A oralidade e a escrita nas mensagens
de
um Chat espanhol
“primero aprende a escribir luego
me hablas”

Greice da Silva Castela (UFRJ e UERJ)

 

Neste artigo discutimos, por um lado, a natureza da interação no Chat com relação às modalidades oral e escrita da linguagem e, por outro lado, sua caracterização de acordo com o grau de planejamento de seus enunciados[1].

O corpus constitui-se de mensagens enviadas ao canal ‘Amistad’ de uma sala de bate-papo espanhola. A interação ocorreu entre estudantes brasileiros de E/LE e supostos hispano-falantes durante sete dias de entrada no canal com duração de uma hora cada.

A Comunicação Mediada por Computador (CMC), também denominada de interação on-line (IOL) ou discurso eletrônico apresenta um grau variável de planejamento de acordo com a sincronia interacional. Assim, os enunciados enviados por computador podem apresentar um alto grau de planejamento quando não são produzidos e enviados em tempo real (CMC assíncrona) e um baixo grau de planejamento[2] no caso de sua produção e recepção ocorrerem simultaneamente (CMC síncrona).

A sala de ‘bate-papo’ de IRC (Internet Relay Chat), objeto de estudo deste artigo, permite a comunicação quase síncrona entre os participantes desde que estejam conectados à Internet. Esse tipo de interação problematiza tanto a caracterização dicotômica de escrita e oralidade quanto à proposta tipológica de um continuum entre o oral e o escrito.

As principais diferenças apontadas por diversos autores para essas duas modalidades da linguagem estão relacionadas:

(1) à presença dos interlocutores: ao contrário do que ocorre na escrita, na fala o falante interage diretamente com seus interlocutores e pode monitorar o efeito do que é dito no ouvinte, esse feedback instantâneo do interlocutor possibilita a reconstrução ou reparação do enunciado (Chafe, 1982). No Chat, o feedback se da exclusivamente através das mensagens enviadas para a tela do computador;

(2) à rapidez: a escrita é mais lenta que a fala (Chafe, 1982) e o Chat utiliza uma escrita rápida. Além disso, a escrita permite a consulta de fontes (Alves, 2001), mas a fala e a escrita utilizada no Chat devido à exigência temporal só permitem consultas aos outros participantes;

(3) ao planejamento: se por um lado, na interação face a face não há a possibilidade de revisar e alterar os enunciados antes da recepção pela audiência, por outro, na escrita o planejamento e a correção são freqüentemente utilizados. Por sua vez, na interação realizada nos Chats esses recursos não são muito recorrentes devido à necessidade de resposta imediata. A fala é planejada localmente (Koch, 1992), ou seja, a cada enunciado se adeqüa à interação imediata, não é planejada em todos os seus aspectos, já que os enunciados são emitidos quase simultaneamente ao planejamento do discurso, mas como pode haver uma organização prévia não percebida pelos participantes relativiza a noção de espontaneidade. Já a escrita dispõe de mais tempo de planejamento. Entretanto, no Chat a interação é espontânea e comandada localmente (Souza, 2001), os enunciados são enviados quase simultaneamente ao seu planejamento, sendo constantemente fragmentados. E, enquanto na fala, os enunciados não podem ser apagados após sua produção, na escrita e no Chat existe essa possibilidade, porém na sala de ‘bate-papo’ somente podem ser apagados antes do envio do enunciado para a tela (Alves, 2001);

(4) à preocupação normativa: diferentemente da escrita, na qual a ‘correção’ do texto é considerada muito importante, no Chat assim como na fala o imediatismo e dinamicidade são mais importantes que a ‘correção’ ortográfica e gramatical, logo exigências pragmáticas se sobrepõem às sintáticas. Se, por um lado, na fala o falante reformula o enunciado ou o repete em forma de paráfrase, por outro lado na escrita se evitam repetições, por sua vez no Chat freqüentemente se utiliza o recurso copiar e colar para repetir exatamente o que foi dito;

(5) ao canal: na fala como a comunicação é oral, o canal é sonoro e visual, já na comunicação escrita o canal é visual. A CMC integra as modalidades oral e escrita da comunicação (Bordia, 1996 apud Alves, 2001:130) e seus interlocutores sentem-se em uma interação falada, mesmo o canal sendo visual, somente texto (Fonseca, 2001);

(6) ao armazenamento: a fala e a escrita também se distinguem pela possibilidade de armazenamento, visto que a fala só permanece se for gravada, mas a escrita é produzida e armazenada em um suporte. No Chat, a mensagem não é armazenada pelo sistema (Fonseca, 2001:75), permanece na tela enquanto os usuários estão conectados ao canal ou se for salva por um dos participantes em seu computador;

(7) ao envolvimento: Chafe (1982) destaca o envolvimento entre os interlocutores como característico da fala e identificável pela presença de marcas de primeira pessoa, uso de marcadores conversacionais (verificam a compreensão e controlam o fluxo informacional), emprego de termos enfáticos (expressam envolvimento entusiástico) e de expressões de incerteza e imprecisão. Na escrita ocorre um distanciamento expresso por uso de voz passiva sem agente e nominalizações (Chafe, 1982), mas pode apresentar envolvimento e afetividade em diferentes graus de acordo com as intenções do interlocutor (Alves, 2001: 134). Constatamos que no canal do Chat o envolvimento permeia toda a interação.

Segundo essa visão, o Chat seria híbrido, um gênero confuso[3] (Mayans, 2002: 41; 2000) por mesclar características da escrita e da oralidade visto que, por um lado, seus enunciados são expressos por meio de grafemas e podem ser armazenados e, por outro, parece aproximar-se da oralidade devido à sua interatividade, organização da troca de turnos, co-construção local do discurso, sujeição às exigências temporais e necessidade de contextualização paralingüística.

A falta de estudos teóricos contribuiu para a disseminação de uma visão reducionista, segundo a qual a escrita mantém as funções da comunicação oral sem dar conta de seus matizes, porém permitindo a comunicação à distância e uma maior durabilidade da mensagem. Autores como Dias (2000), Hilgert (2001), López Quero (2003), Marcuschi (2004) e Yus (2001) também sugerem que a sala de ‘bate-papo’ mistura características das duas modalidades da linguagem, já que simula uma conversa cujo objetivo é uma interação rápida realizada numa ‘folha de papel virtualonde a mensagem é digitada pelo emissor e lida pelo receptor, produzindo umtexto falado por escrito” Hilgert (2001: 40). O Chat é visto como “um híbrido entre a escritabilidade e formalidade da letra impressa, por um lado, e a qualidade efêmera e informal da fala, por outro” (Yus, 2001: 139). Além do termo híbrido autores como Araújo e Melo (2003: 55) utilizam a expressão “natureza ‘hermafrodita’ da linguagem” para se referirem à linguagem do Chat como um

registro ‘escritural’ resultante da simbiose das características do registro escrito (como o uso de um sistema alfabético, do teclado, de abreviaturas e de acrônimos) e do registro oral/ coloquial (principalmente, a informalidade e a espontaneidade, repetições e exclamações freqüentes).

A essa concepção dicotômica entre língua oral e língua escrita se contrapõe uma segunda visão, que procura estabelecer um continnuum entre essas duas modalidades da linguagem, ressaltando que o discurso escrito e o oral não são excludentes, mas possuem finalidades distintas, já que ao contrário do discurso escrito que visa à transmissão de conteúdos objetivos, o discurso oral em situações informais tem por finalidade a interação e a relação entre os interlocutores sendo a maneira como os enunciados são ditos mais relevante que seu conteúdo objetivo (Tannen, 1985).

Barros (2001) e Hilgert (2001) também ressaltam a articulação existente entre as modalidades oral e escrita da língua apresentada pelas salas de ‘bate-papo’, que enquanto modos complementares de compreender o mundo possibilitam diferentes formas de produção de sentidos e relacionamento entre os interlocutores. Os textos falados e escritos possuem papéis distintos na sociedade e constroem sentidos de maneiras diferentes. “A escrita não transcreve apenas a fala em outra substância de expressão” (Barros, 2001: 74), que utiliza recursos diversos de expressão que influenciam na construção do sentido.

Para autores como Marcuschi e Koch, apesar da fala e da escrita possuírem características próprias, não devem ser consideradas de modo dicotômico, que essas nem sempre são exclusivas de uma modalidade e foram estabelecidas a partir do ideal da escrita. O que se teria de fato seriam posições intermediárias entre escrita e oralidade. Assim, a conversação espontânea e a escrita formal seriam pólos opostos e entre ambos se situariam todos os outros tipos de interação verbal e social de produção textual, num continuum tipológico com semelhanças e diferenças de acordo com características, estratégias de formulação e traços lingüísticos que determinam o afastamento ou a aproximação dos textos em relação à cada modalidade.

Nesse sentido, Marcuschi (1997), por exemplo, ao considerar as modalidades da linguagem dentro de uma continuidade tipológica, descarta a dicotomia entre língua escrita e língua falada, valorizando o objetivo do discurso, o contexto social de produção e a interseção entre o oral e o escrito.

Entretanto, para um terceiro grupo de lingüistas nem a escrita nem a fala podem ser consideradas de forma autônoma, dicotômica, como códigos paralelos ou de forma homogênea no ‘singular’. Ao falar ‘do oral’ e ‘do escrito’ num continuum, cabe perguntar, como Ferreiro (2001: 151), a que oralidade e a que escrita estamos nos referindo. No caso específico da escrita, para essa autora “implicitamente, sob essa denominação em singular se pensa quase exclusivamente na escrita alfabética, concebida como o ponto culminante de uma evolução histórica”.

A partir do papel fundador dessa escrita para a representação da língua (Blanche-Benveniste, 1998; Lara, 2002; Ferreiro, 2001), difunde-se uma falsa idéia de estabilidade e homogeneidade do próprio principio da escrita vinculada à tradição discursiva da prosa. Esta modalidade historicamente instituída nem é a única forma de escrita nem é homogênea, varia de acordo com a finalidade pragmática, com a natureza dos símbolos híbridos utilizados e com o grau de planejamento.

Considerando quenão é possível construir uma posição estável entre o escrito e o falado”, Blanche-Benveniste (1998: 34) propõe o deslocamento da posição intermediária entre as duas modalidades para a oposição estabelecida de acordo com o maior ou menor grau de planejamento e espontaneidade, sugerindo que o grau de planificação da mensagem é inversamente proporcional à sua velocidade de produção.

Como expõe Madeira Lourenço (2001) o pouco planejamento é uma das características compartilhadas pela CMC e pela interação oral. Ambas apresentam interação direta dos interlocutores, colaboração entre os falantes, manifestação de envolvimento, expressões de incerteza e imprecisão, complexidade gramatical, grande número de formas verbais, mensagens curtas e períodos simples.

Como adverte Blanche-Benveniste (1998) a língua falada, também denominada de ‘oralidade’, só pode ser comparada a um rascunho da escrita, visto que o processo de elaboração se revela no texto. A escrita mais espontânea tende a revelar as marcas de sua elaboração como ocorre em rascunhos, anotações mnemônicas e no Chat. A sala de ‘bate-papo’, enquanto forma de escrita utilizada para relação interpessoal, apesar de não ser totalmente espontânea, possui um dos menores tempos de planejamento da escrita devido à natureza quase síncrona da interação exigida pelo suporte. Essa escrita com um alto grau de espontaneidade tenta, com a finalidade de tornar a interação mais coloquial, recuperar alguns fenômenos da fala apagados pela ortografia e não representados pela escrita normativa. Podemos relacionar ao que ocorre no Chat a seguinte afirmação de Blanche-Benveniste (1998: 41) referente à oralidade:

Como participantes de um diálogo, estamos atentos sobretudo ao que o outro quer dizer, mais que ao que diz, e à forma exata e literal de seu discurso. Sem dúvida, é isto o que explica que finalmente nos molestam pouco as repetições, os titubeios e os recomeços próprios da linguagem falada improvisada, que percebemos apenas e que parecem insuportáveis quando os encontramos por escrito.

Igualmente, nas salas de ‘bate-papo’ o conteúdo dos enunciados é mais importante que sua forma gráfica. E, as repetições são recorrentes, possuindo função de chamar a atenção dos participantes para a mensagem e/ou presença do usuário que a envia.

Segundo Gazeta (2000: 25), “ é possível investigar as semelhanças e diferenças na oralidade e na escrita se ambas estiverem inseridas em seu contexto de uso”, as circunstâncias de produção e uso no momento da interação determinam a seleção de uma das duas modalidades, bem como semelhanças e diferenças entre elas (Alves, 2001). A relação existente entre as modalidades oral e escrita empregada para representação[4] do objeto língua no Chat também é evidenciada pela impressão que os estudantes de E/LE e os demais participantes têm de estarem falando quando em realidade estão escrevendo. Percebem a interação como um gênero híbrido, evidenciado através da troca de sentidos (visão x audição) e da permuta de modalidades da linguagem (escrita x fala/ conversa). Supomos que isso se deve à sensação que os usuários parecem ter de estarem participando de uma ‘conversaoral por escrito, sendo comum o uso de expressões referentes à ‘oralidade’ como ‘conversar’, ‘falar’, ‘dizer’, ‘ouvir’, ‘calar-se’ como mostram os exemplos abaixo:

(1) [10:06] MAT ALGUNA CHICA Q QUIERA HABLAR?

(2) [10:38] MAT fue un placer hablar contigo

(3) [09:56] AIDA no soy de aqui, perdona si hablo raro pero llevo poko en esto

(4) [09:02] Lancellot dime kalika

(5) [11:37] LEIDY16 OYE PRISCILA QUE EDADTIENES

(6) [10:06] KEVIN LOQ AY Q OIR

(7) [09:23] nova callte rubis

Os universitários também expressam através do emprego das palavras ‘falar’ e ‘dizer’ essa sensação de estarem em uma conversação, como mostram os seguintes exemplos:

(1) [10:05] MICOLE hay alguien qué quiere hablar?

(2) [10:27] MICOLE mat. lo siento podemos continuar hablando?

(3) [09:32] Mary Creo que AIDA habla siempre lo mismo

(4) [08:53] kalika chorizo quiero hablar contigo

(5) [10:14] MANTIS HABLA COMIGO!!!!!!!!

(6) [09:53] ZORRO KEVIN,BOLUDO.NO DIGAS MALAS PALAVRAS.

No entanto, os usuários do canal têm consciência de que o discurso, devido ao suporte, materializa-se na escrita-teclada, por isso, empregam termos comoescrever’, ‘ler’ e ‘frases’, mesclando escrita e oralidade:

(1) [10:14] AIDA primero aprende a escribir mantis luego me hablas

(2) [09:31] AIDA "\". no entiendo por ke la gente se konecta al chat para decir las frases komo las ke dice mary

Os participantes do canal (exemplos de 1 a 3) e os aprendizes (exemplos de 4 a 6) não somente têm a impressão de que estão ‘falando’, ou seja, utilizando um canal oral como também têm a sensação de que estão ‘conversando’ através desse tipo de interação:

(1) [09:30] Boy Nadie me habla estoy muy aburrido, xfavor necesito alguna conversación

(2) [11:08] UltraSur mira antes de q me tokeis bien los cojones,dejemos la conversación

(3) [10:54] u43311858 alguien de malaga con ganas de charlar un rato

(4) [08:32]kalikachicosvamosacharlar

(5) [08:38] kalika perdoname, solo quiero chalar y no me dan pelota

(6) [11:07] Guapa también.....estoy oyendo música y charlando contigo

Essa interpretação generalizada se explica pelo maior grau de interatividade possibilitado pela escrita espontânea.

 

Referências bibliográficas

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[1] Este artigo é parte da dissertação de mestrado de Castela (2005).

[2] Blanche-Benveniste (1998: 42-43) caracteriza o discurso não-planejado por: (1) apresentar descontinuidade (vai-e-vem sobre o eixo dos sintagmas); (2) acumular elementos de um mesmo paradigma antes de escolher uma lista de palavras; (3) introduzir incisos que tornam o discurso não-linear; (4) deixar ver as etapas de sua confecção; (5) não ser um produto terminado; (6) conter comentários sobre o processo de seleção léxica; (7) apresentar comentários meta-discursivos; (8) acumular paradigmas (repetição de parte da estrutura do enunciado); (9) permitir modificar o sintagma até completá-lo e (10) apresentar adjetivações. Para esta autora os três primeiros “são procedimentos em parte alheios à escrita em prosa com fins comunicativos” (Blanche-Benveniste, 1998: 49). Consideramos que esse modo de produção do discurso utilizado pela autora para caracterizar a fala espontânea também caracteriza a escrita espontânea.

[3] Terminologia de Clifford Geertz (1993: 8) referente à área acadêmica conforme aponta Mayans (2002: 40) ao propor a aplicação do termo ao Chat.

[4] A representação é a maneira como os falantes pensam as práticas – forma como fala-, como se situam em relação aos outros locutores e às práticas, como situam suas línguas em relação às outras línguas que representam, portanto, refere-se ao epilingüismo, isto é, idéia do falante sobre a língua (Calvet, 1999).

 

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