professor para a obtenção de nota, fonte de estudo, apreensão de conteúdos importantes. Já para o professor, o resumo é uma atividade que garante a leitura do texto pedido, além de ser um instrumento que possibilita verificar o que o aluno compreendeu do que foi lido.
Define-se dessa forma os papéis discursivos representados pelos sujeitos da produção textual, de um lado o aluno que deve demonstrar que está cumprindo com as exigências da disciplina e que está se apropriando dos saberes e do modo de fazer legitimados por essa esfera social; e de outro o professor que tem a função de avaliar o grau dessa apropriação.
Diante do exposto, produzir um resumo no meio acadêmico requer do sujeito um conhecimento do saber que circula nessa esfera e do fazer, prática discursiva definida pela comunidade da qual emerge esse gênero. Nessa perspectiva, a produção do gênero resumo, mais do que um simples procedimento de ensino-aprendizagem, é também um modo de inserção nas práticas de formação de futuros profissionais.
Vejamos então como o resumo é definido a partir das teorias que o consideram como um gênero em funcionamento no interior desse contexto específico.
Revendo o
Enfocando o resumo a partir do seu contexto de produção, Machado (2002), adotando as categorias do interacionismo sócio-discursivo de Bronckart (1999), acredita que a análise do contexto de produção de um texto é um poderoso auxiliar na classificação desse como pertencente ou não a um determinado gênero. Da mesma maneira que Bronckart (op. cit.), a autora define o contexto de produção como constituído pelas representações interiorizadas pelos agentes sobre o local e o momento da produção, sobre o emissor e o receptor considerados do ponto de vista físico e de seu papel social, sobre a instituição social onde se dá a interação e sobre o objetivo ou efeito que o produtor quer atingir em relação ao seu destinatário.
Embora a autora aborde brevemente o resumo no contexto acadêmico, a análise dos parâmetros estabelecidos a permite concluir que os resumos são:
Pensando o
Também abordando o gênero no interior da comunidade acadêmica, as pesquisas de Matencio (2003) revelam que, para produzir nesse meio, é preciso estar inserido na prática acadêmica, ou seja, não só ter se apropriado de conceitos e procedimentos em circulação nessa formação sócio-discursiva, mas também de maneiras de referenciar e textualizar esses saberes.
De acordo com essa autora, o resumo é um gênero que pode ser encontrado sob diferentes formas nas práticas acadêmicas de acordo com a função que exercem, podendo ser agrupados em duas categorias:
(i)
(ii) resumos colocados geralmente antes de um texto científico (artigos, dissertações, teses), que têm a função de apresentar e descrever o modo de realização do trabalho ao qual se refere – são os résumés ou abstracts.
Há também de acordo com Matencio (op. cit., p. 9), uma terceira categoria, os resumos que são solicitados pelos professores universitários com o propósito oferecer aos alunos a apropriação dos conceitos necessários à sua formação e de integrá-los às práticas discursivas do meio acadêmico. É nesse contexto que se insere o resumo como atividade didática, neste trabalho denominado resumo acadêmico. Esse tipo é no continuum proposto pela autora, o que mantém um maior grau de fidelidade com relação à configuração do texto lido.
Quanto à função, vemos que o resumo no contexto acadêmico serve tanto ao aluno, como eficiente instrumento de estudo dos inúmeros textos teóricos e científicos que tem que ler, quanto ao professor, como instrumento de avaliação que permite verificar a compreensão global do texto lido. Além disso, o resumo acadêmico pode ser considerado um gênero que proporciona ao aluno a inserção nas práticas acadêmicas.
BAKHTIN, Mikhail.
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BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 1999.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Linguagem, língua, fala e discurso. In: Discurso e ensino. Belo Horizonte: FALE-UFMG/Autêntica, 1999, p.15-25.
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FRANÇA, Júnia Lessa. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 6ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva et al. (Org.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36.
MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Atividades de (re)textualização em práticas acadêmicas: um estudo do resumo. In. Scripta. Belo Horizonte: PUC-MG, v. 1, n° 1, 1997, p. 109-122.
MEDEIROS, João Bosco. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas. São Paulo: Atlas, 1991.
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[1] Trata-se do estudo “Os gêneros do discurso”, escrito em 1952-1953 e não integralmente concluído, publicado em Estética da Criação Verbal (1952/1992).
[2] Como não são conhecidos “modelos” de resumo acadêmico que circulam no meio acadêmico, essa característica não será considerada para a definição desse gênero.
[3] O autor baseia esse conceito no de “formação discursiva” desenvolvido por Foucault (1969)
[4] A expressão texto teórico estará sendo usada a partir daqui como sinônima de gêneros que circulam no âmbito acadêmico.
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