O BESTIÁRIO NA APOLOGIA DE JERÔNIMO
CONTRA RUFINO

Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)

 

INTRODUÇÃO

A fase madura da vida de São Jerônimo é o momento do aparecimento de tantos trabalhos literários importantes, que o consagram como o autor cristão latino mais erudito que todos os outros, ou, se isto for um exagero, não seria injusto classificá-lo entre os maiores expoentes de sua época e entre os maiores nomes da literatura universal.

É durante a última década do século IV e os vinte primeiros anos do século V, ao cabo dos quais se encerra a vida de São Jerônimo, que é completada a extensa obra polêmica que abrange sete tratados de combate a práticas e concepções heréticas, bem como invectivas contra personalidades, cujos vícios, posições heréticas e outros aspectos condenáveis ao julgamento do santo deveriam ser apontados, corrigidos e combatidos.

Foram alvos deste combate: Joviniano, Vigilâncio, Helvídio, Rufino, João de Jerusalém, os pelagianos, os luciferianos. Entre esses alvos, sem dúvida, Rufino foi o alvo que suscitou maior atenção, devido à importância e ao vulto que tomou, na biografia de Jerônimo, a controvérsia em torno da obra de Orígenes, em cujo seio Jerônimo e seu ex-amigo Rufino assumem posições e partidos rivais. Neste artigo, fazemos um levantamento no texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino de exemplos da utilização do bestiário como elemento de construção do aspecto satírico da obra polêmica de São Jerônimo, de onde advém, muitas vezes, a visão que a tradição costuma ter de São Jerônimo: um espírito mordaz, um crítico áspero e severo dos desvios do clero de seu tempo, um homem letrado muito afeiçoado ao espírito satírico latino antigo.


 

A UTILIZAÇÃO DO BESTIÁRIO

Jerônimo abre o texto de sua Apologia com a invocação de seus inimigos hereges e heresiarcas sob a imagem de “cães com as grandes línguas que lambem o sangue derramado”[1], texto que encontramos no salmo 67. Utilizando um processo de apropriação deste salmo, nosso autor chama sobre si a sanha desses cães que ele denomina meus cães, lingua canum meorum.

Podemos detectar a utilização do bestiário desde épocas bem remotas na tradição clássica pagã e na tradição bíblica. O termo bestiário traz em sua origem o vocábulo bestia, que equivale ao nosso vocábulo “bicho”, animal, a princípio ser desprovido de racionalidade, em sua oposição à racionalidade, à inteligência, à virtude, à fineza, a honestidade, dentre outros aspectos que aqui ressaltamos, de acordo com os exemplos de que trataremos neste item. O bestiário é um motivo que colabora com a veia satírica de nosso autor, que muitos especialistas consideram como a cara do “bom Jerônimo”, aspecto em que mais sentimos a presença e o espírito do inimigo e combatedor das heresias e dos hereges e, nesse sentido, a utilização do bestiário seria um instrumento formal, um elemento a serviço de seu estilo polêmico, de sua luta, de seu combate verbal contra a heresia.

Para lembrar a ocorrência da utilização polêmica do bestiário na tradição clássica e cristã, passamos a reportar o que nos diz Wilhelm Süss.[2] Cícero em sua Oratio in L. Pisonem chamou a este de burro, ovelha, porco e abutre. Tertuliano teve a graça de ter-se livrado do perseguidor que o perseguia, atribuindo-lhe a bela imagem de lula, que embaciava a água com a negra tinta tóxica, por ocasião de sua luta com Marcião e ter introduzido a lula como ferramenta polêmica. Do mesmo modo, Tertuliano refutou uma orientação herética gnóstica que contestava o significado do martírio, vista esta heresia sob a imagem do escorpião; Tertuliano acabou dando à refutação o título de Scorpiace, isto é, o remédio contra a picada do escorpião. Que os hereges são feras selvagens mostra-nos o título da obra do bispo Epifânio, Panarion, isto é, as classes de remédios. Na tradição bíblica podemos encontrar um rico modelo na Arca de Noé, elemento no qual podemos reconhecer e justificar as escolhas e a inspiração de Jerônimo na zoologia por assim dizer sacra, oriunda da Bíblia. A fábula de Esopo e seu tradutor latino Fedro, o mito grego e a sua apropriação pelos provérbios ou expressões proverbiais, ao lado da tradição bíblica, são fontes do imaginário que podemos detectar na Apologia, aqui identificados em sua utilização polêmica.

Comecemos pela figura do asno. Expressões colhidas em Cícero (L. Pisonem 30, 73) apontam para a oposição deste animal à aquisição da leitura e à capacidade literária.[3] É no contexto de seu discurso sobre a memória e a persistência de elementos que fizeram parte da vivência quotidiana dos indivíduos, no primeiro livro de sua Apologia, que Jerônimo assinala que “até mesmo os asnos são capazes de reconhecer o caminho por onde passaram, em uma segunda passagem pelo mesmo caminho”.[4] Já no segundo livro de sua Apologia, a exclamação de Jerônimo “asino uidelicet lyra!” realiza o amálgama de uma expressão que Jerônimo teria retirado de uma epístola de Horácio (Ep. 2,1, 199:)[5], que pode ser encontrada também em Zenóbio (5, 42)[6], com o que Jerônimo havia elaborado na epístola 27.[7] Ao final, o efeito é de desqualificação do adversário com a interposição da imagem do asno para o adversário e a sobrevalorização de si mesmo, pelo volume literário que a utilização do provérbio rendeu a nosso autor.

Quanto à figura do corvo, do qual Jerônimo toma as características de longevidade, de visão penetrante, astúcia e tagarelice, a verificar pela citação que apresentamos em pé de página[8], é possível afirmar que ela também traz um elemento desqualificador que é o aspecto vazio das palavras. Concaua verba (palavras ocas) é um aspecto destruidor, face à fronte austera e nariz enrugado, no caso, do adversário contra o qual luta nosso autor.

A imagem do porco marca sua presença no primeiro livro da Apologia, ainda que não tenha uma utilização polêmica, no momento de uma alusão ao Testamentum Grunnii Corocottae Porcelli, que é uma farsa grosseira, na qual o porco Grúnio, deixando a seus parentes e amigos seus próprios membros como herança, desperta gargalhadas barulhentas nos tempos de Jerônimo[9]. No segundo livro da Apologia, à menção dos cicures enniani (os domesticados de Ênio)[10], podemos entender por eles a figura do porco, pois assim nos explica Sérvio Mário Honorato (Geórgicas 3, 255), contemporâneo de Jerônimo e autor de comentários das obras de Virgílio.[11] A apropriação da imagem do porco, nesse caso, serve a uma atitude irônica da parte de Jerônimo, que finge a ignorância dos herdeiros intelectuais de um povo sem uma epopéia fundadora, tal como a têm os gregos, com todos os atributos que podemos nela observar, e, por este motivo, Jerônimo assimila à imagem de porcos os herdeiros das tentativas de Ênio de construir uma epopéia nacional, sendo, deste modo, os latinos, aparentemente porcos, “os porcos de Ênio”. Paralelamente aos simplices, atributo dado aos homines, os cicures evocam normalmente a estupidez animal, por serem os animais domesticados, e pelo crédito, que damos ao comentarista contemporâneo de Jerônimo, de ser esse termo aplicado aos porcos. A imagem do porco é o que podemos também verificar em seu comentário a Jeremias, em que Jerônimo compara as palavras de Orígenes ao esterco da família de Grúnio, cujas palavras são objeto de desprezo pelo que aparentam ter de ressonância dos mistérios divinos e pelo que se distanciam do aspecto celestial que falsamente inspiram. Sendo esterco do porco Grúnio (isto é, referência ao grupo dos origenistas, no qual se inclui Rufino), os origenistas, amantes do sublime, remetem, igualmente, seus adversários à animalidade carnal, também com uma imagem, igualmente cara a Jerônimo, da “porca lavada que torna a revolver-se na lama” (II Pedro 2, 22). (Lardet 1993: 179, nota 308b).

Passemos agora à figura da raposa, fonte de astúcia e maligna virtude, fonte de enganos e dolos, decepções e fraudes. A raposa traz consigo sempre o perigo da sedução e do engano. Citada no terceiro livro da Apologia[12], a raposa serve para configurar a louvação hipócrita de Rufino e, a este propósito, a raposa serve muito bem, e com o requinte do diminutivo em uulpicularum insidias (armadilhas das raposinhas).

O escorpião, a exemplo da serpente, guarda dentro de si poderosa peçonha e é símbolo do poder daninho da heresia, bem como as cantáridas, insetos venenosos, citados por Jerônimo no terceiro livro de sua Apologia. Como a serpente, o escorpião aparece numerosas vezes no texto bíblico, como cita W. Süss (1938: 219-220) [13], bem como no Evangelho de Lucas, onde encontramos o texto “dei a vós o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo poder do inimigo”.

A tartaruga, cujo andar pesado deve sua lentidão, na visão de São Jerônimo, ao peso dos pecados dos hereges[14], é objeto ao qual alude nosso autor, em flagrante apropriação satírica da imagem deste animal de movimentos vagarosos para desqualificar a imagem de seu adversário, carregando a imagem de seu ex-amigo Rufino também com o peso do pecado da heresia, e simbolizando esse peso com a imagem da tartaruga. Rufino é, a exemplo da tartaruga, alguém que “murmura”, e move-se apenas como uma tartaruga, em vez de avançar a passos mais rápidos. Pelo contexto próximo da citação que apresentamos, podemos inferir que o objeto do motejo satírico de nosso autor é a capacidade literária de Rufino, que atua a passos de tartaruga e que estaria aquém do que seria desejável em sua época e contexto cultural.[15]

Por fim, vejamos a imagem da serpente que representa para Jerônimo a figura por excelência do herético, por causa do atributo de veneno que se atribuía a toda heresia e que a imagem da serpente é excelente para simbolizar. O animal de que falamos aqui aparece sob denominação de vários outros vocábulos tais como anguis, aspis, coluber, excetra, serpens, uipera. A citação que transcrevemos em pé de página, que não menciona o animal de forma explícita, presentifica-o pelo elemento da sedução que podemos detectar no fim da citação. Podemos verificar aí a imagem da surdez diante do ser que seduz, verossimilmente a imagem de uma serpente, que nos traz à memória, por um lado, a tradição homérica, com a surdez virtuosa de Ulisses ao canto das sereias, e também a da tradição bíblica, com a reminiscência do tentador que se revestiu da forma de serpente.[16]

 

CONCLUSÃO

Nos exemplos apresentados, as figuras de animais têm a função de simbolizar os piores aspectos da heresia, tornar a todos atentos aos riscos que poderiam os homens correr de perderem suas características de seres humanos, de cristãos seguidores de uma crença marcada pela retidão das concepções dogmáticas e da doutrina da Igreja, para se reduzirem ao estágio de feras e seres irracionais. Assim, pelo seu discurso carregado dessas imagens de animais, São Jerônimo torna público seu apelo à consciência moral de seus contemporâneos para que tenham toda precaução com a heresia que faz ronda às consciências.

 

BIBLIOGRAFIA

ANTIN, P. Essai sur Saint Jérôme. Paris: Letouzey & Ané, 1951.

JEANJEAN, B. Saint Jérôme et l’hérésie. Paris: Institut d’Études Augustiniennes, 1999.

LARDET, P. L’Apologie de Jérôme contre Rufin. Um commentaire. Leiden, New York, Köln: Brill, 1993.

JERÔNIMO. Apologie contre Rufin. Introduction, texte critique, traduction et index par Pierre Lardet. Paris: Cerf, 1983.

––––––. Epistolario. Edición preparada por Juan Bautista Valero. Madrid: BAC, 1995. 2 vol.

OPELT, I. Hieronymus Streitschriften. Heidelberg: Carl Winter – Universitätsverlag, 1973.

SÜSS, W. Der heilige Hieronymus und die Formen seiner Polemik. Giessener Beiträge zur Deutschen Philologie 60, 1938, p. 212-238.

 

 


 


[1] O salmo 67, versículo 24, onde encontramos o texto citado na abertura da obra,  remete-nos à leitura da história do assassinato do rei Acab em I Reis 22, 38 que diz textualmente: “... ‘O rei está morto!’ Foi transportado para Samaria e lá sepultado. Lavaram o carro na piscina de Samaria, os cães lamberam o sangue e as prostitutas ali se banharam, conforme a palavra que Yahweh pronunciara...”

[2] Tópico intitulado Zoologia polemica, no artigo Der Heilige Hieronymus und die Formen seiner Polemik, editado em 1938 no periódico Giessener Beiträge zur Deutschen Philologie 60, p. 212-238.

[3] “...Quid nunc te, asine, litteras doceam? Non opus est uerbis sed fustibus...”

[4] JERÔNIMO (1983: 84): “...Etiam asini et bruta animalia, quamuis in longo itinere, nouerunt secundo diuerticula...”

 “...Scriptores autem narrare putaret asello Fabellam surdo...”

[6] “...onw tis  elege muqon, o de  ta wta ekinei...” que quer dizer: Alguém contava uma história a um burro e ele mexia as orelhas. (Zenóbio viveu no II século de nossa era, foi contemporâneo do imperador Adriano, e escreveu uma coletânea de provérbios).

[7] JERÔNIMO (1995: 273): “...asino quippe lyra superflue canit...”

[8] JERÔNIMO (1983: 90-92): “...Quid austeritate frontis et contractis rugatisque naribus concaua uerba trutinatur, et sanctitatem apud uulgus ignobile simulato rigore mentitur?...”

[9] JERÔNIMO (1983: 50): “...Quasi non cirratorum turba Milesiarum in scholis figmenta decantent, et Testamentum Suis Bessorum cachinno membra concutiat...”

[10] JERÔNIMO (1983: 128-130): “...sed nos, simplices homines et cicures enniani, nec illius sapientiam nec tuam, qui interpretatus es, intellegere possimus...”

[11] “...suem domesticum quem cicurem uocant...”

[12] JERÔNIMO (1983: 234): “...Vis scire totas argutiarum tuarum strophas et uulpicularum insidias, quae habitant in parietinis, de quibus et Hiezechiel loquitur: Quasi uulpes in deserto prophetae tui, Israel (Ez. 13, 4; 33, 27)...”

[13] “...Durch unermüdliche Wiederholung hat Hieronymus eigentlich dem Skorpion die gewalt seines Stachels genommen. Dieser selbst mag letzten Endes aus biblischen Stellen stammen, wie neben Ez. 2, 6 und Apoc. 9, 3 vor allen aus Luk. 10, 19 dedi vobis potestatem calcandi super serpentes et scorpiones...”

[14] ANTIN (1955: 212): “...Testudo tardigrada et onerata, immo oppressa pondere suo, non tam ambulat quam mouetur, haereticorum peccata significans...” (citação de In Osee 12, 11).

[15] JERÔNIMO (1983: 48): “...Tu qui in latinis mussitas et testudineo gradu moueris, potius quam incedis, debes scribere ut, apud homines graeci sermonis ignaros, aliena scire uidearis, uel si latina temptaueris, ante audire grammaticum, ferulae manum subtrahere et, inter paruulos aqhnogerwn artem loquendi discere...”

[16] JERÔNIMO (1983: 240): “...Illud autem quod tergiuersaris et dicis te ea transtulisse de graeco quae ego prius latino sermone transtulerim, non satis intellego quid uelis dicere, nisi forte adhuc commentarios ad Ephesios criminaris et, quasi nihil tibi super hoc responsum sit, obduras frontis impudentiam nec auribus obduratis uoces recipis incantantis...”

 

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