A ANÁLISE SEMIÓTICA
NO ENSINO DO ITALIANO COMO LE
Elisabetta Santoro (USP)
Os manuais didáticos para o ensino do italiano como língua estrangeira costumam propor atividades geralmente bastante parecidas ao utilizar textos. A uma primeira fase, em que o principal objetivo é verificar a compreensão leitora dos aprendizes, segue um segundo momento no qual, uma vez comprovado que os alunos “entenderam” o texto lido, este é utilizado ou como estímulo para a conversação em sala de aula ou como ponto de partida para a produção de um texto escrito, de maneira que o aprendiz possa dedicar-se à produção em língua estrangeira e exercitar as estruturas gramaticais que está aprendendo. Em alguns casos, é possível encontrar também exercícios que visam a trabalhar o léxico contido no texto, mas raramente se vai muito além disso.
Consideramos, porém, que se o ensino da língua se põe como objetivo dar ao aluno a competência necessária para entendê-la e usá-la de maneira eficaz e adequada, isso não basta. À competência lingüística, ou seja, à capacidade de “criar” o mundo através da língua, conhecendo sua “gramática” e seu léxico, devem unir-se, entre outras, a competência discursiva (que diz respeito ao saber reconhecer e usar no discurso, por um lado, temas e figuras e, por outro, as categorias de pessoa, tempo e espaço), a competência narrativa (por meio da qual se identificam as transformações no texto), a competência textual e intertextual (que concernem ao saber utilizar as estruturas e individuar as relações com outros textos), a competência interdiscursiva (relativa à heterogeneidade constitutiva do discurso) e a competência pragmática (que se refere à maneira em que o ato de linguagem influência as relações entre dois sujeitos).[1]
É, portanto, necessário fornecer conhecimentos sobre o funcionamento da língua e dos textos e sobre as maneiras em que se dá a significação.
A Semiótica dita francesa, fundada por A. J. Greimas, oferece um instrumental, que permite aprofundar o estudo do texto. Com base em seus princípios, consideramos que um texto é o produto da união entre plano da expressão e plano do conteúdo, ou seja, no caso de um texto verbal, entre a ‘aparência’ lingüística e a ‘imanência’ do conteúdo. O texto está, também, sempre ligado a um contexto, que é construção do mesmo texto, e carrega consigo uma ideologia que remete a grades culturais, dialogando com outros muitos textos e situando-se, desta forma, na história e na sociedade.
A Semiótica francesa está baseada no chamado percurso gerativo de sentido, que pode ser esquematicamente resumido na seguinte maneira[2]:
|
SINTAXE |
SEMÂNTICA |
Nível fundamental (mínimo de significado) |
oposição semântica fundamental (quadrado semiótico com afirma-ções /negações) |
Valores (euforia/disforia) |
Nível narrativo (sujeitos/valores) |
a narrativa se organiza do ponto de vista de um su-jeito (estados /transfor-mações) |
valores (desejáveis/inde-sejáveis) |
Nível discursivo (instância da enunciação) |
temporalização espacialização actorialização aspectualização |
valores disseminados no texto sob forma de – temas (tematização) – figuras (figurativização) |
A partir desse esquema e sem nenhuma pretensão de exaustividade, tentaremos agora expor alguns dos pontos principais que regem o percurso gerativo de sentido, partindo do nível fundamental, no qual se revela a significação como oposição semântica mínima, base de sustentação das demais etapas do percurso gerativo. A seleção de elementos recorrentes no texto permite o reconhecimento de campos semânticos e a identificação de dois (ou mais) opostos fundamentais, que possam ser representados no quadrado semiótico, modelo lógico operacional da análise semiótica no nível fundamental, baseado na idéia saussuriana de que só há sentido na diferença (GREIMAS/COURTÉS, 1989: 367).
Os dois termos que representam essa oposição semântica mínima têm um traço em comum, sobre o qual se estabelece então uma diferença, que cria entre eles uma relação de contrariedade, como, por exemplo, no caso dos contrários /vida/ e /morte/. Para cada par de contrários é possível projetar os relativos contraditórios, gerando assim nesse caso /não-vida/ e /não-morte/, chamados de sub-contrários.
Ainda no nível fundamental, mas agora na semântica, são determinadas as categorias fundamentais do quadrado semiótico como positivas (eufóricas) ou negativas (disfóricas), pela categoria tímica que opõe euforia e disforia.
Passemos agora ao nível narrativo e, em especial, à sintaxe narrativa, onde o discurso se narrativiza por meio de ‘transformações’ operadas pelos actantes: sujeito (S) e objeto (O) em relação transitiva; e destinador (S1) e destinatário (S2) em relação comunicativa. Os enunciados elementares são de estado ou de fazer: os enunciados de estado descrevem a relação de junção entre sujeito e objeto, que se materializa em conjunção (o sujeito S está conjunto com o objeto O) e em disjunção (o sujeito S está disjunto do objeto O); os enunciados de fazer regem os enunciados de estado e mostram as transformações, as passagens de um estado para o outro, em outras palavras: o que o sujeito pretende fazer, a finalidade da sua ação. O programa narrativo pressupõe uma comunicação hierárquica entre enunciados de fazer e enunciados de estado, em que se realiza uma transformação operada a partir do sujeito de fazer (S1) em direção ao sujeito de estado (S2), em conjunção (Ç) ou disjunção (È) do objeto (Ov), chamado objeto valor, porque “carrega” os valores do sujeito. Partindo deste sintagma elementar, cria-se o chamado percurso narrativo, que é uma seqüência hipotáxica de programas narrativos e inclui quatro fases: (1) a manipulação, fase em que um sujeito (S1) age sobre o outro (S2), para convencê-lo – por intimidação, sedução, provocação ou tentação – a querer e/ou dever fazer algo; (2) a competência, momento em que o sujeito é dotado de um saber e/ou poder fazer alguma coisa; (3) a performance, que é a ação em si, a transformação central da narrativa; (4) a sanção, que é a fase do julgamento da performance, em que o destinador julga se a ação se realizou em conformidade com o acordo inicial. A sanção pode levar ao “prêmio” o à “punição” do sujeito.
Na semântica narrativa os elementos semânticos são relacionados com os sujeitos. Essas relações podem ser modificadas por meio de modalizações, que se realizam pelo querer e pelo dever (modalidades virtualizantes da manipulação), pelo poder e pelo saber (modalidades atualizantes da competência). As modalidades querer, dever, poder e saber podem ‘transformar’ tanto o fazer (modalização do fazer), quanto o ser (modalização do ser) e fazer e ser são modalidades realizantes da performance, que fazem-fazer e fazem-ser o sujeito.
A modalização do ser produz efeitos de sentido relativos às paixões, ao modo de existência do sujeito, que se projeta num imaginário passional, em que convivem paixões simples (resultantes de modalidades que agem singularmente) e paixões complexas (onde se encadeiam várias paixões).
O próximo nível é o nível discursivo. Quanto à sintaxe discursiva, é preciso definir os processos de discursivização, a saber: actorialização, temporalização e espacialização. Essas categorias estabelecem relações e são instrumentais para ‘garimpar’ o texto.
A actorialização instaura a pessoa e regula a questão do ator e sua relação com o discurso. O ator é efeito de construção do próprio discurso e apóia-se no actante, que é uma abstração narrativa do ator individualizado e figurativizado e que possui caráter formal anterior a qualquer investimento semântico. O termo ator foi substituindo o termo personagem, visando a possibilidade de uma maior precisão e generalização e, ao mesmo tempo, permitindo seu uso fora da linguagem estritamente literária (GREIMAS/COURTÉS, 1989: 34).
A temporalização instaura o tempo no enunciado e toma como momento de referência o momento da enunciação, a partir do qual se estabelecem as oposições temporais da língua. Além disso, o tempo lingüístico está relacionado à ordenação dos estados e das transformações narrados no texto. Existem então dois sistemas temporais: um relacionado diretamente ao momento da enunciação (sistema enunciativo) e outro em função de momentos de referência instalados no enunciado (sistema enuncivo). O momento de referência está relacionado ao momento da enunciação e, aplicando a este último a categoria topológica concomitância vs não-concomitância (onde a não-concomitância é, por sua vez, dividida em anterioridade e posterioridade), obtemos três momentos de referência: um concomitante ao momento da enunciação, que é o tempo do “olhar” (sistema enunciativo); um outro anterior, que é o tempo da “memória” (subsistema enuncivo do pretérito explicitado); e um terceiro posterior, que é o tempo da “espera” (subsistema enuncivo do futuro explicitado)[3].
A espacialização instaura no enunciado um espaço, sempre determinado em função do hic, do aqui, que é implícito em qualquer enunciado, mas que pode também ser explicitado. É em função desse hic, que se determina o algures (em algum lugar) ou o alhures (em outro lugar).
A actorialização, a temporalização e a espacialização fundam-se nas operações de embreagem e debreagem, que podem ser actanciais, temporais e espaciais. A debreagem ‘expulsa’ pessoa, tempo e espaço para fora do ato de enunciação, criando um não-eu (um ele diferente do sujeito da enunciação), um não-agora (um então diferente do tempo da enunciação) e um não-aqui (um algures ou alhures diferente do lugar da enunciação). A embreagem, ao contrário, é o “efeito de retorno à enunciação” (GREIMAS/COURTÉS, 1989: 140), sempre posterior a uma debreagem, e visa, entre outras coisas, a criar um efeito de identificação entre o ator do enunciado e o ator da enunciação. A sucessão entre debreagem e embreagem institui também efeitos de realidade, pois cada nível anterior serve de referente para o nível posterior.
Ainda relativamente a pessoa, tempo e espaço, é preciso acrescentar que os percursos de discursivização permitem focalizar uma outra questão: a do ponto de vista do observador, que “aspectualiza” tempo, espaço e atores, transformando-os em processos, que devem ser apreendidos em seus diferentes aspectos (aspectualização).
No que concerne ao tempo, as categorias concomitância vs não-concomitância e anterioridade vs posterioridade serão substituídas pelas categorias permanência vs incidência e continuidade vs descontinuidade, de maneira que o observador possa “ver a cena” no seu aspecto durativo (continuidade, permanência) ou em momentos incoativos e terminativos (respectivamente início e fim de alguma coisa: descontinuidade, incidência). Pode também ser considerado o tempo do ponto de vista quantitativo (meses, dias, horas, etc.) e qualitativo (rápido e lento em relação a uma referência).
No espaço o enunciador escolhe o ponto de vista de um observador, por meio do qual impõe uma perspectiva e manipula o enunciatário, convidando-o a “olhar” a partir do alto, de uma posição de superatividade (eufórica), ou do baixo, de uma posição de inferatividade (disfórica) e determinando uma específica direcionalidade e, do mesmo modo, estabelecendo o que está próximo e o que está longínquo.
Quanto à aspectualização do ator, podemos retomar o que escreve Fiorin (1989: 350), segundo o qual ela mostra a “qualidade” da performance do ator, assim como é determinada por um observador, cujo ponto de vista não pode ser considerado individual, mas sim social. Através da análise dos comportamentos sociais, Fiorin ilustra como a maneira em que são realizadas as ações (seu aspecto) influi no “julgamento” social do observador a respeito de um ator e como essa visão de mundo impregna a língua natural. Assim são considerados disfóricos o excesso e a insuficiência, enquanto é eufórica a “justa medida” ou neutralidade.
Permanecemos no nível discursivo, mas passamos à semântica, que permite a realização ideológica do discurso, através de dois procedimentos essenciais: a tematização e a figurativização. Assim, um texto que use principalmente elementos da realidade concreta (figuras) vai ser considerado figurativo, enquanto um texto no qual apareçam coisas, idéias e conceitos, que não fazem parte da realidade concreta (temas) vai ser chamado de temático. Nenhum texto é, porém, exclusivamente temático ou exclusivamente figurativo (FIORIN, 1996: 23-25): eles se diferenciam pelo maior ou menos grau de concretude. Temas e figuras estão, além disso, sempre interligados e criam percursos temáticos e figurativos, por meio dos quais podemos reconhecer ‘de que trata um texto’, conseguindo assim passar da figura ao tema, o que nos pode guiar na leitura e na interpretação do texto.
São esses alguns dos elementos considerados na análise semiótica. Por meio desse instrumental, estudamos a maneira em que se constrói o sentido, aumentando dessa forma a inteligibilidade dos textos. Passaremos agora a um exemplo de análise que visa a mostrar de que forma observamos os fatos lingüísticos em sua funcionalidade discursiva e que tipo de relação se estabelece entre o analista e o texto analizado.
Foi selecionado para a análise um conto que faz parte de uma coletânea do escritor italiano Gabriele Romagnoli, publicada em 1993 com o título Navi in bottiglia [Navios em garrafa]. A escolha foi feita tendo em mente, que os leitores seriam alunos de um curso de língua italiana no Brasil, ou seja, alunos em ambiente de língua estrangeira. A partir disso, foi considerado relevante observar, por um lado, aspectos especificamente lingüísticos e, por outro, mecanismos discursivos de construção do sentido.
Um primeiro ponto positivo é que o conto não apresenta relevantes dificuldades lingüísticas, pois é usado um italiano contemporâneo, adequado também para alunos nos primeiros semestres de curso. Outro fator positivo para a situação da sala de aula é a brevidade do texto, que elimina o problema de ter de selecionar um trecho de uma obra maior (um romance, uma peça de teatro, etc.), cuidando para que tenha uma estrutura ‘fechada’ ou que seja possível reconstruir o ‘sentido’ a partir dos elementos presentes. O conto será aqui apresentado em versão original e em tradução. A análise não terá como base a tradução, mas sim o original italiano, já que conta entre seus principais objetivos o de refletir sobre a possibilidade de usar as características específicas dos textos para aulas de língua italiana. Na capa do livro uma citação assinada pelo escritor diz: “Estes são contos de trinta linhas, mas se vocês têm medo da vida, parem na vigésima nona” (“Questi sono racconti di trenta righe, ma se avete paura della vita fermatevi alla ventinovesima”). A citação antecipa que o livro aborda temas, que surpreendem e chocam e é isso que acontece também com o conto que escolhemos, cujo título é: Stupro e vendetta [Estupro e vingança]:
Nicoletta non si muove. Resta lì schiacciata dal peso dell’uomo, anche lui finalmente immobile. Il sangue cola tra le sue gambe nude, ma più lento adesso che la furia si è spenta. Tace, non singhiozza più. Sono passati pochi minuti da quando tutto è cominciato. Sembrano passati anni, nel suo mondo di bambina ferita. Sente mancare il respiro, cerca di spostarsi strisciando sulla schiena. La sua testa emerge dalle spalle dell’uomo. La sua bocca è vicina alle orecchie. «La pagherai,» gli dice «morirai. Mio padre ti ucciderà per quello che hai fatto.» Si aggrappa all’ultima frase come a una speranza, ne fa un ritornello rassicurante, come fosse una filastrocca: «Mio padre ti ucciderà. Mio padre ti ucciderà. Ti ucciderà». L’uomo rimane voltato verso il muro. Tiene gli occhi chiusi. La voce di Nicoletta gli arriva smorzata, lontana, come se venisse da un altro tempo, eco di un mondo che si è frantumato. «Mio padre ti ucciderà.» Fa male anche a lui stare in quella posizione ora che è tutto finito. Ma dove può andare adesso? Come può pensare di rimettere insieme i cocci del suo universo? Guarda la finestra e la vede scheggiata, guarda lo specchio e lo vede rotto. «Mio padre ti ucciderà.» Niente più è come prima, niente gli sembra riparabile. Si solleva stancamente, senza guardare la bambina. È in piedi davanti a lei, di spalle, la sua ombra sul corpo nudo di Nicoletta. Va alla scrivania. Apre il cassetto. Prende la pistola si avvicina allo specchio. È come se fosse un altro uomo. Canna alla tempia. Sparo. Cade vicino alla bambina. Il sangue si mescola al sangue di lei. Nicoletta non si sposta, fiuta l’aria e il silenzio. Dice: «Mio padre ti ha ucciso». Se non fosse cieca capirebbe che suo padre si è ucciso.
Nicoletta não se mexe. Fica ali, esmagada pelo peso do homem, ele também finalmente imóvel. O sangue côa entre suas pernas nuas, mas mais lento agora que a fúria se apagou. Fica quieta, não soluça mais. Passaram-se poucos minutos desde que tudo começou. Parece que se passaram anos, em seu mundo de menina ferida. Sente que lhe falta ar, procura se mexer rastejando com as costas. Sua cabeça emerge por trás dos ombros do homem. Sua boca está perto das orelhas. “Você vai pagar por isso,” lhe diz “vai morrer. O meu pai vai te matar pelo que fez.” Ela se agarra à última frase como a uma esperança, faz dela um refrão tranqüilizador, como se fosse uma cantiga: “O meu pai vai te matar. O meu pai vai te matar. Vai te matar.” O homem fica virado para o muro. Mantém os olhos fechados. A voz de Nicoletta chega a ele, apagada, longínqua, como se viesse de um outro tempo, eco de um mundo que se estraçalhou. “O meu pai vai te matar.” Dói a ele também ficar naquela posição, agora que tudo acabou. Mas aonde pode ir agora? Como pode pensar de juntar de novo os pedaços do seu universo? Olha para a janela e a vê lascada, olha para o espelho e o vê quebrado. “O meu pai vai te matar.” Nada mais é como antes, nada lhe parece reparável. Levanta-se cansado, sem olhar a menina. Está em pé na frente dela, de costas, a sua sombra sobre o corpo nu de Nicoletta. Vai até a escrivaninha. Abre a gaveta. Pega o revolver, se aproxima do espelho. É como se fosse um outro homem. Cano na têmpora. Tiro. Cai ao lado da menina. O sangue se mistura ao sangue dela. Nicoletta não se mexe dali, cheira o ar e o silêncio. Diz: “O meu pai te matou”. Se não fosse cega, entenderia que o pai dela se matou. [tradução minha]
O título do texto antecipa cataforicamente, no modo do parecer e do ser, o percurso temático e narrativo do texto, que se baseia na oposição semântica /vida/ vs /morte/, que pode ser completada pelas oposições /culpa/ vs /inocência/ e /identidade/ vs /alteridade/.
Depois das primeiras três frases, o co-enunciador sabe que o estupro, mencionado no título, já aconteceu. Nicoletta foi estuprada por um “homem”, do qual no início não se sabe nada. O enunciatário descobre algumas linhas depois, que ela é uma menina e logo em seguida, por meio de um discurso direto (debreagem enunciativa de segundo grau), ‘ouve’ sua voz que diz ao “homem”: “La pagherai, morirai. Mio padre ti ucciderà” (“Você vai pagar por isso, vai morrer. O meu pai vai te matar”). O desejo de aniquilamento provocado pelo sentimento da honra ofendida leva-a a querer a vingança para a reparação da falta.
Segundo o Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés, vingança “[...] é uma forma de retribuição negativa (ou punição), exercida na dimensão pragmática, por um Destinador dotado de um poder-fazer absoluto [...]” (1989: 491). Esse destinador-julgador é o pai da menina. Ela invoca o seu nome com uma frase ‘mágica’ (“Mio padre ti ucciderà”, “O meu pai vai te matar”) que repete para superar o medo: para ela é “um refrão tranqüilizador” (“un ritornello rassicurante”) e para o estuprador uma ameaça. A falta deve ser reparada por meio da morte do sujeito.
O narrador observa a cena e a descreve transmitindo ao narratário a ilusão do aqui e do agora. A presença de figuras relacionadas ao corpo é particularmente forte e constante ao longo de toda a narração (o peso do homem, o sangue que côa, as pernas nuas, as costas, a cabeça, os ombros, a boca, as orelhas, a posição, etc.) e a perspectiva espacial (aspectualização), pela qual é descrito o que o narrador está ‘vendo’, parte de um baixo disfórico, que reforça a idéia da culpa e do pecado. Imagens ligadas ao /baixo/ percorrem todo o texto desde a primeira descrição, em que Nicoletta fica “esmagada” (“schiacciata”) de baixo do peso do corpo do homem e, logo em seguida, tenta se mexer “rastejando” (“strisciando”).
O texto é fortemente sensorial e figurativo: ao ver e olhar do homem se contrapõe o sentir e cheirar da menina.
Na primeira parte do conto, o narrador ‘olha’ a partir da posição da menina e do seu ponto de vista. No seu mundo de “menina ferida” (“bambina ferita”) parece que se passaram anos “desde que tudo começou” (“da quanto tutto è cominciato”), é ela que “sente que lhe falta ar” (“sente mancare il respiro”) e é ela que fala a frase ‘mágica’.
Após ter sido verbalizado o desejo de vingança, o ponto de vista muda e o enunciatário começa a ‘ver’ o mundo narrado a partir do “homem”. Em relação a ele, evidencia-se a oposição entre o passado e o presente, entre o aqui e o alhures. A voz da menina lhe parece vir “de um outro tempo” (“da un altro tempo”), lhe parece “eco de um mundo que se estraçalhou” (“eco di un mondo che si è frantumato”). Agora que tudo terminou, gostaria de se mexer: “ma dove può andare adesso? Come può rimettere insieme i cocci del suo universo?” (“Mas aonde pode ir agora? Como pode pensar de juntar de novo os pedaços do seu universo?”) O “ma” (“mas”) com o qual começa a primeira pergunta cria uma ruptura, uma cisão em relação à descrição anterior. Por meio dessa conjunção e dos pontos de interrogação que aproximam o enunciatário do enunciado, o narrador sinaliza uma mudança. Ele permite, que a sua voz se misture com a voz do “homem” num discurso indireto livre, que penetra nos pensamentos do ator do enunciado e os revela. A resposta para a primeira das perguntas é dada algumas linhas depois: ele “vai até a escrivaninha” (“va alla scrivania”) e pega da gaveta o revólver com o qual se mata. A vida transformou-se em morte.
A voz da menina volta a ser ouvida por meio de uma outra debreagem enunciativa de segundo grau. “O meu pai te matou” (“Mio padre ti ha ucciso”) diz ela. O enunciatário acompanhou a descrição de um suicídio e parece que a afirmação da menina seja apenas o reflexo do seu desejo. Na última linha do conto o enunciatário descobre, porém, que é isso que acontece no modo do parecer e do ser: a menina é cega e não sabia, que o estuprador e o pai são a mesma pessoa. O mesmo ator sincretiza os dois papéis actanciais. É essa revelação que cria o efeito de choque e de surpresa.
Vários sinais indicam a duplicidade da figura do homem, a oposição /identidade/ vs /alteridade/. A janela, o espelho, a sombra são, na literatura, símbolos clássicos do duplo. Particularmente incisiva é a frase: “È come se fosse un altro uomo” (“É como se fosse outro homem”), com a qual o narrador o descreve, quando se aproxima do espelho e olha para a imagem refletida de si.
O conto joga com três tempos: o presente da narração, o passado da inocência e o futuro da vingança. O tempo verbal escolhido para descrever o passado, o mundo que “si è frantumato” (“se estraçalhou”) é o passato prossimo, ligado ao momento da enunciação, que atualiza o passado e sublinha a sua influência sobre o presente. O futuro é o tempo da ‘espera’, que aqui é a espera fiduciária da reparação da falta, cuja repetição acaba tendo o efeito de um oráculo, que fala o que ‘realmente’ se realiza. É interessante também observar a função do imperfeito do subjuntivo (congiuntivo imperfetto, em italiano), que cria uma separação entre o mundo imaginado e o mundo ‘real’, bem como entre o parecer e o ser.
Vimos como os fenômenos mais estritamente lingüísticos (do plano da expressão) acompanham os percursos de formação do sentido (do plano do conteúdo) e por isso acreditamos, que esse tipo de análise possa ser utilizado como base para o desenvolvimento de atividades didáticas. Considerando os textos como discurso, podemos desenvolver atividades para os aprendizes de língua estrangeira, que vão muito além da simples compreensão leitora e que estimulam uma relação muito mais estreita entre o aprendiz-leitor e o texto.
Para a didática da língua estrangeira, temos, desde a primeira busca das oposições semânticas fundamentais do texto a ser analisado, uma motivadora atividade didática que une o exercício lexical com a primeira busca de sentido. O aluno que, motivado pela leitura, quer dizer ‘do que fala o texto’, é estimulado a buscar abstrações na língua estrangeira, tanto para poder estabelecer as oposições semânticas, nas quais ele se baseia, quanto para poder depois definir o(s) tema(s). Também na busca das isotopias e das recorrências que dão sentido ao texto (é o caso das partes do corpo e dos verbos ‘sensoriais’ no conto), o aluno treina a aquisição lexical em língua estrangeira. É possível incluir atividades que considerem a polissemia, que, vistas em perspectiva semiótica, não seriam um puro e vazio ‘exercício’ lingüístico, mas poderiam adquirir sentido, por exemplo, para identificar desencadeadores de isotopias.
A partir da análise do texto apresentada nesse trabalho podemos imaginar atividades didáticas, partindo do princípio de que para a construção do sentido é fundamental refletir sobre a funcionalidade dos fenômenos gramaticais. Poderíamos, portanto, propor aos alunos atividades que partam, por exemplo, da observação do sistema pronominal e do uso dos possessivos tanto para entender a construção da coesão textual (anáforas e catáforas), quanto para ter indícios sobre narrador e atores do enunciado.
Poderíamos prosseguir refletindo sobre o uso dos tempos verbais para identificar qual a relação que o enunciador por meio do narrador quer estabelecer com o enunciatário/narratário, como são utilizadas para a construção do texto as potencialidades dos tempos verbais (presente, passado, futuro, subjuntivo) e em que relação eles estão com a enunciação.
Ainda no nível discursivo, é interessante estimular a reflexão dos alunos sobre os efeitos de sentidos obtidos pelo uso do discurso direto (debreagem enunciativa de segundo grau) e sobre a maneira como é inserido na estrutura do texto.
A aspectualização temporal e espacial contribuem também de maneira essencial para a construção do sentido do texto analisado. O alto e o baixo, as diferentes perspectivas espaciais a partir das quais o narrador conta, o próximo e o longínquo, o antes e o depois, o lento e o rápido, o início e o fim são elementos significativos, que devem ser observados.
Por meio da análise semiótica dos textos, os alunos aprendem que, afinal, o que deve ser considerado é a produção de sentido e seus efeitos. Desta forma, poderão acostumar-se a descrever e explicar não apenas o que os textos dizem, mas também como eles dizem o que dizem e chegar a uma aprendizagem mais consciente e profunda do funcionamento da língua que estão aprendendo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, D. L. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas. Aprendizagem, ensino, avaliação. Ed. Portuguesa. Porto; Lisboa: Asa, 2001.
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996.
––––––. “A lógica da neutralidade: um caso de aspectualização do ator”. Estudos lingüísticos. XVIII Anais de Seminários do GEL. Lorena: Pref. Municipal de Lorena, 1989, p. 348-355.
GREIMAS, A. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, 1989.
POZZATO, M. P. Semiotica del testo. Roma: Carocci, 2001.
ROMAGNOLI, G. Navi in bottiglia. Milão: Mondadori, 1993.
[1] Cf. a respeito Fiorin (1996: 32-33) e o capítulo 5 do Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas (2001).
[2] Esse esquema foi elaborado a partir de BARROS (1990) e POZZATO (2001).
[3] Agostinho considerava inexato falar de três tempos e julgava que temos, na verdade, três modalidades de presente: a “memória” é o presente do passado; o “olhar”, a “visão” é o presente do presente; a “espera” é o presente do futuro (apud, FIORIN, 1996: 132).
........................................................................................................................................................... |
Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos |