Surdez, língua e
subjetividade
uma experiência multidisciplinar
em uma unidade de saúde
Edicléa Mascarenhas Fernandes (UERJ)
A lingüística como disciplina de caráter universal possui campos de atuação bastante diversos. Neste artigo argumento as possibilidades de diálogo interdisciplinar de campos de saberes como a lingüística, psicologia, fonoaudiologia, sociologia para a fundamentação de novos dispositivos de atenção em saúde, que envolvam a concepção do ser humano em toda sua plenitude.
Neste trabalho apresento relato de experiência desenvolvido no Centro de Atenção à Pessoa Portadora de Deficiência do Sistema Único de Saúde do Município de Duque de Caxias de 1997-2000. Ao final avalio as contribuições que o campo da lingüística pode oferecer para o entendimento da subjetividade humana e a promoção de dispositivos mais intergralizadores no sistema de saúde.
Surdez e implicações na subjetividade
O diagnóstico de surdez severa e profunda de um bebê traz para seus familiares o encontro com medos e fantasias inerentes ao estigma que a deficiência comporta.
Há depoimentos dolorosos de pais que recebem a comunicação do diagnóstico por atendentes de saúde, ou no pior dos casos, o profissional de saúde incita-os imediatamente a investir em outro filho, como se o filho portador de deficiência fosse um caso perdido. Outros pais em entrevistas de triagem nos informam que, ao relatarem ao médico que percebiam algo diferente no desenvolvimento de seu bebê, foram rotulados de ansiosos e orientados a terem calma e paciência. A saúde ainda convive com o ideário de que o profissional deva trabalhar a família e não trabalhar com a família. (FERNANDES:1999, 6)
A publicação do Ministério da Saúde intitulada “Atenção à Pessoa Portadora de Deficiência no Sistema Único de Saúde – Planejamento e Organização de Serviços (1993) sugere nos vocábulos planejamento e organização dirigido aos gestores de saúde, seus interlocutores básicos, que esta parcela da população carece de adequações de serviços e equipamentos adequados as suas singularidades. Este documento propõe ainda a necessidade de hierarquização de serviços, respeito à regionalização e a cultura local, envolvimento de familiares.
A organização de modelos de assistência à pessoa portadora de deficiência não tem sido tradição uma visão interdisciplinar e totalizadora dos sujeito. O modelo cartesiano que dominou as ciências positivistas e humanas foi incorporado nas práticas educacionais e de saúde. Da modernidade.
Em relação às práticas pedagógicas e de saúde destinadas a pessoas com deficiências esta concepção positivista centrou-se no “paradigma” de uma suposta normalidade. O conceito de normalidade e de dispersão serão incorporados pelas ciências humanas.
O corpo da “pessoa com deficiente” passa então a ser marcado e circunscrito dentro desta prática, medido, mensurado e subordinado á lógica do “suposto corpo normal”. Marcam-se todos os desvios, das formas, dos gestos, dos decibéis, da acuidade visual. E o que deveria ser uma característica a mais da subjetividade do sujeito passa a ser a totalidade do mesmo: a pessoa com surdez, passa a ser “O SURDO”, a pessoa cega passa enfim a marca de uma circunscrição da qual dificilmente o sujeito se libertará.
Atualmente, a medicina se defronta com a urgência da discussão de novos paradigmas sobre o adoecer humano fora da ótica do cartesianismo clássico. O paradigma da complexidade nos traz uma visão que pretende romper com as dicotomias: corpo x mente, natureza x cultura, biológico x psicológico.
A concepção clássica do tratamento do surdo consistia na remissão de seu sintoma, isto é, dar-lhe audição. A oralização, neste sentido passa a ser a meta para o sucesso do tratamento. Esta concepção fundamenta-se numa filosofia “ouvinticentrista” que marcará o destino desta pessoa e de seus familiares.
Ao perseguir como meta o oralização da pessoa surda, os primeiros anos da infância fundamentais para aquisição de uma língua de forma natural, no contato social é negado ao surdo, que precisa aprendê-la ( o Português) em consultório fonoaudiológico em ambiente artificial.
Esta intervenção nos primórdios da existência acarretou a inúmeros surdos a impossibilidade da aquisição de um sistema lingüístico para comunicação, para a introjeção de regras sociais, para trocas afetivas, e posteriormente a aquisição do sistema de escrita. Muitas crianças surdas são encaminhadas a avaliações neurológicas. Tais limitações geram marcas na construção da identidade, na sua qualidade de vida. Outros passam suas existências privados de uma comunicação plena simbólica, pois não se tornam “falantes” da língua portuguesa, nem usuários da língua brasileira de sinais. Neste sentido sua comunicação fica bastante restrita a uma simbologia privada, particularmente entendida no seu universo mais restrito (pai, mãe e irmãos).
É neste sentido, que as práticas de reabilitação implantadas pelas políticas públicas devem considerar a questão lingüística do humano, como fator de promoção de saúde (física, mental e social).
Preconceito Lingüístico
e a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)
A Sociolingüística foi um dos ramos da Sociologia que apresentou trabalhos relevantes com o estudo das variantes lingüísticas e o processo de dominação que o grupo social impõe, quando elege uma determinada variante como padrão. LABOV (apud CAMACHO, 1999) foi quem primeiro argumentou em relação à discriminação que crianças negras norte-americanas sofriam nas escolas por não falarem a variação padrão. No Brasil, Soares (1995) também realizará estudos demonstrando como crianças de rede pública desenvolviam sentimentos de inadequação, apatia, distúrbios na aprendizagem por não terem sua variante lingüística respeitada.
No panorama de uma discussão sobre direitos humanos, o preconceito lingüístico pode ser considerado como uma das formas mais brutais e veladas a que um ser humano possa está exposto. Violência esta muitas vezes legitimada pelo próprio sistema escolar, seja pelo desconhecimento ou descaso das contribuições que a lingüística pode oferecer neste campo.
Pode-se vislumbrar como a questão da pessoa surda é muito mais problemática, na medida em que não se trata de uma variante lingüística, mas do acesso a língua.
Grasiela Alido da Universidade Museo Argentino e Diretora da Escola Bilingüe, em seu artigo Sociolingüística da Surdez e Bilingüismo (1994) afirma que a questão do fracasso escolar da criança surda deve-se ao fato da primazia das metodologias oralistas que não contemplam na educação de surdos o ensino da Língua de Sinais.
A Língua de Sinais é independente da linguagem oral e preenche eficazmente as necessidades de comunicação do humano.
Nos anos recentes, lingüistas como William Stokoe começaram a estudar o sistema de Língua de Sinais em comunidades de surdos. Observaram que as línguas de sinais diferem de cultura para cultura.
A Língua de Sinais é analisada em três componentes básicos: a localização (em relação ao local do corpo onde o sinal ocorrerá), a configuração da mão ou mãos ( por exemplo se a mão tomará a forma de uma letra do alfabeto dactilológico, como no caso das palavras cantar e cachorro que aposição da mão é a letra c; e o terceiro componente o movimento e a orientação da mão.
Este componentes, equivalentes aos fonemas das línguas orais, Stokoe denominou de “queremas” (cheremas, do grego cheir, mão). Os “queremas” constituem a unidade elementar visual da linguagem sinalizada, tal como o fonema constitui a unidade elementar auditiva da linguagem falada. Quando se troca um fonema de uma palavra, modifica-se o significado da mesma como em faca e vaca. Quando se modifica o querema do sinal, modifica-se o significado do mesmo, porque modifica-se um dos eixos lingüísticos. Os eixos lingüísticos são três: o da tabulação ( local do corpo), o da designação ( posição da mão) e o da signação ( movimento da palma da mão).
As comunidades de surdos têm-se organizado para garantia de seus direitos lingüísticos, nos mais diversos campos sociais: o direito à educação bilíngüe, o direito à saúde, o direito a ser atendido dignamente com intérprete nos serviços públicos e privados, o direito a filmes legendados, o direito a ser surdo.
Atualmente as lutas de defesa pela legitimidade da Língua Brasileira de Sinais culminaram na promulgação da Lei 10436 em 24 de abril de 2002 que no artigo 1, parágrafo único destaca:
Entende-se como Língua Brasileira de Sinais a forma de comunicação e expressão em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades surdas Brasil.
Em 02 de dezembro de 2004 entrou em vigor o decreto 5296 que estabelece normas e critérios básicos para promoção da acessibilidade quanto a barreiras físicas e também comunicacionais –propõe a criação de serviços de atendimento para pessoas com deficiência auditiva, prestado por intérpretes ou pessoas capacitadas em Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, prevê a redução barreiras nas comunicações e informações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos dispositivos, meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa, bem como aqueles que dificultem ou impossibilitem o acesso à informação. O artigo 59 prevê que o poder público apoiará preferencialmente os congressos, seminários, oficinas e demais eventos científico-culturais que ofereçam, mediante solicitação, apoios humanos às pessoas com deficiência auditiva e visual, tais como tradutores e intérpretes de LIBRAS, ledores, guias-intérpretes, ou tecnologias de informação e comunicação, tais como a transcrição eletrônica simultânea.
O Centro de Atenção
à Pessoa Portadora de Deficiência
Uma experiência multidisciplinar de garantia
do direito lingüístico da pessoa surda
como fonte promotora de saúde
O Centro de Atenção à Pessoa Portadora de Deficiência desenvolveu de 1997-2000 um projeto pioneiro na área da saúde organizando um programa de reabilitação para pessoas surdas baseado num modelo transdisciplinar. Classicamente os serviços de saúde para pessoas surdas organizavam-se dentro do modelo ‘ouvinticentrista”, isto é a oralização servia como uma meta a ser atingida.
Os anos 80 representaram momentos de conquista de novas filosofias de atendimento a pessoas surdas, surgem abordagens de ensino que começaram a incorporar a LIBRAS, tais como a Comunicação Total, que a utilizava como recurso para compreensão da Língua Portuguesa, baseando-se muito mais em um português sinalizado. Nesta época alguns técnicos da área da fonoaudiologia, psicologia e pedagogia iniciam trabalhos dentro desta abordagem com resultados bastante promissores para o desenvolvimento lingüístico, cognitivo, afetivo e social dos alunos surdos.
No final dos anos 80 e início dos anos 90, inicia-se a abordagem do bilingüismo privilegiando a aquisição da LIBRAS nos primeiros anos de vida da forma mais naturalística possível, como qualquer língua materna aprendida em ambiente natural.
O trabalho desenvolvido no Centro de Atenção a Pessoa Portadora de Deficiência pretendeu oferecer a criança surda recém diagnosticada e seus familiares uma abordagem mais totalizadora que não se detivesse na ausência da audição como parâmetro para avaliação e acompanhamento do paciente surdo.
Ao receberem o diagnóstico da surdez os pais atravessam muitas etapas até atingirem a elaboração do luto da perda do filho idealizado.
É um momento em que estas famílias se encontram em maior vulnerabilidade, necessitando de apoio de uma equipe técnica.
A equipe foi composta por um surdo adulto fluente em Libras, uma fonoaudióloga com especialização em audiologia, uma fonoaudióloga experiente em Libras, um intérprete de sinais, uma psicóloga, uma assistente social, uma bolsista de pedagogia.
A criança e a família entravam em acompanhamento por esta equipe multidisciplinar. As crianças em contato permanente com a Libras através das sessões programadas de encontro com o surdo adulto em que ficavam expostas a uma comunicação natural.
Os pacientes eram também avaliados nas questões audiológicas, eram protetizados pelo banco de prótese auditiva do Centro de Atenção e freqüentavam as sessões de aprendizado do português para oralização e posteriormente a aquisição da língua escrita.
Os pais aprendiam Libras com o surdo adulto e esta relação trazia ao pais expectativas de projeção de seu filho no futuro. Comumente as famílias interessavam-se por aspectos da vida do professor surdo tais como : ser casado, situação de escolaridade. Estas questões eram fundamentais para a construção do imaginário de seu filho futuramente.
Os depoimentos dos pais durante o período de acompanhamento demonstravam a necessidade e o prazer do aprendizado da Língua de Sinais e o quanto transformou as relações com os filhos, na medida em que possuíam uma língua capaz de dar conta das necessidades básicas na comunicação pais- filhos para a introjeção de regras sociais, demonstração de afeto, preocupação, segurança.
Conseqüentemente houve uma redução dos comportamentos anti-sociais das crianças como birras, inadequação de atitudes, ansiedade e hiperatividade, pois a aquisição da língua pelo humano desloca o enfoque comunicacional do aparelho locomotor para a expressão corporal e a Libras é fundamentalmente expressa através deste canal .
Este projeto durante o tempo em que foi desenvolvido trouxe a certeza de que os sistemas de saúde necessitam, assim como a escola transformar suas ideologias e espaços de atendimento garantindo a promoção da vida humana sem barreiras, inclusive as lingüísticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALISEDO,G. Lingüística e Bilingüismo: Sociolingüística da Surdez e Bilingüismo. In Revista Espaço. Instituto Nacional de Surdos, ano III, n° 4 – jan./jun,1994, p 13- 19.
BRASIL. Lei 10436 de 2002. Disponível em www.planalto.gov.br. Acessado em 10 de julho de 2004.
–––––. Decreto 5296 de 2004. Disponível em www.planalto.gov.br. Acessado em 10 de julho de 2004.
CAMACHO,R. G. Sociolingüística- parte II. In: MUSSALIN e BENTES. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras,v.1, 3ª ed. São Paulo: Cortez,2000.
BOTELHO, P. Segredos e silêncios na educação dos surdos. Belo Horizonte: Autênctica, 1998.
BRITO, L. A integração social e educação de surdos. São Paulo: Babel Editora Universidade, 1973.
FERNANDES, E. M. Educação para todos- saúde para todos: a urgência da adoção de um paradigma multidisciplinar nas políticas públicas de atenção às pessoas portadoras de deficiências. Revista do Instituto Benjamin Constant. Ano 5, número 14, dezembro 1999, p. 3-10.
SKLIAR, C(org.). Um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1995.
........................................................................................................................................................... |
Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos |