O
LATIM DE TOMÁS DE AQUINO
Nestor Dockhorn
(UNIG e UGB)
Na
presente
exposição,
são
desenvolvidos os
seguintes
itens:
vida e
época de Tomás de Aquino; a
Universidade de Paris; o
latim da
época medieval; as
obras de Tomás de Aquino;
aspectos
fonéticos e morfológicos do
latim de Tomás de Aquino; a
sintaxe e as
fórmulas
feitas; a
estrutura da Summa Theologiae; o
léxico
empregado e
suas
origens.
Vida e
época
de Tomás de Aquino
Tomás de Aquino viveu de 1225 a 1274 d. C. Nasceu
em Roccasecca, situada
perto da
cidade de Aquino.Essa
cidade fica
entre Roma e
Monte
Cassino. Tomás estudou
em
Monte
Cassino, e,
depois, na recém fundada
Universidade de Nápoles. Entrou na
ordem dos
frades dominicanos,
que o mandaram
estudar
em
Colônia,
onde teve
como
professor
Santo Alberto
Magno.
Em 1256, foi admitido
como
Mestre na
Universidade de Paris. Durante
algum
tempo, foi
conselheiro
teológico do
papa. Foi chamado
para
ser
teólogo do
Concílio de Lyon,
mas morreu na
viagem.
Foi declarado
santo
por João XXII,
em 1323.
Pio V o declarou Doutor da
Igreja. Foi denominado Doctor Angelicus.
Mas a
aceitação de
sua
doutrina
não foi
tranqüila na
época:
certas
teses
suas foram condenadas
pelo
arcebispo de Paris (logo
após
sua
morte) e
também
por
dois arcebispos de Cantuária. Essas
polêmicas estavam relacionadas
com a
doutrina de Aristóteles,
que se tornou
conhecida no
Ocidente, naquela
época, pelas
traduções
árabes de Avicena e Averróis.
A
Universidade
de Paris
Não podemos
indicar a
data
exata do nascimento da
Universidade de Paris.
Inicialmente, ocorreu
um
conflito a
Escola de Notre-Dame e outras
instituições de
ensino. É
certo,
porém,
que, a
partir de 1200, o
grupo de professores e
alunos chamado universitas,
que pleiteava o
direito de ensinar, recebeu
sucessivos
direitos concedidos
pelo
rei e
pelo
papa. A universidade ficou submetida ao
papa e
não ao
arcebispo de Paris.
Também nessa
época, os
frades dominicanos e
franciscanos começaram a
ensinar na universidade.
Por essa
época, a
instituição tornou-se o
centro de
estudos
mais importante da
Cristandade,
especialmente
em
relação aos
estudos
teológicos. Teve
professores
como
São Boaventura, Alberto
Magno e
Santo Tomás de Aquino. Vinham
estudantes de todas as
partes.
Não havia
problemas
para o
intercâmbio de
professores,
porque a
língua
comum
era o
latim.
A
Universidade de Paris
tinha
quatro
faculdades:
artes,
teologia,
leis e
medicina.
Cada
faculdade
tinha
um
decano, sendo
que o
decano da faculdade de
artes
era o
reitor. Os
estudantes eram alojados
em
colégios; o colégio
criado
por Robert de Sorbon, denominado Sorbonne, se
tornou o
mais
importante e deu o
nome à
própria
universidade.
Com o
decorrer do
tempo, a
Universidade de Paris sofreu inúmeras
transformações;
entre
elas, devemos
citar
sua
independência do
poder papal.
O
latim
da
época
medieval
A
língua
latina,
depois
que o
Império
Romano
Ocidental se desmantelou politicamente, continuou
ainda a
ser
falado e
escrito. A
variante
popular do
latim –
com inúmeras nuanças –
pouco a
pouco se transforma
em várias
formas de
romance, dando
origem a
vários
idiomas e
dialetos
românicos. A
variante
culta do
latim continua a
ser
empregada nas
escolas.
Mas as
escolas dos
moldes
antigos foram
muito prejudicadas
pela influência dos
povos
invasores. As
necessidades da
Igreja fizeram
com
que muitas
escolas de
tipo
eclesiástico fossem criadas
em
mosteiros e
bispados.
O
desejo de
manter os
laços da
tradição fez
surgir
muitos
focos
em
que a
língua
latina
era cultivada e
nos
quais
vários
escritores produziam
obras
em
latim. Convém
mencionar as
ilhas britânicas,
com Alcuíno e o
Venerável Beda. Alcuíno teve
importância na renovação dos
estudos provocada
por Carlos
Magno.
A
época
medieval utilizou a
rima
nos
textos poéticos da
liturgia e produziu
textos
lindos,
como Vexilla Regis, Pange
língua, Dies irae, Victimae paschali.
As
obras
de Tomás de Aquino
Tomás escreveu muitas
obras,
desde
pequenas
produções
poéticas litúrgicas
até
obras de
grande
fôlego. Os
hinos eucarísticos
Lauda Sion e Pange
língua (no
qual se insere o
conhecido Tantum ergo)
são
dignos de
estudo,
por
seu
conteúdo e
por
sua
métrica.
Escreveu
obras filosóficas
tais como De
ente et essentia, De aeternitate mundi,
De veritate, De malo e outras. Trabalhou
com
vários
textos de Aristóteles.
Suas
obras
mais
importantes foram a Summa contra gentiles (que
é uma
exposição do
cristianismo dirigida a
não
crentes) e a Summa theologiae,
também
chamada Summa theologica. Esta
última se apresenta humildemente
como uma
obra
didática destinada a
ajudar aos
estudantes
iniciais de
teologia. Na
verdade, é uma das
obras
mais profundas
que foram escritas no
campo da
teologia
católica.
Sua
lógica,
sua
divisão
em
partes,
seu
raciocínio
são
admiráveis.
Aspectos
fonológicos
e morfológicos
do
latim
de Tomás de Aquino
Para fazermos
observações
pertinentes
sobre
aspectos
fonológicos e morfológicos dos
textos de Tomás de Aquino, devemos necessariamente
partir da
grafia desses
textos. O
texto
que tenho
em
mãos é uma
edição da Summa Theologiae, publicada
em Turim, na Itália,
pela
Casa Marietti, no
ano de 1948.
Ela pretende
ser uma
edição
crítica.
Não sei
até
que
ponto, as
edições
críticas pretendem
ser exatas. No
que se refere à
grafia, fico
me perguntando
por
que o
editor da
Casa Marietti utiliza as
letras ramistas U, v,
por
um
lado, e
não
usa as
letras ramistas j e J,
por
outro.
Aliás, observei o
mesmo
problema na
edição
crítica do NOVUM TESTAMENTUM GRAECE ET LATINE,
de Eberhard Nestlé,
em
que, na
versão
latina, aparecem as
letras ramistas U e v,
mas
não aparecem J e j (Stuttgart, 1930). O
mesmo
problema ocorre na
edição de NOVUM TESTAMENTUM GRAECE ET LATINE,
de Augustinus Merk (Roma, 1948). O
mesmo ocorre na
edição de BIBLIA
SACRA
VULGATA de Robertus
Weber (Deutsche Bibelgesellschaft, 1994).
O
problema
fundamental,
porém,
que temos é o
seguinte:
Como Tomás de Aquino leria
seus
textos
latinos, nessa
época do
século XIII?
Ofereço
como
resposta algumas
hipóteses
que vêm
abaixo.
Hipótese 1 – O
eruditos da
época liam os
textos
latinos da
mesma
forma
que liam os
textos da
língua
românica da
sua
região.
Essa
hipótese tem
fundamento no
fato de
que
até
modernamente
pessoas eruditas pronunciam
formas latinas
como se fossem
formas da
sua
língua. Dessa
forma, uma
simples
palavra
como euge é
lida
por
um italiano
como [;Ew£e],
por
um
inglês
como [;ju£I],
por
um
alemão
como [;Ojge],
por
um
brasileiro
como [;ew“e],
por
um
espanhol
como [;ewxe].
Os esforços
para
introduzir a
pronúncia restaurada do latim são
muito
meritórios
para
minorar essa
confusão.
Hipótese 2 – Tomás de Aquino,
por
ser
professor na
Universidade de Paris, pronunciava o
latim de
acordo
com a
pronúncia da
região de Paris. Essa
hipótese tem
bastante
consistência,
devido à
importância da universidade, e ao
tempo
em
que Tomás trabalhou
ali.
Ela pode
ser
posta
em dúvida
pelo
fato de
que Tomás fez
seus
primeiros
estudos
em
Monte
Cassino e estudou
também
em
Colônia.
Partindo dessa
hipótese 2,
resta a
perguntar
que
processos fonético-fonológicos provenientes da
variante
popular do
latim e
que
processos
próprios da
língua
românica da
região estariam incorporados
para o
leitor de
textos
latinos. Refletindo
sobre essa
questão, podemos
dizer
que
nem
todos os
processos
que transformaram o
latim
popular
em
francês ocorreram na
leitura de
textos
latinos; podemos
formular uma
hipótese 3.
Hipótese 3 –
Em
relação às
vogais, podemos
desdobrar a
presente
hipótese nas
seguintes sub-hipóteses:
a)
A
vogal [u] sofria arredondamento e
era pronunciada
como [y].murus = [;myrys]
b)
As
vogais
tônicas
mediais
anteriores e
posteriores acompanhavam a
altura (+mais
alta/+baixa) do
francês da
época, o
que corresponde
grosso
modo ao
francês
atual.
Assim: debeat = [;dEbeat],
possit=[;pOsit], se = [;se],
cognoscit = [ko+;nOskIt]
c)
As
vogais
seguidas de
consoante
nasal (m, n, g) possivelmente
nasalizavam-se,
com apagamento da
consoante.
Assim: ante = [;a+te],
dente = [;de+te],
ponte = [;po+te]
d)
É
possível
que
seqüências
como unt, um tenham sido proferidas como
[o+].
Assim, os
vocábulos sunt, utrum.
e)
É
possível
que in tenha sido pronunciado [E+].
Assim, inter.
f)
Os
ditongos ae, oe, au (já
monotongados na
variante
popular do
latim) eram proferidos
como [E],
[e], [o].
A acentuação
geral da
sentença
já seguia a
tendência
que Bruno Fregni Bassetto aponta
quando diz
que o
francês se tornou uma
língua
oxítona (Filologia
Românica, 226).
Hipótese 4 –
Em
relação às
consoantes, podemos
apontar as seguintes sub-hipóteses,
mais
ou
menos
prováveis.
a)
As
consoantes c e g,
diante das vogais e e i eram
proferidas
como alveolares.
b)
A alveolar desvozeada s
era proferida
como vozeada,
quando intervocálica.
c)
A
letra h
não
era proferida
com
aspiração.
d)
A
letra v, proveniente da
semivogal [w] do
latim
culto,
era proferida
como labiodental vozeada.
Assim, vacca.
e)
A
letra i
seguida de
vogal, proveniente da
semivogal [j] do
latim
culto,
era proferida
como
palatal vozeada.
Assim, iustus.
f)
As
letras geminadas eram proferidas
como
simples.
Assim, vacca.
g)
O
grupo ti, seguido de
vogal,
era proferido
como [ts] –
como já vinha sendo pronunciado na
variante
popular do
latim. Assim, iustitia.
Em
relação aos
problemas morfológicos, caminhamos num terreno mais
seguro. Observando os
textos
que temos de Tomás de Aquino, podemos
afirmar o
seguinte.
A
morfologia do
autor obedece
rigorosamente aos
padrões
clássicos. As
declinações
são
seguidas
exatamente; a
conjugação do
verbo segue as
normas dos
gramáticos, aparecendo
tanto na
voz
ativa,como na
voz
passiva e
até
nos
depoentes.
Nada se pode
objetar
quanto à
exatidão
gramatical de
formas de
infinitivo,
gerúndio,
particípios. A
regência das
preposições é perfeita, os
pronomes têm a
morfologia
dentro dos
padrões
clássicos.
Aspectos sintáticos e
fórmulas
feitas
A
sintaxe dos
textos de Tomás de Aquino,
em
suas
linhas
gerais, obedece aos
padrões dos
gramáticos. Faremos,
porém, algumas
observações
sobre
casos
especiais.
a) Convém,
porém,
observar
que as
regras do
emprego de
acusativo
com
infinitivo
nem
sempre
são observadas.
Por
um
lado, vemos
exemplos
tais
como:
(1) “Spiritualem autem naturam affici non contingit ad bona
quae sunt
própria corpori...” mas vemos
muitos
exemplos
em
que se
usa o
conectivo quod.
Assim:
(2) “...necesse est quod activa potentia Dei sit
infinita.”
“...sequitur quod...”
(3) “Ostensum est autem supra quod
Deus...non potest...”.
O
conectivo quod é usado sistematicamente nas
fórmulas
feitas
que aparecem no
início de
cada articulus.
Cada articulus inicia
sempre
pela
fórmula
seguinte:
(4)“Ad primum (ou secundem,
tertium, etc.) sic proceditur. Videtur quod...”
O
mesmo na fórmula
(5) “Respondeo dicendum quod...”
b) O
ablativo
absoluto aparece.
Assim:
(6) “...abstractis
per intellectum proprietatibus
seu relationibus a personis...”
Estrutura da Summa Theologiae.
A Summa Theologiae está dividida nas
seguintes
partes:
a)
Prima
pars
b)
Secunda
pars – a
qual está subdividida
em
Prima secundae e Secunda secundae
c)
Tertia
pars
Cada
pars apresenta
um
grande
número de quaestiones.
Cada quaestio está dividida
em articuli.
Cada articulus tem uma
estrutura
que se repete da
seguinte
forma:
a)
Inicialmente é
proposta uma
pergunta.
b)
Essa
pergunta é negada
ou afirmada, numa
proposição
inicial.
c)
Essa
proposição é apoiada
com uma
série de
argumentos.
d)
O
autor apresenta
um
argumento
contra a
proposição.
e)
O
autor apresenta
seus
argumentos
contra a
proposição.
f)
O
autor refuta,
um a
um,
todos os
argumentos apresentados
inicialmente.
Podemos
dar
como
exemplo o Articulus 3, da Quaestio I,
da PRIMA PARS.
a)
Pergunta
inicial: “Utrum
sacra doctrina sit
una scientia.”
Essa
pergunta
inicial
sempre
começa
com o interrogativo utrum.
b)
Frase
com
proposição
inicial
que é
proposta
como
certa e
que o
autor
quer
rejeitar. Essa
proposição
inicial pode
ser
positiva
ou
negativa.
Exemplo: “Ad tertium sic proceditur. Videtur
quod
sacra doctrina non sit
una scientia.”
c)
Argumentos a
favor da
proposição
inicial. (Neste
caso
concreto, o
autor apresenta
dois
argumentos).
d)
Argumento
geral
contra a
proposição
inicial.
Esse
argumento
sempre
começa
com a
expressão “Sed
contra est quod...”
e)
Argumentação a
favor da
proposição
contrária à
inicial.
Esse
argumento
sempre
começa
com a
expressão “Respondeo dicendum quod...” (ou
seguido de
acusativo
com
infinitivo).
f)
Refutação,
um a
um, dos
argumentos a
favor da
proposição
inicial.
Essa
estrutura de
composição, rigidamente esquemática, é maravilhosa
por
sua
lógica.
O
léxico
de Tomás de Aquino
O
léxico de Tomás,
especialmente, na Summa Theologiae, utiliza
grande
número de
termos filosóficos e
teológicos. Sabemos
que o
latim
não
era
tão adequado
para a
criação de
termos filosóficos,
como o
grego.
Um
termo
como ens,
cuja
criação é atribuída a Júlio César, parece
estranho aos
ouvidos de
quem
lê
Cícero. É
termo
empregado
por Tomás. Na Summa, numa
leitura
rápida, observamos
termos
como obiectum, subiectum, unitas, ratio
formalis, potentia, existens, impressio, practica, speculativa, materia,
abstractus, concretus, relatio, identitas, sensus, essentia, essentialis,
accidens, existentia, realis,realiter, contradictio, substantia, substantialis,
incorporeus, localis, etc. O
nosso
estudo
não se propôs
estudar as
origens e
fazer
estudo detalhado de
cada
um desses
termos,
que, à
primeira
vista, podemos
supor
que
não foram
empregados
pelos
grandes
autores
clássicos.
Outros
termos
são de
origem cristã
ou
teológica e usados
pelos Padres da
Igreja.
Assim, creatura, creator, aeternitas,
coaeternus, beatus, beatitudo, persona, personalis, sanctificare, processio,
Trinitas, anima (num
sentido
cristão), mysterium, angelus, daemon, salus,
salvare, gubernatio, praedestinatio, etc.
Conclusão
Os
pontos
que foram
tratados dão-nos uma
idéia
muito
pálida de
um
tema
que seria
digno de uma
tese.
Entretanto podem ajudar-nos a
despertar o
interesse
para o
estudo dum
tipo de
latim
bem
diferente dos
autores clássicos,
por
um
lado,
mas
que,
por
outro
lado,
nos
mostra as possibilidades de
criação
lingüística.
Com
efeito, uma
língua
não é
um
esquema
rígido,
imutável,
mas representa possibilidades
vivas de
comunicação
que se ampliam e se adaptam às
necessidades.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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theologiae:
Prima
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BASSETTO, Bruno Fregni.
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BERTHAUT, H., GEORGIN, CH..
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BOURCIEZ, Édouard. Éléments de
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São Paulo: E.P.U., 1973.
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Encyclopaedia britannica. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1963. v. 13.
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