A INTERFACE DO TEXTO DE SÃO JERÔNIMO
COM O LATIM CRISTÃO
Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)
O LATIM CRISTÃO
São Jerônimo, como tantos outros autores de sua época ou anteriores a si, que podemos classificar como cristãos, trazem uma diferenciação em seu latim com relação ao latim arcaico ou mesmo em relação ao latim clássico.
M. Vendryes, citado por Christine Mohrmann[1], afirma que, sendo o latim dos cristãos uma língua especial, entende-se que esta língua “só é utilizada por grupos de indivíduos postos em circunstâncias especiais”. Cada língua especial, língua de um grupo especial, é, pois, o resultado da presença de um fator de diferenciação. À medida que o elemento de diferenciação desempenha um papel mais importante na vida dos indivíduos usuários da língua especial, a diferenciação lingüística será mais intensa e mais profunda. No caso do latim cristão, o agente de diferenciação é o cristianismo, a religião do livro santo, a Sagrada Escritura.
O latim cristão nasce, pois, desse elemento de diferenciação que é o cristianismo, o tertium genus[2] como se dizia então, ou seja, os cristãos se distinguiam dos judeus e dos pagãos. Tendo-se difundido, a princípio, no seio do proletariado urbano, o cristianismo foi, aos poucos, ganhando um espaço cada vez maior junto às classes aristocráticas, difundindo-se cada vez mais graças à solidariedade de grupo gerada do suportar juntos os sofrimentos e as perseguições. A revolução espiritual que se operou na sociedade antiga com o advento do cristianismo desembocaria em uma revolução lingüística, ou em nascimento de uma língua de grupo. Por outro lado, esta língua de grupo evolui no quadro do latim tardio; ela é uma língua que não poderia se separar da língua comum da época. É verdade que, com a propagação do cristianismo, este grupo de cristãos se amplia, e o que era a língua de um grupo restrito tornar-se-á a língua comum. Os traços característicos que marcavam o idioma do grupo dos cristãos serão um dia a propriedade comum de uma sociedade que se dirá cristã. Mas esta evolução nos conduz para bem além dos primeiros séculos. Em sua bagagem, o latim cristão traz muitos vulgarismos e torneios de frases populares que acabam ganhando foros de legitimidade na nova ordem e na nova língua, fixando-se na mente dos fiéis, que, a princípio, são os mais simples do povo, depois é que a aristocracia irá converter-se ao cristianismo.
Na época de Jerônimo, este grande exegeta e tradutor da Bíblia, há um grupo de matronas da aristocracia que se reúne em torno de Jerônimo para dele haurir a sabedoria que procede do conhecimento das fontes hebraicas, veiculadas na mais pura tradição da herança clássica latina. Jerônimo tem cabedal para operar a alquimia que requer todo trabalho de tradução, ou seja, não apenas a manutenção da fidelidade ao texto original e expressão adequada do conteúdo original em um novo código lingüístico e cultural, mas a atenção que dirige, por exemplo, aos elementos poéticos e estilísticos, como ritmo, sons, efeitos de estruturas sintáticas e elementos morfológicos e pragmáticos. Em relação às antigas versões da Bíblia, tal fato não se dava, uma vez que as versões existentes eram resultantes de um extremo literalismo, de formas rudes e ausência quase completa de cuidado literário. Essas versões da Bíblia escandalizavam os homens de letras. Na língua vulgar, por exemplo, o uso de quoniam era mais freqüente que na língua clássica, e a tendência de usar esta conjunção preferencialmente a outras se conservou no uso do latim entre os cristãos.
A língua latina era por tradição uma língua de grande parcimônia no uso de vocábulos, restringindo sempre a necessidade de criação de neologismos, por índole própria e original de ser a língua arcaica dos pastores do Lácio uma língua de índole mais prática, mais afeita à expressão prosaica e concreta, pouco adaptada a expressões sofisticadas ou refinada, se atentarmos às origens do povo latino, quando então se limitava a um grupo de vocábulos um tanto restrito, aos quais se restringia a necessidade básica de comunicação do primitivo povo latino. Assim, seja por exagero de nossa parte, seja porque a história da língua e da literatura latina nos dá as evidências, os romanos contavam com um vocabulário bastante limitado a um repertório quase que exclusivamente de uso imprescindível, muito característico de um povo sem sofisticação, pouco dado à expressão de operações que requeressem muita abstração. O latim cristão, após vários séculos de experimentação, abrirá perspectivas, em parte e a seu modo, para a expressão de uma linguagem de maior elaboração.
A língua dos cristãos, ao contrário, dava livre curso à criação de neologismos, a partir dos elementos morfológicos antigos, atribuindo-lhes novo significado. A partir do verbo beare, do qual deriva beatus, beator e beatrix, os cristãos criarão beatificare, assim como glorificare, clarificare, honorificare, magnificare. O latim cristão substituía termos do latim antigo por outros de origem grega, cultura na qual o cristianismo primitivo moldou muitas de suas expressões; assim temos propheta, em vez de vates ou fatidicus, cathecumenus em vez de auditor; magnalia em vez de portenta, ecclesia ou basilica em vez de templum, mysterium em vez de sacramentum. Houve ou passou a haver construções latinas cristãs, motivadas por estruturas similares na língua grega do tipo de interrogativa indireta introduzida por si, por exemplo.
O caráter internacional das primeiras comunidades cristãs determinou em larga escala a afluência de elementos lingüísticos estrangeiros. A consciência da novidade da religião foi o fator mais forte para operar as mudanças que se julgavam necessárias.
A obra de Henri Goelzer (1884) é um importante referencial para o estudo da língua de São Jerônimo. Nela vemos um amplo estudo da gramática latina nos escritos de Jerônimo e a prodigiosa renovação que Jerônimo imprimiu na língua latina, sobretudo pelos numerosos neologismos.
O ASPECTO DO VOCABULÁRIO
Procederemos neste item à apresentação de grupos de vocábulos, selecionados e agrupados de acordo com a proximidade ou afinidade de significado e por sua utilização no texto da Apologia, bem como o sistema de oposições que Jerônimo estabelece para o emprego destes vocábulos no mesmo texto.
Em primeiro lugar, verbos para marcar acusação ou refutação: accusare (JERÔNIMO, 1983: 194), arguere (JERÔNIMO, 1983: 46), calumniari (JERÔNIMO, 1983: 30)., criminari (JERÔNIMO, 1983: 48 ; cf.t b. 162 e 276), se excusare (JERÔNIMO, 1983: 124), indignari (JERÔNIMO, 1983: 50), obicere (JERÔNIMO, 1983: . 6, 90, 18 e 134), quereri (JERÔNIMO, 1983: 126 e 232). Estes verbos se juntam a seus complementos com as conjunções cur ou quare.
O adjetivo simplex e seu substantivo correspondente simplicitas têm significado ambivalente de candura e, concomitantemente, de ausência de discernimento e tolice. Na Apologia, alguns outros vocábulos recobrem o sentido de simplicitas: bruti (JERÔNIMO, 1983: 252), fatui (JERÔNIMO, 1983: 108), imperiti (JERÔNIMO, 1983: 284).
O substantivo malitia (JERÔNIMO, 1983: 8) que aparece no primeiro parágrafo do primeiro livro da Apologia opõe-se a prudentia, do mesmo modo que prudentia opõe-se a nequitia[3]. Ora Rufino carece de prudentia, ora Jerônimo o parabeniza por tê-la, com ênfase[4], sendo que a maior parte das ocorrências de prudens, -ter, -tia acontece no terceiro livro da Apologia (19 das 35 totais). O par opositivo stultitia / malitia faz sua aparição no terceiro livro da Apologia[5].
Há numerosos vocábulos que testemunham do conflito entre Jerônimo e Rufino o lado que tal conflito tem de insidioso, de perigosas armadilhas. Assim têm esse sentido: argutia (argutus, argute), callide, cauillari, (con)fingere, cuniculi, diuerticula, dolus (dolose), eludere, fallacia, falsitas (falsatio, falsator, falsare), figuratus, fraus (fraudulentia, fraudulenter), infidelitas, insidiae (insidiose, insidiari), lubricus, machinae, malitiae, mendacium (mentiri), praestigiae, (dis)simulator (dissimulasse), sortia, subdolus, subnectere, subterfugere, suffugium, tendiculae, tergiuersatio (tergiuersari), uersutiae. No segundo livro da Apologia, Jerônimo apresenta Rufino sustentando que o confessor Hilário de Poitiers teria sido excomungado e obrigado a deixar a assembléia reunida em um concílio, realizado em Rimini, depois que, tendo os bispos descoberto um livro repleto de heresias, Hilário teria sido surpreendido pela existência de tal livro entre seus pertences. Segundo depõe Jerônimo, a forma com a qual Rufino narra o fato acontecido a Hilário não deixa dúvida sobre o terreno movediço em que tal narrativa lança o piedoso confessor.[6] Igualmente movediça e traiçoeira a situação em que se encontrou Jerônimo diante de seu amigo Dâmaso, de quem era também o secretário encarregado da redação das cartas, quando uma correção feita no texto por apolinaristas faria Dâmaso pensar em um acréscimo proposital no texto, por parte de Jerônimo.[7] É propósito da Apologia expurgar a hipocrisia, desmascará-la em suas armadilhas. Destarte, dirige-se Jerônimo a Rufino com os seguintes termos: “...te...subdolum esse conuincam...”[8]
Um outro campo semântico importante que agrega em torno de si uma série de vocábulos: a franqueza, aqui presente no advérbio de modo aperte, o qual aparece algumas vezes no superlativo[9] colocado no superlativo “satis aperte”, faz explodir aquilo que se mascarava sob aparência de elogio e era, de certa forma, contido por ele. Em compensação e em sentido contrário a considerações sutis e contidas, as faltas de Rufino são apontadas de modo flagrante e inconfundível. São elas: blasphemia (JERÔNIMO, 1983: 126, 138 e 164), calumnia (JERÔNIMO, 1983: 64), ineptiae (JERÔNIMO, 1983: 158), mendacium (JERÔNIMO, 1983: 104, 164, 240 e 294), que aparecem acompanhadas do adjetivo apertus(-a,-um) ou de sua forma superlativa (ex.: apertissimum mendacium) ou de uma expressão verbal com advérbio (ex.: aperte mentiaris).
Para amicus, encontramos a ocorrência de sinônimos que acusam sensível expressividade: é o caso de familiaris meus (JERÔNIMO, 1983: 156 e 198), meus necessarius (JERÔNIMO, 1983: 14 e 24).
O vocábulo libertas faz par com auctoritas no sétimo parágrafo do primeiro livro.[10] No fragmento citado em nota, a libertas é negada a Rufino tanto pela negação quanto pelo verbo retineberis, pouco adequado a um tal complemento. A auctoritas pode remeter aos patrocínios invocados por Rufino: o de Jerônimo, que ele prefere aos de Hilário, Ambrósio, Vitorino[11] ou do mártir Pânfilo[12]. Rufino é colocado diante da responsabilidade de autor que ele escamoteia habilmente distinguindo auctor e interpres[13]. Ora, Orígenes autor e Rufino tradutor são solidários.[14]
ASPECTOS MORFOSSINTÁTICOS
Praeuium aparece no primeiro parágrafo do primeiro livro como um adjetivo substantivado[15]. No mesmo fragmento citado, encontramos a ocorrência do diminutivo de opus, “opusculum”, que poderia, com grande probabilidade, traduzir um emprego irônico da expressão de modéstia, fato que poderíamos atestar também no terceiro livro da Apologia[16].
A Apologia está repleta do emprego do advérbio idcirco, com 23 ocorrências(+ quia: 9; + ut: 9; + ne: 1) , ideo, com 13 ocorrências (+ quia: 5; + ut: 3; + ne: 2). Jerônimo seria, com os autores da Historia Augusta, o único pós-clássico a preferir idcirco a ideo, como já fazia Cícero (196 idcirco contra 59 ideo)[17]
ASPECTOS PRAGMÁTICOS
O dilema é uma arma apreciada pelo dialético Jerônimo. Vejamos um exemplo disso: Si sunt uera quae scripsit, cur publicum metuit? Si falsa, cur scripsit? (JERÔNIMO, 1983: 8).
É notável o uso que Jerônimo faz de uma figura da pergunta, a interrogatio, no início do primeiro livro da Apologia[18], de modo a compor um quadro bastante detalhado de toda a situação que o motiva a empreender a sua própria defesa. O furor de invectiva pessoalista que este conjunto de interrogações evoca tem sabor de estilo de discurso de ciceroniano, especialmente os de acusação. O trecho citado é uma boa mostra de sua herança clássica, daquilo que aprendeu nas aulas de retórica, nos momentos marcados pela ansiedade, quando a presença dos professores severos e a tensão do momento o obrigavam a ter bom desempenho nas provas de oratória.[19] A veemência ressurgirá no parágrafo 11 do primeiro livro.[20] O furor pessoalista retornará no oitavo parágrafo do terceiro livro da Apologia. Aí, obrigado pelas circunstâncias (as acusações de Rufino), Jerônimo fará uso do gênero judiciário que repousa nesta dupla faceta de accusatio/defensio, e sua realização formal seria uma cascata de interrogationes que trabalham em defesa própria de nosso autor.[21]
FIGURAS DE LINGUAGEM
A antítese amicus/inimicus aparece em vários momentos da Apologia.[22] A amizade entre Jerônimo e Rufino é sobretudo evocada nos parágrafos 1 a 3 do primeiro livro, no parágrafo 35 do segundo livro e nos parágrafos 37 e 41 do terceiro livro da Apologia.
Em se tratando de casos de antonomásia, a Apologia é farta em ocorrências desta figura. Já na abertura da obra[23], Jerônimo estabelece um jogo com o nome de Rufino (Tyrannius Rufinus) e o nome de um certo Tirano de que nos fala Lucas no livro dos Atos dos Apóstolos (Atos 19, 9.), em cuja escola o apóstolo Paulo segregara os seus ouvintes para obter melhor proveito para a sua pregação. A antonomásia é, de fato, um recurso de largo emprego na obra que analisamos. Em resposta aos rumores que lhe chegam da Apologia contra São Jerônimo, Jerônimo não deixa de observar a intervenção satírica desqualificadora de Rufino com relação ao mestre de língua hebraica de Jerônimo que, passando de Baranina para Barrabás, traz consigo o estigma tanto da cultura hebraica quanto da criminalidade. Indo mais adiante, Jerônimo aumenta o grau da licença de mudar os nomes que se permitiria Rufino, segundo nosso autor, ao confundir, por exemplo, hipoteticamente, Jerônimo e Sardanapalo[24], a virtude e a voluptuosidade. Temos uma antomásia irônica que parte de Jerônimo para desqualificar seu adversário Rufino: é “...Aristarchus nostri temporis...”[25] A antonomásia não teria o sentido irônico que tem se não pusesse em oposição a alta qualificação filológica de Aristarco com a ignorância de noções elementares do conhecimento de língua latina: “...Illud miror quod, Aristarchus nostri temporis, puerilia ista nescieris...” (JERÔNIMO, 1983: 46) Ainda falando do ofício das letras, que constitui, em grande parte, como se pode perceber, a matéria desta querela, Jerônimo dissocia as letras e as riquezas[26]. Os personagens que vão representar a antonomásia das riquezas são Creso e Dario. Creso e Dario, respectivamente, rei da Lídia no século V a. C e rei da Pérsia morto em 485 a. C., foram modelos do soberano rico.
É um clichê freqüente a associação da idéia de heresia a veneno.[27] É a título de antídoto que o terceiro livro da Apologia é enviado por Jerônimo àqueles que haviam lido os textos de Rufino, para agir sobre os danos que os “venenos” de Rufino havia causado neles.[28] É para extirpar o veneno que Jerônimo lança ao final do terceiro livro da Apologia uma longa série de provérbios tirados da Sagrada Escritura.[29] Ainda no terceiro livro da Apologia, o clichê reaparece quando Jerônimo se refere à tradução da Apologia de Orígenes, segundo o autor, falsamente atribuída por Rufino ao mártir Pânfilo, que viria ratificar uma visão católica da obra Perì Archôn de Orígenes, a partir da tradução de Rufino.[30]
Como exemplo de comparação, temos a comparação da competência lingüística de Rufino a um grau ínfimo de mobilidade: o de uma tartaruga. Neste estágio, o adversário que nosso polemista desqualifica estaria na fase do balbucio (“...Tu qui in latinis mussitas...” (JERÔNIMO, 1983: 48)) e, em termos de velocidade e agilidade, no reino animal, a tartaruga é um dos animais menos velozes servindo, portanto, como termo de comparação à performance literária do adversário de Jerônimo: “...testudineo gradu moueris potius quam incedis...” (JERÔNIMO, 1983: 48) Outro exemplo advém do Evangelho de Mateus: “...Quotiens uolui congregare filios tuos, sicut gallina congregat pullos suos sub alas suas, et noluisti!...” (JERÔNIMO, 1983: 76; Mateus 23, 37)
Encontramos na Apologia vários exemplos do que chamaríamos de expressões proverbiais ou similares, que são torneios de frase que têm elaboração semelhante à de um prouerbium ou de uma sententia, encerrando um significado profundo, completo e abrangente, e formalmente reduzido (poucas palavras, curta extensão). Daí a sua força poética e a riqueza de imagens que estas expressões proverbiais permitem vislumbrar a partir de sua parcimônia formal e verbal. Vejamos um exemplo: “...Quando sine nomine contra uitia scribitur, qui irascitur accusator sui est...”[31] Encontramos igualmente a expressão proverbial: “...Bibendum igitur mihi erit de lethaeo gurgite...”[32]
Hipérbole ou exageração expressiva da verdade acrescenta ao texto de combate o tom que carrega consigo a necessidade de uma expressão sempre maior que aquela que seria conveniente a uma exposição em um tratado filosófico, por exemplo. A função da hipérbole em textos como o da Apologia seria similar à da voz alta ou do brado para que alguém se faça entender por outras pessoas, quando há uma aglomeração de pessoas em espaço aberto. A hipérbole carrega nas tintas para tornar compreensível e aceito o que passaria desapercebido da maioria como apenas evidente, mas sem vez nem voz . Jerônimo precisa fazer-se ouvir: por isso usa hipérbole. Exemplo: “...Confossus iaceo, stridet uulnus in pectore, candida prius sanguine membra turpantur...” (JERÔNIMO, 1983: 34.)
Passemos às metáforas. A ruptura da amizade mal reparada e os danos daí advindos, como é o caso da amizade de Jerônimo e Rufino que dá lugar a danos e uma dissidência cada vez mais irreparáveis, acharam na pena de Jerônimo a expressão que Horácio deu à desavença entre Júlio Floro e Munácio, os quais viram a ruptura de uma aliança fraterna. O texto desta metáfora é o seguinte: “...Male sarta gratia nequicquam coit et rescinditur...” (JERÔNIMO, 1983: 10).
Segundo o texto da Apologia, os modelos que Rufino poderia visar como alvo de sua invectiva, uma vez que estes haviam traduzido também grande parte da obra de Orígenes, deveriam ser aqueles que ele nomeia como “as colunas que Rufino preteriu” para atacar “uma pulga” (Jerônimo). Esta é uma metáfora construída no fragmento que citaremos e que carrega um quê de hipérbole, uma vez que constrói dois pólos antagônicos e de paralelo incompatível.[33]
A névoa ou a bruma (nubilum) serve para nomear os estados sombrios ou confusos do coração ou os significados não muito definidos da alegoria. Jerônimo diz que a atitude de Rufino de reação contra a sua tradução do Perì Archôn revela descontrole, falta de habilidade em manter controle sobre as “brumas do coração”[34]. Igualmente para representar o sentido alegórico, a imagem da bruma serve para caracterizar a imagem do incerto e misterioso[35]
A metonímia é uma figura que consiste em um bom número de relações. Aqui encontramos três: a de instrumento e de seu uso respectivo, a de matéria e sua utilização, a de autor e obra. A férula ou palmatória aparece metonimicamente ligada aos golpes que, com ela, aplica o mestre sobre as mãos dos alunos indisciplinados e preguiçosos. Era evitando os golpes da férula, ou “subtraindo a mão à férula”, isto é, sendo discípulo diligente, que Rufino aprenderia a arte de (bem) falar.[36] A metonímia que encontramos no seguinte fragmento “...Demosthenes plus olei quam uini expendisse se dicit...” (JERÔNIMO, 1983: 48) apresenta-nos a relação existente entre o material líquido e a utilização que dele se faz. A utilização do óleo servia, no contexto das culturas antigas, a produzir iluminação noturna, alimentando uma chama que clareava o ambiente e permitia o trabalho de leitura e de escrita; a utilização do vinho servia para o desfrute da embriaguez. Disso resulta para a interpretação que a declaração de Jerônimo acerca dos gastos de Demóstenes com uma quantidade maior de óleo ajuda a construir a idéia - baseada em testemunho de valor como o de Demóstenes - de quanto é importante para o cultivo das letras a dedicação, por meio de vigílias noturnas, período do dia em que, naquele tempo da Antigüidade clássica, usava-se o óleo para a iluminação noturna.
Há ocorrência também de metonímia em que se estabelece uma relação entre autor e obra: “...Reuolue Aristotelen...” (JERÔNIMO, 1983: 56); “...aut ego fallor, aut tu Ciceronem occulte lectitas...” (JERÔNIMO, 1983: 84); “...plautino in me sale ludere...” (JERÔNIMO, 1983: 36)
O vocativo irônico de amigo, da parte de Jerônimo para Rufino, é muitas vezes reforçado por adjetivos às vezes no superlativo: bone[37], carissime[38], dulcissime[39], simplicissime[40], amicus fidissimus[41].
CONCLUSÃO
A renovação lingüística que o advento do cristianismo trouxe para a língua latina atingiu de modo significativo, não apenas o vocabulário, mas também as estruturas sintáticas, operando seleção de tendências e usos já existentes e dando a eles novos estatutos, com a introdução de novos campos semânticos que irão se manifestar, a nível de vocabulário, nos inúmeros neologismos, para expressar as coisas da nova religião, e expressar significados novos para usos e empregos já antigos.
Procuramos levantar na Apologia de Jerônimo contra Rufino as tendências novas que surgem com o já assim batizado latim cristão. Em muitos momentos, Jerônimo transmite elementos da fonte em que bebeu na juventude: os clássicos. Mas o contexto atual da sua maturidade nos transmite o seu engajamento cristão, a cultura bíblica e esse latim que se reveste desses novos elementos.
BIBLIOGRAFIA
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[1] Vendryes.. Le langage. Paris: 1950: 293, apud Mohrmann, 1961: 85.
[2] Expressão encontrada nos Stromata 6, 5, 41, de Clemente de Alexandria, em uma passagem em que é citado um fragmento da Praedicatio Petri, que data do II século (apud Mohrmann, 1951: I, 86)
[3] Ocorrência deste par opositivo em São Jerônimo, Apologia, p. 282.
[4] JERÔNIMO, 1983: 72: “...Miror te hominem prudentissimum non intellexisse artem expositionis meae...”
[5] JERÔNIMO, 1983: 264: “...per illius stultitiam tua in me malitia debacchata est...”
[6] JERÔNIMO, 1983: 156: “...Hoc familiaris meus narrat somnium, et tantae auctoritatis se putat ut nemo ei contra confessorem ista simulanti audeat contradicere...”
[7] São Jerônimo, Apologia, p. 158: “...sub nomine cuiusdam amici Damasi, romanae urbis episcopi, ego petar, cui ille ecclesiasticas epistulas dictandas credidit, et apollinarianorum uersutiae describantur, quod Athanasii librum, ubi ‘dominicus homo’ scriptus est, acceptum ad legendum, ita corruperint ut in litura id quod raserint rursus inscriberent, ut scilicet non ab illis falsatum, sed a me additum putaretur...”
[8] JERÔNIMO, 1983: 232: “...Tantum sensibus respondebo, et te in omnibus nequaquam soloecistam ac barbarum, sed mendacem, subdolum, impudentem esse conuincam (!)...”
[9] JERÔNIMO, 1983: 8: “...Frater et collega in praefatiuncula uocor et satis aperte exponuntur crimina mea, quid scripserim, quibus in caelum Origenem laudibus eleuarim...”
[10] JERÔNIMO, 1983: 20: “...Ex quo non interpretis libertate, sed scriptoris auctoritate retineberis, si quid, in his quae uertisti, haereticum conprobetur, et manifestissimi criminis argueris, idcirco te ueneni calicem circumlinire melle uoluisse, ut simulata dulcedo uirus pessimum tegeret...”
[11] JERÔNIMO, 1983: 10: “...Si auctoritatem suo operi praestruebat, uolens quos sequeretur ostendere, habuit in promptu Hilarium confessorem, qui quadraginta ferme millia uersuum Origenis in psalmos et Iob transtulit; habuit Ambrosium, cuius omnes paene libri huius sermonibus pleni sunt, et martyrem Victorinum, qui simplicitatem suam in eo probat dum nulli molitur insidias. De his omnibus tacet et, quasi columnis Ecclesiae praetermissis, me solum pulicem et nihili hominem per angulos consectatur...”
[12] JERÔNIMO, 1983: 26: “...Tene potuisse haeretici hominis libro martyris nomen imponere, et ignaros, sub auctoritate testis Christi, Origenis facere defensores?...”
[13] JERÔNIMO, 1983: 124: “...Si enim aliquid est quod displiceat in auctore, quare id ad interpretem detorquetur?...”
[14] JERÔNIMO, 1983: 22: “...Duplex in opere meo utilitas fuit, dum et haereticus auctor proditur, et non uerus interpres arguitur...” ; p. 130: “...Igitur unius et auctor et interpres eius criminis erunt, et implebitur illa sententia: Videbas furem et currebas cum eo, et cum adulteris portionem tuam ponebas...” ;
p. 252: “...Quod et Hilarius in transferendis homeliis eius fecit, ut et bona et mala non interpreti, sed suo imputarentur auctori...”
[15] JERÔNIMO, 1983: 8: “...Voluerat me in interpretatione quasi praeuium sequi et auctoritatem operis sui ex nostris opusculis mutuari...”
[16] JERÔNIMO, 1983: 230: “...Nisi forte pro angustia temporis non potuisti ea in ordinem digerere, aut aliquem de eruditis conducturus eras, qui in opusculis meis gemmarum eloquentiae tuae ornamenta perquiret...”
[17] Lardet, P. (1993), p. 44, nota 74 a.
[18] JERÔNIMO, 1983: 8: “...Rogo: Quis est iste dolor? quid aestuant? quid insaniunt? Quod praeconem reppuli figuratum? quod nolui me subdolo ore laudari? quod sub amici nomine inimici insidias deprehendi? Frater et collega in praefatiuncula uocor et satis aperte exponuntur crimina mea, quid scripserim, quibus in caelum Origenem laudibus eleuarim. Bono animo fecisse se dicit. Et quomodo nunc eadem inimicus obicit quae tunc amicus laudauerat? Voluerat me in interpretatione quasi praeuium sequi et auctoritatem poeris sui ex nostris opusculis mutuari. Suffecerat semel dixisse quod scripseram. Quid necesse fuit eadem rursus iterare et frequenter ingerere et, quasi nemo sibi laudanti crederet, ipsa dicta replicare? Non est tam sollicita de audientium fide simplex et pura laudatio. Quid metuit ne illi, sine dictorum meorum, in meis laudibus non credatur?
[19] JERÔNIMO, 1983: 82: “...nunc cano et recaluo capite saepe mihi uideor in somnis, comatulus et sumpta toga, ante rhetorem controuersiolam declamare; cumque experrectus fuero, gratulor me dicendi periculo liberatum...”
[20] JERÔNIMO, 1983: 32: “...Tantis terrarum spatiis separatus, quid peccaui in te? quid commerui? An quia origenisten me non esse respondi? Numquid defensio mea tua est ? Et tu, si non es origenistes uel non fuisti, credo iuranti; si fuisti, suscipio paenitentem. Quid doles, si id sum quod tu esse te dicis? An quia Peri ArXwn Origenis libros post te transferre ausus sum, et interpretatio mea sugillatio putatur operis tui? Quid poteram facere? ...”
[21] JERÔNIMO, 1983: 236: “...Quid me uis facere, bone amice? Taceam? Videbor crimen agnoscere. Loquar? Terres me gladiis tuis, et accusationem non iam ecclesiasticam, sed tribunalium comminaris. Quid feci? Quid commerui? In quo te laesi? Quia me negaui haereticum? Quia tuis laudibus dixi indignum? Quia haereticorum fraudulentias et periuria aperto sermone descripsi? Quid ad te, qui et catholicum et ueracem esse te iactas, qui libentius me accusas quam te defendis? Num mea defensio accusatio tua est? Aut aliter orthodoxus esse non poteris nisi me haereticum comprobaris? Quid tibi prodest societas mea? Aut quae est ista prudentia? Accusatus ab aliis, accusas alium; ab alio appeteris, et illi tergum obuertens, quiescentem contra te prouocas...”
[22] JERÔNIMO, 1983: 8: “...quod sub amici nomine, inimici insidias deprehendi?...” Ainda aparece o mesmo par antitético nas páginas 198, 264.
[23] JERÔNIMO, 1983: 6: “...Et uestris et multorum litteris, didici obici mihi in schola Tyranni, a lingua canum meorum ex inimicis ab ipso, cur Peri Ar X wn in latinum uerterim...”
[24] Sardanapalo é um lendário rei, último rei do I Império da Assíria, símbolo do homem voluptuoso e afeminado. O texto a que nos referimos encontra-se em JERÔNIMO, 1983: 38.
[25] Aristarco da Samotrácia (morto por volta de 145 a.C.) dirigiu a Biblioteca de Alexandria. Suas recensões (sobretudo de Homero) fizeram dele o tipo do crítico exigente.
[26] JERÔNIMO, 1983: 48: “...Quamuis Croesos quis spiret et Darios, litterae marsupium non sequuntur...”
[27] JERÔNIMO, 1983: 262: “...Tu autem, dum inter mulsum magistrorum et uenena pariter bibis, a magistro Apostolo recessisti qui docet etiam angelum et se, si in fide errauerint, non sequendos...” Também presente o mesmo clichê, p. 282: “...Tibi soli licet haereticorum uenena transferre et de calice Babylonis cunctis gentibus propinare...” Igualmente, mais adiante, p. 306: “...Consona omnes uoce poscebant ut Origenis uersutias proderem, ut uenena haereticorum romanis auribus cauenda monstrarem...”
[28] JERÔNIMO, 1983: 236: “...Misique hos ipsos apologiae meae libros ad eos quos tu uulneraueras, ut uenena tua nostra sequeretur antidotua...”
[29] JERÔNIMO, 1983: 334: “...maluique insaniam excantare furibundi et unius libri antidotum uenenato pectori infundere...”
[30] JERÔNIMO, 1983: 280: “...quod tuum operculum uenenatae patellae imponeres...”
[31] JERÔNIMO, 1983: 36. A reação de Rufino às críticas de Jerônimo, visto que Jerônimo denuncia os vícios e as heresias, acusaria em Rufino seu comprometimento com a heresia.
[32] JERÔNIMO, 1983: 84. Significaria a obrigação de esquecer tudo o que aprendera na infância (cultura clássica pagã), para passar por um bom cristão e cumprir promessas feitas em sonho (ep. 22).
[33] JERÔNIMO, 1983: 10: “...De his omnibus tacet et, quasi columnis Ecclesiae praetermissis, me solum pulicem et nihili hominem per angulos consectatur...”
[34] JERÔNIMO, 1983: 36: “...Prudentis hominis fuerat, etiam si dolebas, dissimulare conscientiam, et cordis nubilum frontis serenitate discutere...”
[35] JERÔNIMO, 1983: 76: “...Quando dico ‘tropicam’ doceo uerum non esse quod dicitur, sed allegoriae nubilo figuratum...”
[36] JERÔNIMO, 1983: 48: “...uel graece debes scribere ut, apud homines graeci sermonis ignaros, aliena scire uidearis, uel si latina temptaueris, ante audire grammaticum, ferulae manum subtrahere et inter paruulos aqhnogerwn , artem loquendi discere...”
[37] JERÔNIMO, 1983: 236: “...Quid me uis facere, bone amice?...”
[38] JERÔNIMO, 1983: 158: “...Quaeso te, amice carissime, ut in ecclesiasticis tractatibus, ubi de ueritate dogmatum quaeritur et de salute animarum nostrarum maiorum flagitatur auctoritas, huiuscemodi deliramenta dimittas et prandiorum cenarumque fabulas pro argumento non teneas ueritatis...”
[39] JERÔNIMO, 1983: 194: “...Quaeso te, amice dulcissime, qui tam curiosus es ut etiam somnia mea noueris...”
[40] JERÔNIMO, 1983: 26: “...Quid tibi animi fuisse dicam, amice simplicissime?”
[41] JERÔNIMO, 1983: 34: “...Esto, tu bono animo scripseris et, homo innocens et amicus fidissimus, de cuius numquam egressum est ore mendacium, me nescius uulneraris...”
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