Os filósofos materialistas
Amós Coêlho da Silva (UERJ eUGF)
Para Junito Brandão, volume I, Mitologia Grega, segundo capítulo, mito é revelação, imago mundi, cifrada num símbolo, o qual na sua simplicidade didática, ele remete ao elemento grego, passando à matriz verbal, BRANDÃO, 1994: 38: ‘symballein, lançar com,’ arremessar ao mesmo tempo, “com-jogar”. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento... Agora, uma interferência deste leitor aqui presente.
Aquele elemento poético, denominado por Aristóteles anagnórisis, que se traduz em português por reconhecimento – foi explorado, por exemplo, em A Moreninha, Joaquim Manuel de Macedo, que todos conhecemos. Ora, de fato, a personagem Augusto, caracterizada como volúvel, resistiu aos encantos da brejeira Carolina, porque estava sendo leal a um juramento de eterna fidelidade, quando Augusto contava treze anos perante ela com oito num jardim de uma gruta.
Qual a importância da abordagem desses elementos emblemáticos da anagnórisis e peripécia no romance de Macedo? Pois bem, este re-encontro sob a aparência de casualidade, deflagra uma revelação, uma re-descoberta do segredo e juramento, contidos no camafeu e na esmeralda, foi o que re-uniu os dois amantes, à maneira do conceito de rito de Junito Brandão que indica a este propósito o pensamento do pesquisador Mircea Eliade, para explicar uma cena dramática muito semelhante àquela que eu, leitor de ambos, cito a respeito de Joaquim Manuel de Macedo: Um objeto ou um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetição ou participação; tudo que não possui um modelo exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade. (BRANDÃO, 1994: 40) Donde, rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em ‘verbo’, sem o que ela é apenas ‘lenda’, “legenda”, o que deve ser lido e não mais proferido. (BRANDÃO, idem)
O homem moderno é vítima dos estilhaços que o contém cruelmente dentro de sua individualidade. Por exemplo, nas sociedades arcaicas, como na antiga Grécia ou até na pragmática Roma dos Césares, numa festa religiosa, como em honra de uma divindade, a praça, a ágora dos gregos e o fórum dos romanos, é um ponto de encontro, mas na nossa vida moderna, nos dias de hoje, sofremos agudamente de agorafobia, medo de lugares públicos. Como o homem moderno poderá entender o teatro, como um templo religioso? Nós não dispomos nem mesmo do sentido de ‘pólis’, a não ser aquele da gramática de português: cidade, mas cidade com prédios, dotados de interfones, ou seja, cidade que protesta: não devassem minha privacidade! Daí, o fato de o termo hospitalidade se tornar volátil para nós.
Ainda sobre a modernidade, dia 2 de novembro, no século XXI, tem múltiplos significados, tudo, porém só depende do que precisarmos realizar. Foi-se o tempo de devotamento ao sagrado, como pré-requisito deste dia. Por isso, diz-nos Junito quando explica a transmissão da falta (contra os deuses), na solidariedade familiar e na hereditariedade do castigo...(...) Talvez não fosse inoportuno lembrar que há uma grande diferença entre o homem ‘de lá’e o homem ‘de cá’: ‘o viver coletivo e o nosso viver individual’. (BRANDÃO, 1994: 78)
Retomemos, então, o Capítulo I, de sua obra. Aborda-se aí, o surgimento da filosofia, no século VI, na Ásia Menor, questionando a expressão do verdadeiro no mito, tendo em vista as suas principais fontes: Homero e Hesíodo. Os poemas deles não só consagraram relatos e variantes míticas como também lhes deram cunho de ficção, histórias com princípio, meio e fim. O aedo Demódoco, no canto VIII, narra como o deus Ares e Afrodite foram astuciosamente capturados numa posição amorosa íntima. Com efeito, logo que o deus Hélio revelou ao marido legítimo de Afrodite, Hefesto, que estava sendo enganado por um terceiro, o esposo traído providenciou uma armadilha: alegou que faria uma viagem longa e que Afrodite não o esperasse voltar tão cedo. Os amantes, dispondo de todo tempo do mundo, se aconchegaram no leito, mas foram capturados e, como não puderam se desvencilhar de uma rede invisível, arquitetada pela emboscada do marido enganado, o deus Hefesto, por vingança, convocou todo o Olimpo para assistir ao relacionamento adúltero. Depois de algumas observações picantes, os deuses romperam em gargalhada. Sob a promessa de Posídon de resgatá-lo pelo dano moral, Hefesto desatou os nós. Conta-se então – prossegue Homero - que
A risonha Afrodite se recolhia a Pafos, em Chipre, onde possui um templo e um altar fumante de incenso; ali as Graças a banharam, ungiram-na daquele óleo imortal que reluz na pele dos deuses eternos e envolveram-na em roupas encantadoras, uma maravilha. (BRUNA (trad.), [s/d]: 95).
Xenófanes de Cólofon (547-480 a.C.) se recusou a aceitar injustiças, vinganças, adultérios e ciúmes como atributos divinos. Totalmente incompatíveis a um deus são tais apanágios. E mais, muito menos, que os deuses fossem imagem e semelhança dos homens. Começa por dizer: No dizer de Homero e de Hesíodo os deuses fazem tudo quanto os homens considerariam vergonhoso: adultério, roubo, trapaças mútuas (Frgs B11 e B12- tradução de Junito Brandão, bem como o texto que se segue) e termina veementemente: Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com suas mãos, pintar e produzir as obras que os homens realizam, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, os bois semelhantes aos bois e a eles atribuiriam os corpos que eles próprios têm. (Frg. B15)
De Demócrito (520-440 a.C.) a Lucrécio (98 –55 a.C.), os argumentos se exacerbaram contra o princípio de os deuses se preocuparem com os mortais. Os átomos, partículas indivisíveis, e não os deuses, criaram o mundo. Ou melhor, os mundos, pois os próprios deuses foram criados por átomos deveras sutilíssimos. O racionalismo se torna mais materialista com a concepção deste sistema mecanicista. Conforme FRANÇA, Leonel, S.J. Noções de História da Filosofia: Por necessidade da natureza, os átomos movem-se no vácuo infinito com movimento retilíneo de cima para baixo e com desigual velocidade. Daí entrechoques atômicos e formação de imensos vórtices ou turbilhões de que se originam os mundos, os seres animados e inanimados, bem como a alma e os deuses. (apud BRANDÃO, 1994: 28) O deuses não devotam nenhuma preocupação para com os mortais, criados a partir de átomos apenas sutilíssimos.
Da ética epicurista, que é como se denomina o atomismo de Demócrito retomado pelo filósofo Epicuro (341 – 270 a.C.), temos um demonstrativo da fragilidade e impotência dos deuses:
Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que, igualmente, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que Deus não os impede?
Lucrécio chega a denunciar o sacrifício de Ifigênia como um crime hediondo, versos 85-6, livro I: Aulide quo pacto Triviai virginis aram / Iphianassai turparunt sanguine foede / Ductores Danaum delecti, prima virorum, Em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, mancharam criminosamente com o sangue de Ifigênia o altar virginal de Diana. Homero o narra a propósito de uma calmaria que impede a partida das naves helênicas para o cerco de Tróia. Consultado o oráculo Calcas, a cólera de Ártemis, causa da calmaria, só aplacaria perante o sacrifício de Ifigênia.
Desde Píndaro (521-441 a.C.) a Eurípides (480 – 406 a.C.), houve cortes subjetivos da concepção mítica, insinuada sobre o divino por preleção ética em uns e por observações contraditórias em outros.
Um grande inimigo do mito foi a dicotomização. Pelo latim dichotomia, divisão de um órgão em duas partes iguais; no nosso estudo, é o fato de o mito ser tomado pelos poetas para justificar a moral ou a ética do cidadão grego, além do seu significado verdadeiro, como o fizeram Píndaro (521-441 a. C.) nas suas poesias líricas:
Pítica III
(trad. Prof. Junito Brandão)
Somente a divindade outorga sucessos:
Ora eleva este ao céu, ora sua mão rebaixa aquele.
Saibas encontrar o teu caminho, observando a moderação.
Olímpica XIII: (trad. Prof. Junito Brandão)
Não se deve pedir aos deuses senão o que convém
a corações mortais. É mister ter olhar fixo
nos próprios pés, para nunca esquecer sua condição.
Não aspires, minha alma, a uma vida imortal;
pelo contrário: exaure o campo do possível.
Todas as coisas têm uma medida.
VIII Ode Pítica,
(trad. do Prof. Junito Brandão)
Seres efêmeros! Que é cada um de nós?
O que não é cada um de nós?
O homem é o sonho de uma sombra!
Mas, quando os deuses pousam
Sobre ele um raio de sua luz,
Então vivo fulgor o envolve
E adoça-lhe a existência!
Na tragédia, Ésquilo (525-456 a. C.), herdeiro do pensamento de Píndaro, também retirou do mito lições moralizantes. Na comédia As Rãs, de Aristófanes, em que Ésquilo e Eurípides se tornam personagens desta peça, e o autor desta imagina o que seria dito pelo vate da Oréstia: O dever do poeta, diz Ésquilo a respeito do mito de Fedra, é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer somente coisas honestas. (BRANDÃO, 1980: 48) E como é este mito? Fedra, a filha de Minos e Pasífae, casou-se com Teseu, e o amava, já que deu-lhe dois filhos, mas, apaixonada pelo seu enteado Hipólito, filho de Teseu e da amazona Hipólita, não suportou a recusa do enteado, que venerava Ártemis e detestava Afrodite. Sob a influência de Afrodite, Fedra não se conteve e simulou um estupro de Hipólito, rasgando a roupa e denunciando-o ao pai dele, Teseu, que pediu a Posídon que o punisse. Hipólito significa aquele que solta ou deixa ir os cavalos, pois Posídon enviou um monstro na onda do mar, quando Hipólito passava com sua carruagem à beira-mar. Espantados os seus cavalos, Hipólito caiu e se esfacelou contra os rochedos, como a etimologia de seu nome.
Eurípides (480-406 a. C.), que trilha caminho oposto ao de Ésquilo e Sófocles (496-406 a.C.), também pretendeu se dirigir aos atenienses com sua mensagem, inspirada, na expressão de Albin Lesky no poder do Lógos (apud BRANDÃO, idem); desviou o tema da tragédia, antes centrado no destino, para o coração humano. Doravante, quem faz o futuro do homem é o seu desejo, e não mais Moira. Como o “Lógos” do momento euripidiano também participa de pensamento como o de Protágoras (485 – 411 a.C.), que afirma: O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são. (apud LESKI, 1971: 161 - Protágoras, Contradições). E mais adiante: Acerca das divindades, não posso saber se existem ou se não existem, ou como são figurados, pois muitos obstáculos impedem verificá-lo: sua invisibilidade e a vida tão curta do homem. Nas tragédias euripidianas, só se mantêm os significantes míticos dos trágicos antecessores, o significado é bem como pensava Xenófanes. Por vezes, rompe até com o significante, forjando deuses, que não pertencem ao panteão helênico, como invocações ao deus Éter, Persuasão...
Depois de mostrar-nos estes descaminhos do mito, Junito Brandão nos dá a chave de como a mitologia se “salva” (BRANDÃO, 1994: 31): Assim é que o estóico Crisipo reduziu a mitologia a postulados físicos ou éticos. Homero e Hesíodo estão “salvos”; “salva” está a poesia e a arte, que poderão continuar a beber na fonte inesgotável do mito, embora ‘alegorizado’.
Faz menção ao filósofo alexandrino Evêmero (fins do S.IV e início do III a.C., que em sua obra História Sagrada, traduzida para o latim por Quinto Ênio (239-169 a.C.) – daí, a recomendação nossa de apresentarmos este poeta bilíngüe, que falava grego e latim, para os nossos alunos; o estudo sobre Ênio é de capital importância, dentre as múltiplas contribuições para o mundo romano, estão a mencionada acima, a introdução do verso hexâmetro datílico, pedra angular da épica vergiliana... Enfim, os romanos o chamavam “Pater Enius”. Explica-nos Junito Brandão que a obra de Evêmero é uma espécie de romance sob forma de viagem filosófica, no qual afirma Evêmero haver descoberto a ‘origem dos deuses’. Estes eram antigos reis e heróis divinizados e seus mitos não passavam de reminiscências, por vezes confusas, de suas façanhas na terra. (BRANDÃO, 1994: 31)
E prossegue: Embora teoricamente antípoda do alegorismo, o Evemerismo muito contribuiu também para “salvar” a mitologia, in jetando-lhe uma dose de caráter “histórico” e humano. Afinal, os deuses não passam de tranposições, através de apoteoses e de reminiscências, um tanto desordenadas, das gestas de reis e de heróis primitivos, personagens auteticamente históricas... Mas, ainda assim, Junito Brandão comenta haver ainda uma certa desmitização...
No final do Cap. I, indaga se morreu a mitologia. E responde: ainda não. Apesar da depuração sofrida pelos filósofos materialistas, das abstrações filosóficas euripidianas, do alegorismo e sacralização...
Depois de discutir alguns pontos importantíssimos, cita, na pág. 34, Junito Brandão o pensamento de Mircea Eliade, com o qual concorda inteiramente:
Cristianizados, deuses e locais de culto da Europa inteira, receberam eles não somente nomes comuns, mas também reencontraram, de certa forma, seus próprios arquétipos e, por conseguinte, seu prestígio universal. Um fonte da Gália, sagrada desde a pré-história, por causa da presença de uma figura divina local ou regional, torna-se santa para toda a cristandade, após ser consagrada à Virgem Maria. Os matadores de dragões são assimilados a São Jorge ou a um outro herói cristão; os deuses das tempestades o são a Elias. De regional e provincial, a mitologia tornou-se universal. É de modo especial pela criação de uma nova ‘linguagem mitológica’ comum a toda a população rural, que permaneceu presa à terra, e portanto na iminência de se isolar em suas próprias tradições, que o papel civilizador do Cristianismo se tornou considerável. Cristianizando a antiga herança religiosa européia, ele não apenas a purificou, mas ainda fez ascender a uma nova etapa religiosa da humanidade tudo quanto merecia ser ‘salvo’entre as velhas práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão.
Aí está do que o homo sapiens mais tem sede e fome: dar conta de suas possibilidades e de suas finitudes.
Encerro este trabalho com o pensamento de Ludwig Wittgenstein: Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo. (apud MAGALHÃES, Principia, 2004: 124)
Bibliografia
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986, 3 v.
––––––. Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1992, 2 vols.
––––––. Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia e da Religião Romana. Petrópolis: Vozes, 1993.
––––––. Teatro Grego: Origem e Evolução. Rio de Janeiro: TAB, 1980.
––––––. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1984.
––––––. Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia e Religião Romana. Petrópolis: Vozes, 1993.
HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: Grega e Latina. Trad.De M. da G. Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
HUMBERT, Jules. Histoire Illustrée de la Littérature Latine: Précis Méthodique. Paris: Didier, 1932
LESKY, A. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1971.
MOISÉS, M. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
––––––. A Literatura Brasileira através de Textos. São Paulo: Cultrix, 1973.
MAGALHÃES, José de Oliveira. O Charme da Cultura Clássicas – Produção do Texto Moderno. Principia XII (UERJ). (124-133) Rio de Janeiro: 2004.
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