Hipônax redivivus
comentários
acerca
do
jambo
I de Calimaco
e dos
gêneros
poéticos no
período
helenístico
Fernando Rodrigues Junior
O
jambo I de Calímaco abre
com uma
cena
bastante
peculiar. Hipônax
volta à
vida e se dirige a
um
público
específico anunciando
que traz o
jambo:
Ouvi Hipônax,
pois acabo de chegar
de
lá de
baixo,
onde vendem
um
boi
por uma moeda,
trazendo o
jambo,
não o
que
canta a
luta
contra Búpalo (...)
(vv. 1 – 4)
Segundo a diegesis
que acompanha o
papiro, o
alvo de Hipônax neste
poema seria a
multidão de
filo/logoi
reunida no Serapeion
em
constantes
discussões.
Após
lançar algumas
acusações
contra
aqueles
homens –
pelo
que podemos
inferir do
texto,
bastante fragmentado – o
poeta
passa a
lhes
contar uma
história de
fundo moralista,
bem adequada
para o
contexto de
rivalidade: a
taça de Báticles.
Báticles,
um
homem
árcade (...)
um
homem
feliz
entre os de outrora
foi e
tinha todas as
coisas pelas
quais os homens
e os
deuses conhecem os
dias brancos.
(vv. 32, 35-7)
Estando
prestes a
morrer
ele pede a
seu
filho Anfacles
que
entregue uma
taça
toda
feita
em
ouro ao
mais
sábio dos
Sete
Sábios.
Com a
morte do
pai, Anfacles vai
até Mileto
entregar a
taça a
Tales,
pois acreditava
que
ele,
mais
que
nenhum
outro, merecesse
ter o
prêmio.
Contudo
Tales
não aceita
ser considerado o
mais
sábio e
passa a
herança de Báticles às
mãos de Bias. A
taça acaba passando
por
todos os
Sete
Sábios
até
retornar a
Tales, consagrando-a, desta
vez, a Apolo Dídimo. O
emprego do coliambo justifica a
presença de Hipônax redivivus,
porém o
estilo do
poema de Calímaco difere
muito do da
produção jambográfica de
seu
antecessor.
Vale
lembrar
que à
poesia jâmbica subjaz o
conceito de yo/goj
e o
poeta jâmbico
sempre é
um
indivíduo raivoso.
Horácio na
Epístola aos Pisões (vv. 19)
já dissera
que a
raiva armou Arquíloco
com o
jambo
e no epodo VI 11-3 afirmara
contra os
malfeitores
erguer os
chifres
pontudos
como o
genro desprezado
contra Licambes
desleal.
Para Calímaco (fr. 380 Pf) Arquíloco mantém o
veneno de
sua
boca tomando a
acre
ira do
cão e o
ferrão
pontudo da
vespa.
Na
mesma
medida, Hipônax
era
visto, no
período helenístico,
como
um
poeta
picante e mordacíssimo, o
que pode
ser inferido a
partir de
alguns
epigramas da
Antologia
Palatina
como
este de Leônidas de Tarento:
Não passais
sem
tremor
diante da
tumba do
que está
em sono,
nem ergueis uma
picante
vespa
que está dormindo,
pois esta
tumba é de Hipônax, o
que latiu
contra os genitores.
Justamente
que
seu
coração repouse
em tranqüilidade.
Mas tomai
cuidado,
pois, consumidas
pelo fogo,
as
palavras daquele sabem
causar
danos
também no Hades.
(AP VIII 408)
Teócrito
também escreveu
um
epigrama descrevendo a
tumba de Hipônax e aconselhando aos
perversos
não se aproximarem dela (AP XIII 3). Alceu
de Messene assegura
que
sobre a
tumba do
poeta de Efeso,
em
virtude de
sua
acidez,
só crescem
plantas
que enrugam a
pele e irritam o
paladar de
quem as come (AP VII 405), ao
contrário da
hera e
pétalas florescentes
sobre o
túmulo de Anacreonte (AP VII 23) e
uvas e
rosas
sobre o de Sófocles (AP VII 22).
Neste
sentido, a
aparição de Hipônax no
jambo I de Calímaco parece inadequada,
sobretudo
quando o
objetivo do
poeta é
relatar uma
história de
fundo
moral aos filólogos e
encerrar a
sua
contenda.
Para Max Treu (Apud DEGANI
1977)
sua
presença no
poema se deve ao “fascínio
da
grosseria num
mundo refinado” e Bühler (Entretiens
1964) entende essa
aproximação
como uma
tentativa de
mitigar a
vulgaridade de Hipônax
e
lhe
conferir
maior
gravidade. No
entanto
passa
despercebido
para a
maioria dos comentadores
que o
próprio Hipônax afirma
nos
versos 3-4
não
cantar a
luta
contra Búpalo.
Portanto
não será o
escultor
que
lhe fez uma
imagem distorcida o
alvo de
suas invectivas,
tanto
quanto
não
são invectivas
que o
poeta pretende
proferir,
mas
justamente
fazer
com
que deixem de
ser proferidas
pelos filólogos no Serapeion. De
acordo
com Nagy 1976 o
jambo
trabalha
com o yo/goj
e se contrapõe ao e)/painoj do
epinício.
A
matéria do
jambo I de Calímaco pretende
justamente
interromper o yo/goj e
propor
um relacionamento
pacífico, contrastando
com as
características do
gênero e
com o
ânimo raivoso dos
poemas de Hipônax.
Como
nota Clayman (Apud
KONSTAN 1998: 134)
Temos
diante de
nós
um
espetáculo
muito
irônico: Hipônax falando no
interesse de Calímaco, a
voz
mais
importante nas
controvérsias literárias alexandrinas, pedindo aos
outros
literatos
que estão
em
querela
para
gentilmente pararem de
brigar e
isto no
primeiro de
seus
poemas jâmbicos.
Ou seja, Hipônax
aparentemente
testa os
limites do
gênero do
qual
ele seria
um dos
principais representantes.
Com
isso Calímaco pretende
aludir
diretamente à
tradição
poética jâmbica e
inserir
matérias
que ultrapassam a
esfera da invectiva. No
jambo VI há a écfrasis da
estátua de Zeus
em Olímpia, no
jambo VII se relata
um aition: as
origens do
culto a Hermes Perfireu
em Eno e no
jambo VIII há
um
epinício louvando Pólicles –
ou seja,
um i)/amboj
cuja
matéria é o e)/painoj
–
ganhador de uma
corrida
com
ânfora. Devemos
ainda
acrescentar à
lista o
jambo XIII,
em
que o
poeta se defende das
críticas
feitas
pelos
opositores
por
escrever
poesia jâmbica
sem
ter
ido a Efeso e
por
misturar os
dialetos dórico e
jônico num
único
poema.
De
acordo
com a diegesis, Calímaco responde às
acusações de
poluei/deia,
ou seja, de
escrever
em variados
gêneros poéticos (ei)=doj)
e cita o
exemplo do
poeta
Íon de Quios. Sócrates no
diálogo
platônico
Íon afirma
que o
poeta compõe apartir do
poder
divino e
que
cada
um é
hábil
para
escrever
somente naquele
gênero
em
que as
Musas o impelirem (534b-c).
No
entanto Calímaco escreve
não
pela
inspiração,
mas
pela
técnica (te/xnh),
possibilitando-lhe a
variedade
genérica.
Encontramos
um
eco disso no
Prólogo aos Telquines,
quando o
autor pede
para
que
seus
versos sejam julgados
não
segundo o
alqueire
persa (sxoi/n%
Persi/di),
mas
segundo a
te/xn$
(fr. 1. 17-18 Pf). Inferimos, tendo
em
vista o
que a
documentação
textual pode
nos
proporcionar,
que
este é o
mais
antigo
jambo preservado (e
talvez o
primeiro) a
apresentar
como
matéria
discussões
estéticas e a
defesa de
um
programa poético. De
fato estamos
já
distantes da
natureza invectiva da
poesia jâmbica de Hipônax.
HUTCHINSON 1988 recomenda
cautela ao
invés de
hiperbolizar o
trabalho de
poetas helenísticos, afirmando
que o
cruzamento de
gêneros nesta
época
talvez tivesse
um
papel limitado.
Não é o
que os
textos
nos demonstram, no
entanto é
muito
provável
que esta
experiência
não fosse
surpreendente
ou
inusitada
para o
público
alexandrino. Neste
sentido o
jambo I de Calímaco é
menos
inovador do
que pressupõe Rossi 1971 ao
termos
informações de
que o
metro coliâmbico
era comumente utilizado no
final do
século IV e
início do III a. C.
por
autores
como Escrião,
Fênix de
Colofão e Parmenão.
Fazer
uso do coliambo,
portanto,
não é
dar
nova
vida a
um
metro
caído
em desuso.
Mais
curioso
ainda é
que
um
poema
em coliambos de
Fênix,
cuja
poesia
era
conhecida
por
sua
abordagem moralista,
justamente tematize a
história da
taça de Báticles.
Pois
Tales, o
qual é dos cidadãos
(...) o
mais sábio
e,
como dizem,
em
relação a
muita
coisa,
dentre os homens,
sendo o
mais
virtuoso, pegou a
taça
áurea.”
(fr. 4 Powell)
Por
mais
que Calímaco
não pretendesse
emular
este
jambo ao
escrever
seu
poema,
mas tomasse
como
fonte os Milesiacá de Meândrios de Mileto,
como sugere Diógenes Laércio (I 28), é
evidente
que, ao
testar os
limites da
poesia jâmbica,
alude
diretamente a
Fênix de
Colofão e se
mostra
menos
inovador do
que possa
parecer a uma
primeira
análise.
Um
século
antes de Calímaco a
questão dos
gêneros
já havia sido
gradativamente problematizada
por
alguns
poetas.
Mesmo
por
meio de
paródias, os to/poi
da
tradição
poética eram
objeto de
reflexão e
transgressão. Arquéstrato escreve
um
poema hexamétrico chamado
(Hdupa/qeia (para
muitos
conhecido
como
Gastronomia), no
qual expõe
conselhos
sobre
alimentação (SH 132 – 92). O
texto é chamado de
e)piko\n de\ to\ poi/hma
em
Ateneu 4e e o
poeta de e)popoio/j
em
Ateneu 335f.
Seu
grande
modelo
são os
Trabalhos e
dias e
tal
como Hesíodo pretende
exortar
seu
irmão Perses
com
preceitos
relativos ao
lavor, Arquéstrato direciona
sua
Gastronomia a
dois
amigos, Mosco e Cleandro (cf.
Ateneu 278d-e).
Por
sua
vinculação
genérica ao epos (seu
poema é
escrito
em hexâmetros) e
pela
paródia dos
poetas moralistas,
Ateneu VII 310a o
chama de o( tw=n
o)yofa/gwn (Hsi/odoj h)/ Qeo/gnij.
Crates compõe
um
hino à
Parcimônia (Eu)te/leia)
em
dísticos
elegíacos e
não
em hexâmetros (SH 361), antecipando os
Banhos de
Palas de Calímaco.
Por
fim,
ainda no
século
quarto, Erina escreve
um
lamento de
cerca de 300
versos à
sua
amiga de
infância Báucis,
que havia morrido (SH 401 - 2). Ao
invés do
metro
coral a
poeta
emprega o hexâmetro ,
mas
não se
vale do
dialeto
jônico, e
sim de uma
mistura de dórico e
eólico,
segundo a Suda (poi/hma
d� e)stin Ai)olik$= kai\ Dwri/di
diale/kt%). Temos, deste
poema,
cerca de 55
versos
bem fragmentados
oriundos de
um
papiro no
qual é
possível
perceber a
descrição provavelmente detalhada das
brincadeiras das duas
quando meninas.
Jogos infantis
são
próprios dos
gêneros
pedestres,
mais adequados à
poesia
cômica
que, de
acordo
com Dioniso Trácio, é dotada de uma
elocução biotikw=j
(cotidiana). No
entanto a Suda classifica Erina
como e)popoio/j,
apesar de
sua
matéria
baixa,
denotando a complexidade deste
poema –
difícil de
ser
devidamente apreciado
dada a
condição do
texto – e a
total
relação
com a
poesia helenística produzida
cerca de
um
século
depois.
A
vinculação
genérica pressupõe uma
adesão a uma
tradição
poética precedente e estabelecida,
mesmo
que
por
regras implícitas de
uso. Na
medida
em
que os
poetas helenísticos aludem ao
rico
acervo de lugares-comuns adequados às
categorias genéricas,
eles propõem uma continuidade e,
sobretudo, uma
ruptura
com a
poesia
arcaica,
por
meio da
transgressão dos
to/poi esperados.
Calímaco no
jambo I menciona o
uso do
gênero
como adequado às invectivas
pessoais (ou)k
a)ei/dw
ma/xhn / boupa/leon vv. 3 – 4
cf.) e mantém
algo do
ânimo de Hipônax na comparação dos
homens
com
moscas
ou
vespas.
Ó Apolo, o[s
homens
tal]
como
moscas ao
redor do pastor
ou
vespas [saídas da
terra,
ou vind]os de
sacrifícios os delfos
em
massa [se amontoam]. Ó Hécate,
que multidão!
(vv. 26 – 8)
Porém
seus
jambos
não
são
mais
veículo
para os
ataques
pessoais e
sua
elocução
não
mais é
baixa. A
história da
taça de Báticles tem
como
fim
cessar as inimizades
entre os
ditos
sábios e, desta
forma,
ampliar a possibilidade de
matérias tratadas na
forma jâmbica.
Apesar da
vinculação
genérica e da
alusão
explícita a
um representativo
poeta do
gênero,
tais
elementos apontam
para a
distância
entre os
poemas de Hipônax e Calímaco.
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