SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
E CONSTRUÇÕES CONCESSIVAS
EM TEXTOS MIDIÁTICOS

Lúcia Helena Martins Gouvêa (UFRJ)

 

Introdução

Este artigo tem como proposta a apresentação de uma pesquisa individual que está sendo desenvolvida dentro do Projeto Integrado de Pesquisa do Centro Interdisciplinar de Análise do Discurso (CIAD) e do Projeto em Análise do Discurso e Ensino (PROADE), na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Trata-se de um estudo sobre o modo pelo qual o sujeito da enunciação se representa em construções concessivas ocorrentes em textos dos gêneros editorial, opinião e crônica do jornal O Globo.

É um trabalho que se insere em duas linhas teóricas: a Semiolingüística do Discurso, de Patrick Charaudeau (1992), e a Semântica da Enunciação, de Oswald Ducrot (1987).

A partir das duas teorias, estudam-se as construções concessivas, materializadas em enunciados com operadores do tipo mas e embora,  tendo como fundamento: (a) a noção de contrato de comunicação e os modos de organização do discurso, de Charaudeau, e (b) a teoria polifônica, de Ducrot. Alguns outros conceitos, como o de ato de fala (AUSTIN, 1962) e o de modalização (CHARAUDEAU, 1992), também são trabalhados, com o propósito de explorar todas as potencialidades das estruturas concessivas.

Este artigo, especificamente, funcionará como uma demonstração, a partir de um único texto – um texto opinativo –, da análise que se está efetuando no corpus.  Esse estudo recortado dará uma visão da pesquisa como um todo e revelará as contribuições que ela pode trazer não só para o leitor dos gêneros textuais em apreço, mas também para os estudos da semiolingüística do discurso e da semântica argumentativa.

Para bem compreender, porém, a tarefa a ser desenvolvida aqui, é pertinente que se faça um resumo das teorias e conceitos que fundamentarão a análise. Ei-lo.

 

Pressupostos Teóricos

A teoria de Charaudeau está apoiada na concepção de que a significação discursiva é uma resultante de um componente lingüístico e um componente situacional. O componente situacional, por seu turno, está ligado ao que ele denomina contrato de comunicação (1983).

A noção de contrato pressupõe que os indivíduos participantes de um mesmo corpo de práticas sociais sejam suscetíveis de acordar quanto às representações linguageiras dessas práticas sociais. Define-se, então, o contrato como um ritual sociolinguageiro constituído pelo conjunto de características que codificam as práticas sociolinguageiras e que resultam de condições de produção e de interpretação do ato de linguagem.

Assim, segundo o lingüista, desde o instante em que uma pessoa entra num táxi – por exemplo – ela se institui em “uma cliente informante do motorista, quanto ao rumo que vai tomar”. Ao mesmo tempo, ela institui seu interlocutor em “um motorista, tendo vontade de aceitação e poder de conduzi-la ao rumo que ela deseja”. A fala de alguém que entra num táxi e diz “Place Maubert” é, portanto, perfeitamente normal, mas é um fenômeno que poderia ser julgado mágico por um homem da Pérsia que não conhecesse o contrato linguageiro que liga esses dois sujeitos.

Em outros termos, o contrato comunicativo está relacionado à existência de um EU e de um TU determinados, a um dado propósito comunicativo, à criação de um certo tipo de expectativa e a uma determinada situação de comunicação. Configuram tipos de contrato de comunicação, por exemplo, o discurso publicitário, o eleitoral bem como o discurso jornalístico, contrato que engloba outros como a reportagem, o editorial, a crônica e o discurso opinativo, este último constituindo o texto que se analisará adiante.

Vale ainda registrar um outro conceito basilar na Semiolingüística do Discurso de Charaudeau (1983 e 1992): os modos de organização do discurso.

Chauraudeau faz distinção entre tipos de textos e modos de organização do discurso. Os primeiros – “a manifestação material da colocação em cena de um ato de comunicação” (1992: 645) – são vistos como um resultado; são o publicitário, o científico, o didático, o jurídico, etc.. Os segundos são encarados como um processo; são o descritivo, o narrativo, o argumentativo e o enunciativo.

O modo de organização descritivo caracteriza-se por apresentar estes três tipos de componentes: nomear, localizar-situar e qualificar. O modo de organização narrativo pode ser observado por intermédio destes outros três: os agentes, os processos e as seqüências. O modo argumentativo, de outra parte, configura-se quando existe um processo argumentativo, em cujo funcionamento se constata: (a) uma proposta sobre o mundo que provoque um questionamento quanto à sua legitimidade; (b) um sujeito que se engaje com relação a esse questionamento e desenvolva um raciocínio para tentar estabelecer uma verdade sobre essa proposta; (c) um outro sujeito que, relacionado à mesma proposta, questionamento e verdade, constitua-se no alvo da argumentação.

Por fim, quanto ao modo enunciativo de organização do discurso, destaca-se a sua função de organizar os lugares e o estatuto dos protagonistas do ato de linguagem, isto é, do EU e do TU. É o lugar em que se constrói uma mecânica conceitual da conjunção de um aparelho formal (lingüístico) que marca os protagonistas, com as constantes comportamentais que caracterizam as situações de fala. Resume-se o modo enunciativo, assinalando-se que ele está presente em todos os tipos de texto, por ser o modo que gerencia os demais.

A teoria de Ducrot (1983), por outro lado, tem como fundamento a concepção de que a argumentatividade não constitui apenas algo acrescentado ao uso lingüístico; ao contrário, está inscrita na própria língua. Nesse sentido, as instruções contidas pela significação de uma frase determinam a intenção argumentativa a ser atribuída aos enunciados dessa frase. Os enunciados, portanto, são empregados com a finalidade de orientar o interlocutor para certos tipos de conclusão, com exclusão de outros, isto é, servem de argumento para dadas conclusões, estabelecendo o que se chama orientação argumentativa ou discursiva.

Na gramática de cada língua, há uma série de morfemas responsáveis por esse tipo de relação, os chamados operadores argumentativos. Funcionam como operadores morfemas como até, mesmo, inclusive, somente, apenas, já que, pois, mas, embora etc.

Justamente com o propósito de analisar esses elementos que determinam o valor argumentativo dos enunciados, Ducrot, por intermédio da Semântica Argumentativa, estudou, durante muitos anos, o fenômeno da concessão, veiculado, sobretudo, por estruturas com operadores argumentativos do tipo mas.

Em Les mots du discours (1980), ao estudar as diferentes ocorrências do mas, Ducrot diz que a expressão P mas Q pressupõe que a proposição P possa servir de argumento para uma conclusão r, e que a proposição Q seja um argumento que anule essa conclusão. Na situação Ele havia sido bastante franco (P), mas a atmosfera era amigável (Q), franqueza e amizade conduzem a conclusões contrárias. O emprego do mas, entretanto, não implica uma contradição entre os dois conceitos. P e Q são duas informações que se opõem com relação apenas ao movimento argumentativo colocado em evidência pela conclusão r. Destaque-se, aqui, que r poderia ser algo como Logo o auditório ficou chocado, e não-r, portanto, seria Logo o auditório não ficou chocado.

Trata-se do mas restritivo. A afirmação que precede o mas aparece como uma coisa que se concede, que se reconhece e que a afirmação seguinte vai ultrapassar sem anular. Não anula no sentido de que a mantém no nível dos fatos, mas a ultrapassa no sentido de que a desqualifica do ponto de vista argumentativo.

Segundo Ducrot, a concessão é uma estratégia discursiva. Por meio dela, o indivíduo apresenta-se como sendo capaz de considerar outros pontos de vista que não o seu; valoriza a opinião do outro, e essa valorização parece um esforço de clarividência, de honestidade, e não de propósito.

Em Provar e dizer (1981), no caso das concessivas introduzidas por operadores do tipo embora [Ele é forte, embora seja pequeno], Ducrot mostra a possibilidade de se argumentar por meio do que é dito na oração subordinada [Ele é pequeno] contra o que afirma a principal [Ele é forte]. Há, entretanto, uma recusa de se seguir essa virtualidade argumentativa, e afirma-se a principal.

Ainda com a finalidade de estudar a concessão sob o prisma discursivo, Ducrot (1987) se vale de sua teoria polifônica da enunciação.

Para o lingüista, contrário ao postulado da unicidade do sujeito, um enunciado assinala, em sua enunciação, a superposição de diversas vozes. Essas vozes pertencem aos enunciadores (E1 e E2), seres que se expressam não por meio de palavras precisas, mas por intermédio de seu ponto de vista.

Em enunciados do tipo p mas q (ou do tipo p embora q), o fenômeno da polifonia consiste na apresentação não só do ponto de vista do locutor (L = E2), mas também da apresentação do ponto de vista do alocutário,  do de um terceiro ou  do da voz pública (E1). Num enunciado como O tempo está bom, mas estou cansado, observam-se essas vozes bem como a articulação entre elas. Veja-se:

E1 (alocutário): O tempo está bom (p) [logo você deve sair] (r).

L (locutor):     O tempo está bom (p)(E1), mas estou cansado(q) (E2)  [logo não devo sair] (~r).

No enunciado em apreço, o locutor diz, da perspectiva de E1, que o tempo está bom – argumento que leva à conclusão “logo eu devo sair”-, mas imediatamente acrescenta, da perspectiva de E2, a sua perspectiva, que está cansado – argumento para a conclusão decisiva “logo não devo sair”.

Constata-se, então, no sentido da seqüência lingüística “O tempo está bom, mas estou cansado” aquilo que Guimarães (1987) denomina representação do sujeito da enunciação. Seguindo a formulação de Ducrot, Guimarães define enunciação como o evento histórico do aparecimento do enunciado. Ele concebe enunciação independentemente do sujeito, o que permite dizer que o sujeito se representa diversamente nos enunciados que ocorrem no evento da enunciação. Assim, é importante verificar no enunciado em estudo o modo como o locutor – sujeito da enunciação – se representa: ele argumenta da perspectiva de E2, ou seja, da perspectiva mais forte, cujo argumento e conclusão prevalecerão.

Representar-se dessa forma, porém, não é a única possibilidade. Gouvêa (2002) registra um outro tipo de construção concessiva encontrado num corpus de sentenças judiciais.

Levando em conta o critério da orientação argumentativa, a autora assinala que, com determinados tipos de construções concessivas, o texto constrói-se na direção apontada pela perspectiva de E2 (que, nas estruturas estudadas por Ducrot, seria o lugar de onde L argumentaria), mas busca-se a adesão do destinatário para a direção oposta, a indicada pela perspectiva de E1 (que, nas construções estudadas por Ducrot, seria a do alocutário, de um terceiro ou da voz pública, portanto, a mais fraca).

Segundo ela, as construções em que o argumento da perspectiva de E1, o mais fraco, está a serviço da defesa da tese do texto são aquelas em que o locutor argumenta de um lugar não habitual. Considerando-se, pois, o critério da representação do sujeito da enunciação, observa-se que, nesse tipo de estrutura, o locutor muda de posição, argumentando da perspectiva mais fraca (E1), o que caracteriza um novo tipo de concessão, cuja marca é a mudança de posição do locutor.

Veja-se o recorte retirado de uma sentença que trata do caso de um funcionário público. Ele subtraiu do local em que trabalhava como vigia um pneu de um Volksvagem e um pneu de um Gol. Foi denunciado pelo Ministério Público, mas absolvido pelo Juiz.

Em alegações finais, o Ministério Público destacou a culpabilidade do acusado (E2), embora ela tenha sido atenuada pela confissão e pelo ressarcimento do prejuízo (E1).

Neste recorte, a autora constatou que o enunciado introduzido pelo operador embora, portanto o enunciado da perspectiva mais fraca, constituía um argumento para a tese do texto, segundo a qual a denúncia do MP era improcedente. Desta forma, em vez de o enunciado da perspectiva de E2 [o Ministério Público(...)] funcionar como argumento para a tese do locutor (o juiz), o enunciado da perspectiva de E1 [a culpabilidade (...)] é que desempenhou essa função. Assim, se a culpabilidade foi atenuada pela confissão e pelo ressarcimento do prejuízo, então a denúncia é improcedente.

No que diz respeito a dois outros conceitos a serem verificados nas estruturas concessivas do corpus da pesquisa – o de ato de fala e o de modalização –, observe-se o que se segue.

J. L. Austin e posteriormente J.R. Searle, entendendo a linguagem como uma forma de ação, são responsáveis por um trabalho de reflexão sobre os diversos tipos de ações humanas que se realizam por intermédio da linguagem: os atos de fala.

Austin distingue três tipos de atos: os locucionários, ilocucionários e perlocucionários.

Os locucionários, segundo Searle, constituem um ato de referência e um ato de predicação. Quando se diz O homem é inteligente, seleciona-se o elemento “homem” do mundo extralingüístico e predica-se acerca dele, isto é, atribui-se a ele uma certa propriedade, estado, característica ou comportamento – “é inteligente”.

Os ilocucionários consistem na atribuição, ao conteúdo proposicional formado de elemento do mundo extralingüístico (homem) e predicação (é inteligente), de uma força, que pode ser de declaração, pergunta, conselho, censura, concessão e tantas outras.

Tomando o conteúdo proposicional “o homem ser inteligente”, concebe-se que ele possa atualizar-se de diversas formas, cada uma se caracterizando por uma dada força ilocucionária, determinada pela enunciação. Pode-se ter uma força de pergunta ao se usar a linguagem desta forma: O homem é inteligente? Pode-se perceber um ato de declaração em O homem é inteligente, ou ainda um ato de concessão em Embora o homem seja inteligente, nem sempre se comporta como tal.

  Segundo Austin e Searle, os atos ilocucionários podem ser, por exemplo, diretos ou indiretos. São diretos quando se realizam por um tipo de forma lingüística específica do ato: o modo imperativo para um ato de ordem; o morfema “embora” para realizar um ato de concessão, e assim por diante. São indiretos quando realizados por meio de recursos típicos de outros atos, o que implicará o acionamento, por parte do interlocutor ou alocutário, de seu conhecimento de mundo para compreender a verdadeira força ilocucionária. É o que se constata numa situação em que uma criança chega à cozinha de sua casa, sente o cheiro da comida e diz: Estou com fome. Seu interlocutor interpretará o enunciado como um pedido de que lhe sirvam a comida e não como uma simples declaração.

No que concerne ao ato perlocucionário, diz-se que é aquele cuja finalidade é exercer certos efeitos sobre o interlocutor: convencê-lo, assustá-lo, agradá-lo etc. Esses efeitos, entretanto, nem sempre se realizam. Um ato de persuasão pode não persuadir o interlocutor; um ato de ameaça pode não ter sucesso. Considerando-se o exemplo Você é inteligente; deve comportar-se como tal, constatam-se, além dos atos locucionário(s) e ilocucionário(s), um ato perlocucionário que pode ser de convencimento, se o indivíduo, a partir do argumento Você é inteligente, reconhecer que deve comportar-se de modo diferente. Pode, porém, ocorrer um ato perlocucionário de divertimento, se ele achar graça do conselho e da argumentação a que o parceiro recorreu.

Por fim, vale chamar atenção para o fenômeno discursivo da modalização.

Charaudeau (1992: 647, 571) diz que a modalização é uma categoria de língua que agrupa procedimentos estritamente lingüísticos, procedimentos esses que permitem exprimir explicitamente o ponto de vista do locutor.

Para que se expresse o modo pelo qual o conteúdo proposicional deve ser interpretado, recorre-se a marcas lingüísticas que são os modalizadores: advérbios (certamente, provavelmente etc.), verbos auxiliares modais (poder, dever etc.), orações modalizadoras (eu aceito que, eu o autorizo a etc.) etc.. Esses índices formais introduzem modalidades arquetípicas como modalidade do obrigatório, do necessário, do provável, etc. Há, porém, muitos outros modos de se dizer aquilo que se quer dizer e que não devem ser rotulados, sob pena de se perder de vista a realidade semântica da língua e dos usos. É o caso de uma construção do tipo Eu virei amanhã, que não contém nenhuma marca lingüística de modalidade, mas que pode ser um modo particular de se fazer uma promessa ou uma ameaça, por exemplo, dependendo da situação de comunicação.

Encerra-se o assunto com a observação de Charaudeau (1992: 574) segundo a qual a modalidade corresponde a meios de expressão que permitem explicitar as diferentes posições do sujeito falante e suas intenções.


 

O Texto Opinativo

O texto escolhido para representar a pesquisa que está sendo desenvolvida intitula-se “Bento XVI e o fundamentalismo” e foi escrito em 03/05/2005 pelo jornalista Ali Kamel.

É um texto que se encaixa num contrato de comunicação determinado – o discurso jornalístico – e, dentro desse contrato, em um gênero específico – o gênero opinativo. Por essa razão, apresenta determinadas características linguageiras que vão ao encontro das expectativas do alocutário.

Sendo a defesa de tese uma marca típica do gênero opinativo, observa-se que o articulista apresenta quatro teses e, para defendê-las, constrói seu texto, utilizando-se dos quatro modos de organização do discurso.

Com o propósito de justificar a opinião de que “a raiz da confusão (em se dizer que Bento XVI defendera o fundamentalismo, ao defender uma fé clara,) está no significado da palavra fundamentalismo” (l. 74, 75), o articulista argumentou desta forma:

Foi no fim do século XIX que protestantes conservadores americanos pregaram o retorno ao que eles chamaram de fundamentos da fé contra toda sorte de inovações. (...). O que aqueles cristãos pregavam era uma leitura absolutamente literal dos textos sagrados. (...). Com o advento do radicalismo islâmico, por empréstimo, passou-se também a chamá-lo de fundamentalismo, porque se acreditava que o que os fundamentalistas islâmicos pregavam era o retorno do Islamismo aos fundamentos do Islã, à literalidade do alcorão.

Mas isso foi um equívoco. (...) O que os fundamentalistas fazem é dar ao Alcorão uma interpretação radical e não uma leitura literal.

Tendo em mente a matriz cristã ou islâmica do termo, chamar de fundamentalista a Igreja (...) é pura ignorância. Nada mais longe da literalidade do que a teologia católica. (...) Isso não quer dizer, no entanto, que a Igreja não se apegue aos fundamentos de sua fé. Isso não a torna fundamentalista, mas faz dela apenas o que ela é: uma fé, uma crença. (...) Ser crente, de qualquer religião é exatamente isso: acreditar.

Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem. Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça.

No trecho em apreço, constata-se, por exemplo, o recurso ao modo narrativo de organização do discurso. O articulista relata um fato que se passou no fim do século XIX – o fundamentalismo cristão – e um fato que ocorreu posteriormente – o radicalismo islâmico. Observa-se, igualmente, entrelaçado à narrativa, o modo descritivo, ao se caracterizarem as duas correntes, protestante e islâmica. Atentando-se para o final do trecho, especificamente, verifica-se o modo argumentativo ao se articularem dois enunciados por meio do operador mas. A presença dos três modos de organização, na construção da defesa da tese, por seu turno, configura o modo enunciativo de organização do discurso. Por meio das três estratégias, o locutor demarca sua posição, organizando os lugares de onde argumenta e sinalizando a direção para a qual deseja orientar seu discurso.

Por outro lado, a articulação entre os dois enunciados por intermédio do operador mas constitui a ponte entre a teoria de Charaudeau dos modos de organização do discurso e a teoria de Ducrot segundo a qual a argumentatividade não constitui apenas algo acrescentado ao uso lingüístico; ao contrário, está inscrita na própria língua.

Em Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem (acreditar). Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça, encontra-se a estratégia argumentativa da concessão veiculada por uma construção com o operador discursivo mas (p mas q). Levando-se em conta a orientação argumentativa dos enunciados bem como o fenômeno da polifonia, tem-se:

E1: Num mundo como o nosso nem todos conseguem (acreditar) (p) [logo nem todos têm fé] (r).

L: Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem (acreditar) (p) (E1). Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça (q) (E2) [logo todos devem ter fé] (~r).

Observa-se o enunciado da perspectiva de E1 [Num mundo como o nosso (admito) nem todos conseguem (acreditar)] funcionado como argumento para a conclusão “logo nem todos têm fé”; e o enunciado da perspectiva de E2 [Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça] funcionando como argumento para a conclusão “logo todos devem ter fé”. Por intermédio do primeiro argumento, o mais fraco, o locutor concede razão ao alocutário, a um terceiro ou à voz pública, reconhecendo a pertinência de seu argumento e da conclusão para a qual aponta, mas, por meio do segundo, o mais forte e de sua perspectiva, desqualifica a argumentação do adversário, fazendo concluir em sentido contrário.

A conclusão para a qual o argumento de L orienta (logo todos devem ter fé), por ser a decisiva, conduz o discurso, ainda que indiretamente, para a quarta tese do articulista – “a raiz da confusão em se dizer que Bento XVI defendera o fundamentalismo, ao defender uma fé clara, está no significado da palavra fundamentalismo”.

Na verdade, o catolicismo diz que todos devem ter , e prega essa conduta porque a fé é a essência das religiões. Por outro lado, ter a fé como essência não significa interpretar os textos religiosos nem literalmente, como faziam os cristãos protestantes (fundamentalistas genuínos), nem radicalmente, como fazem os islâmicos (fundamentalistas por empréstimo). Significa apenas ter uma crença, acreditar.  Assim, “a raiz da confusão em se dizer que Bento XVI defendera o fundamentalismo, ao defender uma fé clara, está no significado da palavra fundamentalismo” (idem).

Observando-se ainda a construção concessiva do ponto de vista da representação do sujeito da enunciação, constata-se que o locutor argumenta da perspectiva de E2 – a perspectiva mais forte e cuja conclusão prevalece – como previram Ducrot e Guimarães ao tratarem do fenômeno da polifonia nos enunciados com operadores do tipo mas e do tipo embora.

No que diz respeito ao conceito de ato de fala, identifica-se, na construção em estudo, um ato de concessão, na medida em que o locutor, ao dizer “Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem (acreditar)”, imprime uma força de concessão ao enunciado, concedendo razão àqueles que pensam dessa forma. Destaque-se, ainda, que se trata de um ato de fala direto. Apesar de não vir marcado por um operador concessivo, forma lingüística específica do ato, está presente a forma verbal admito, que equivale a reconheço, concedo razão. Quanto ao ato perlocucionário que o enunciado [Num mundo como o nosso, admito, (...), seguido do enunciado Mas é nisso que reside (...)] constitui, sempre que ele convencer alguém, valerá como um ato perlocucionário de convencimento.

Por fim, com relação ao fenômeno discursivo da modalização, observa-se o seguinte. O articulista poderia ter defendido a tese de que “o catolicismo é uma religião cuja característica é a fé e não a leitura literal dos textos religiosos ou o radicalismo”, dizendo apenas isto: “Ser crente, de qualquer religião, é exatamente isso: acreditar”, e é nisso que reside o que as religiões chamam de graça. Optou, no entanto, por uma construção concessiva – Ser crente, de qualquer religião, é exatamente isso: acreditar. Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem. Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça –, construção que constitui uma estratégia argumentativa por excelência. A escolha desse procedimento lingüístico – cuja característica é veicular, por meio de uma construção com o operador mas, a aceitação do ponto de vista do opositor, para fazê-lo aceitar o ponto de vista contrário – e não de outro procedimento – cuja característica é a expressão direta da opinião – constitui o fenômeno da modalização.

No que diz respeito à tese de que “A Igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs” (l. 13), o articulista, para apresentá-la, prepara o caminho desta forma:

Quando o cardeal Ratzinger disse que a Igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs, ele estava (...) fazendo uma constatação histórica, no entanto a frase causou enorme polêmica tanto na época quanto agora, quando circulou novamente depois que foi eleito Papa.

Analisando-se a construção concessiva do ponto de vista da representação do sujeito da enunciação e da orientação argumentativa, o que se constata é isto:

E1: Ele estava fazendo uma constatação histórica [logo a igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs].

L:  Ele estava fazendo uma constatação histórica (E1), no entanto a frase causou enorme polêmica tanto na época quanto agora (E2) [logo a igreja não deve ser mãe (mas sim irmã) das demais denominações cristãs].

O que se pode observar, na construção destacada, é que há dois enunciados. O primeiro, da perspectiva de E1, é o concessivo, que funciona como argumento mais fraco; o segundo, da perspectiva de E2, é o restritivo, que funciona como argumento mais forte.

Trata-se, porém, de outra categoria de construção concessiva quanto à representação do sujeito da enunciação. Diferentemente do tipo de construção estudado por Ducrot, essa estrutura se caracteriza pelo fato de E1 não ser apenas a perspectiva do alocutário (de um terceiro ou da voz pública), mas ser também a do locutor (L). Vale dizer, L, além de conceder razão àqueles que entendem que “o Cardeal estava fazendo uma constatação histórica”, toma-lhes o argumento para si, argumentado desse lugar, a perspectiva mais fraca.  Essa mudança de perspectiva, por parte de L, torna-se clara ao se observar a conclusão para a qual o enunciado aponta – logo a igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs –, conclusão que constitui a primeira tese defendida pelo articulista.

De outra parte, E2, a perspectiva mais forte, é o lugar de onde o locutor na condição de narrador (LN) argumenta. Em outras palavras, dessa perspectiva, tem-se uma entidade lingüístico-discursiva que argumenta por meio de um relato: “a frase causou enorme polêmica tanto na época como agora, quando circulou novamente depois que foi eleito Papa”.

Assim, discursivamente, o que se tem é isto:

E1(L + alocutário): Ele estava fazendo uma constatação histórica [logo a igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs].

E2 (LN): A frase causou enorme polêmica tanto na época quanto agora [logo a igreja não deve ser mãe (e sim irmã) das demais denominações cristãs].

L:  Ele estava fazendo uma constatação histórica (E1=L), no entanto a frase causou enorme polêmica tanto na época quanto agora (E2=LN) [logo a igreja não deve ser mãe (e sim irmã) das demais denominações cristãs].

O que se verifica, no que concerne à representação do sujeito da enunciação, é uma mudança de posição do locutor, mudança essa que, seguindo Gouvêa, constitui um novo tipo de concessão.  Esse fenômeno pode ser explicado pela conduta do articulista de se utilizar, com muita freqüência, do relato de fatos para argumentar, ou seja, ele recorre ao modo narrativo de organização do discurso para defender suas teses. Pode-se dizer, até, que ele privilegia esse modo de organização para fundamentar suas opiniões. Por outro lado, se ele opta por privilegiar a narrativa de fatos para argumentar, isso ocorre em detrimento do modo argumentativo, o que faz com que a entidade discursiva L se apresente de um lugar mais discreto – a perspectiva mais fraca, a de E1 –, enquanto a entidade discursiva LN ocupa uma posição de destaque – a perspectiva mais forte, a de E2.

Por fim, é importante registrar que realmente o argumento mais forte determina a progressão textual, como mostrou Ducrot ao propor sua teoria da orientação argumentativa. Depois de declarar que a frase causou a maior polêmica, tanto na época em que foi dita quanto depois de o Cardeal ter sido eleito Papa, o articulista usa o operador no entanto, que anula a conclusão sugerida anteriormente. Se a conclusão não tivesse sido “logo a Igreja não deve ser mãe (..)”, ele não poderia ter empregado o operador restritivo. Veja-se:

Quando o cardeal Ratzinger disse que a Igreja é mãe e não irmã das demais denominações cristãs, ele estava (...) fazendo uma constatação histórica, no entanto a frase causou enorme polêmica tanto na época quanto agora, (...) [logo a igreja não deve ser mãe (e sim irmã) das demais denominações cristãs]. Tudo o que se passou desde a morte de João Paulo II, no entanto, não é outra coisa senão a prova de que o então Cardeal estava certo.

Como se pode perceber nesta outra categoria de construção concessiva, tem-se a seqüência do texto determinada pelo argumento da perspectiva de E2, mas a tese do articulista é defendida pelo argumento da perspectiva de E1, a perspectiva de L. Isso significa que o jogo de representações do sujeito da enunciação tem um valor argumentativo próprio, contrário à orientação argumentativa.

Conclui-se com o entendimento de que os textos opinativos constituem um gênero textual cujas construções concessivas podem ser de dois tipos: um em que sujeito da enunciação argumenta da perspectiva mais forte; outro, da mais fraca. Cada um dos modos de representação do sujeito funciona como uma estratégia específica.


 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

ANSCOMBRE, J.C. e DUCROT, O. L’argumentation dans la langue. Bruxelas: Mardaga, 1983.

CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

DUCROT, O. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.

GOUVÊA, L.H.M. Perspectivas argumentativas pela concessão em sentenças judiciais. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.

GUIMARÃES, E. Texto e argumentação. Um estudo de conjunções do português. Campinas: Pontes, 1987.

KOCH, I.V. A inter-ação pela linguagem. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1997.

SEARLE, J.R. What is a speech act? In: ROSEMBERG, J. e C. Travis. (eds.) Readings in the philosophy of language. Englewood Cliffs, N. J.: Prentice Hall, 1971.

 

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos