O judeu-espanhol
na comunidade sefaradi de São Paulo[1]
Antón Castro Míguez (FCL)
Introdução
A presente comunicação é resultado da pesquisa desenvolvida em nossa dissertação de mestrado, que teve como objetivo verificar a situação atual do judeu-espanhol na comunidade sefaradi de São Paulo, e insere-se na área da sociolingüística, mais especificamente da sociologia da linguagem, e parte do pressuposto de que o aparecimento e desaparecimento de línguas não são determinados somente pelo contato lingüístico, mas também por fatores históricos, políticos, econômicos e socioculturais, causas essas que analisamos em nosso trabalho.
Antes de prosseguirmos, julgamos conveniente esclarecer alguns termos que empregamos em nosso trabalho, Sefarad, sefaradi e sefaradim, bem como apresentar um breve histórico da presença judaica na Península Ibérica e da diáspora sefaradi.
Sefarad, sefaradi e sefaradim
Sefarad é um topônimo de origem hebraica, que se menciona pela primeira vez na profecia de Abdias, versículo 20, como um dos lugares que habitavam deportados de Jerusalém. Muitos acreditam que a alusão bíblica se referia à antiga Sardis, cidade da Ásia Menor, mas a tradição judaica, principalmente a partir do século VIII, tendeu a identificar o termo Sefarad com o extremo ocidental do mundo conhecido, ou seja, a Península Ibérica, de modo que, durante toda a Idade Média, e especialmente durante a época de ouro da cultura hispano-hebraica e também em sua diáspora, os judeus espanhóis se referissem assim a essa região.
Sefaradi, portanto, é o gentílico com o qual se autodenominam os judeus espanhóis, e sefaradim, seu plural, respeitando a morfologia hebraica. No Brasil, também aparecem os termos sefardim e seu plural sefardins, bem como o termo sefardita e sefarditas.
O termo sefaradi também se utiliza com freqüência em oposição ao termo askenazi, este em alusão a Askenazi, outro tronco étnico-cultural do judaísmo: o franco-germânico-eslavo. O termo Askenazi, assim como Sefarad, também é um topônimo bíblico, que em sua origem parece referir-se a um país do alto Eufrates colidente com a Armênia, e que os judeus a partir da Idade Média identificaram com os primeiros assentamentos judaicos centros-europeus: Alemanha, Norte da França, Polônia e Lituânia, entre outros.
É importante esclarecer o significado e usos desses termos porque, em sua diáspora, os sefaradim tomaram contato com outros grupos judaicos: os já citados askenazim; os judeus romaniotas, provenientes do antigo Império Romano e assentados na região do Oriente mediterrâneo; os judeus arabizados; os caraítas; e outros.
Em nosso trabalho, cabe notar, empregamos o termo sefaradi em sua acepção mais restrita, ou seja, em referência aos descendentes dos judeus espanhóis expulsos da Península no século XV, que tenham conservado as marcas culturais hispânicas e, especialmente, tenham conservado uma variedade da língua espanhola: o judeu-espanhol. (BEL BRAVO, 1992: 37) Não obstante, é bastante comum reunir a todos os judeus que não sejam askenazim no grupo sefaradi.
Presença judaica na Península Ibérica
e a diáspora sefaradi
Com relação à origem das primeiras comunidades judaicas na Península Ibérica, há uma grande dificuldade em fixar-se uma data fiável, pois há muitas lendas e mitos acerca da chegada dos primeiros judeus a território ibérico. Essa questão não foi tratada somente por historiadores judeus, mas também pelos espanhóis. Segundo Beinart (1992), o que impulsionou os judeus a se interessarem pelas suas origens não foi somente um desejo natural de conhecer seu próprio passado, mas a necessidade de buscar uma resposta ao questionamento da sociedade espanhola acerca de quando chegaram seus antepassados e quais eram seus direitos, resposta esta que poderia garantir sua permanência no território espanhol, num momento em que os reis católicos tratavam de chegar a uma definição sobre a permanência ou não de judeus nos reinos espanhóis.
A comunidade judaica tentou de todos os modos demonstrar sua antiguidade na Península Ibérica, eximindo-se de qualquer responsabilidade acerca da crucificação de Cristo, do qual eram freqüentemente acusados, e mostrando que sua chegada a esse território remontava a um passado muito mais remoto que o dos próprios governantes, que no momento desejavam expulsá-los. Era comum, inclusive, que a comunidade judaica remontasse sua chegada à época do rei Salomão, quando embarcações fenícias de Tiro comercializavam com o místico país de Tarsi ou Tartessos, provavelmente localizado em algum lugar entre Huelva e Ronda, na atual Andaluzia (BEINART, 1992: 11-13).
Entretanto, os testemunhos documentais mais antigos são já de época romana avançada: uma lápide funerária encontrada em Adra e hoje perdida, provavelmente do século III, que procedia do enterro de uma garota judia, certamente escrava; e a famosa lápide trilingüe de Tarragona, na qual se combinam inscrições em hebraico, latim e grego, com símbolos judaicos, provavelmente do século I de nossa era (DÍAZ-MAS, 1997: 17-18).
Segundo os historiadores, os primeiros assentamentos de judeus deram-se na costa mediterrânea, e com o tempo estenderam-se para o interior da Península. Esses primeiros judeus procediam da região da Palestina e chegaram à Península Ibérica durante o período romano. Já no século IV, estas comunidades deveriam ser tão importantes que um concílio eclesiástico, celebrado em Elvira, ditou uma série de cânones anti-judaicos, com o fim claro de evitar contatos entre judeus e cristãos, o que demonstra que tanto estes como aqueles conviviam pacificamente e mantinham uma relação até mesmo amistosa na Espanha romana (BEL BRAVO, 1992: 14-15). Este concílio e outros que se seguiram são provas dos esforços dos governantes em evitar qualquer tipo de influência judaica sobre os cristãos.
Durante a época visigótica, principalmente com os reis do período ariano, os judeus viveram um período de tranqüilidade e bonança, mas com a conversão da coroa visigótica ao catolicismo, no final do século VI, as perseguições aos arianos e judeus foram ferozes, e estes últimos foram perdendo os poucos direitos que tinham e reduzidos praticamente à escravidão.
Revoltados com a intolerância dos reis visigodos, convertidos ao catolicismo, tanto os arianos quanto os judeus aliaram-se aos muçulmanos, que, a partir do Norte da África, começavam a conquistar o Sul da Península. O domínio visigodo da Península durou quase trezentos anos (412-711), dos quais mais de cem foram empregados na tentativa de converter todo o país ao catolicismo. A crueldade dos governantes e a corrupção do regime levaram a um rápido aniquilamento, já às vésperas da invasão muçulmana, em 711 (BEINART, 1992: 48).
Não é de se estranhar, portanto, que os judeus acolhessem os árabes como seus “libertadores”. Na Espanha muçulmana, os judeus tinham sua liberdade religiosa garantida, e em muitas ocasiões lhes eram confiadas regiões recém conquistadas. Em Al-Andalus puderam renovar a língua e a literatura hebraica, dedicar-se aos estudos dos textos sagrados e à tradução de textos científicos, desenvolvendo enormemente a cultura judaica na Península. Muitos abandonaram a agricultura e passaram a viver nos grandes centros urbanos. Eram protegidos pelos novos senhores e converteram-se em eficazes auxiliares para o comércio, a administração e a representação diplomática. Al-Andalus, principalmente durante o reinado de Abderraman III, convertia-se então no centro espiritual do povo judeu, não só para a Península, mas também como referência para as demais comunidades judaicas espalhadas pela Europa e pelo Oriente.
Com o desmembramento do califado, no século XI, em virtude de uma série de guerras civis, e a chegada dos almorávidas (1090-1147) e os almôadas (1147-1232), com uma política de intolerância e forte integralismo religioso, chegava ao fim a época de esplendor da comunidade judaica na Península.
Tanto os almorávidas quanto os almôadas começaram a exigir de judeus e cristãos sua conversão ao islamismo, o que levou a grande maioria dos judeus andalusis a estabelecer-se nos reinos cristãos de Castela e Aragão, que, na época, concediam alguns privilégios à comunidade judaica, favorecendo seu assentamento. É importante ressaltar que, enquanto os reinos cristãos continuavam sua guerra contra os muçulmanos, os judeus seguiram sendo imprescindíveis para a repovoação das zonas conquistadas e para a organização da vida cidadã, do comércio e da administração. Desse modo, foram ocupando cargos públicos em Castela, Aragão e Catalunha. Sua presença na corte veio também favorecida pelo seu conhecimento do árabe – o que os tornava úteis para as tarefas diplomáticas –, e pelo seu conhecimento de medicina e de outras ciências (ROMERO, 1997: 41-42).
Mas a presença judaica nos reinos cristãos é anterior. Mesmo antes do século X, já havia pequenas judiarias em territórios cristãos. Há notícias da existência de pequenas colônias judaicas na Galícia e em Leão, a partir do século X; e na Catalunha, já no século XI, se desenvolveria uma comunidade urbana numerosa de alfaiates, sapateiros e ourives (DÍAZ-MAS, 1997: 19). Os judeus, nos reinos cristãos, eram considerados “propriedades” do monarca, que lhes garantia sua proteção.
Em outros reinos a situação era parecida. Os nobres e os monarcas castelhanos, a partir do século X, foram concedendo privilégios e facilidades para o assentamento de judeus, principalmente os provenientes de Al-Andalus. O mesmo verificou-se em Aragão e Navarra, e na recém reconquistada Zaragoza.
Em Castela, floresceu, durante os séculos XII e XIII, uma intensa cultura interconfessional entre cristãos e judeus. No século XIII, o arcebispo de Toledo, Raimundo de Salvevat, fundou a famosa Escola de Tradutores de Toledo, “na qual colaboraram intelectuais cristãos e judeus e através da qual chegaram ao mundo cristão e europeu não só as obras de sabedoria oriental, mas também muitas da antigüidade clássica que só se conservaram em suas versões árabes” (DÍAZ-MAS, 1997: 20).
Os judeus espanhóis não só contribuíram com o enriquecimento cultural de Castela, mas também de toda a Europa cristã. Durante o reinado de Alfonso X, o Sábio, houve uma especial atenção às traduções para a língua romance, que viria a consolidar-se como veículo de expressão artística e científica. Pode-se dizer, portanto, que os judeus também contribuíram para a consolidação do castelhano como língua de cultura (DÍAZ-MAS, 1997: 20).
Se por um lado observamos uma pacífica e produtiva convivência entre as intelectualidades cristã e judaica, por outro verificamos uma insatisfação do povo com relação à presença judaica nos reinos cristãos, que ia, passo a passo, intensificando-se. Decretos reais de caráter anti-judaico foram assinados tanto em Castela como nos reinos vizinhos de Aragão e Catalunha. Já no final do século XIII, a hostilidade contra os judeus era presente em todos os reinos, e as tensões sociais dela advindas acabariam resultando em matanças e assaltos populares às judiarias, como as de 1391, iniciadas em Sevilha e que se estenderam por toda a Península.
No século XIV, quebrou-se a já instável convivência entre judeus e cristãos com um violento anti-semitismo. Em 1348, os judeus foram acusados dos desastres da peste negra e perseguidos. Também, por volta de 1320, começou a difundir-se pelos reinos cristãos as acusações de que os judeus envenenavam águas e profanavam hóstias, acusações que cresceram consideravelmente durante os anos da peste negra que assolou a Europa (1348-1350) (ROMERO, 1997: 44-5).
Como reflexo dessas fortes ondas de perseguição, verificou-se uma grande decadência das judiarias nas grandes cidades e a proliferação de pequenas comunidades judaicas em núcleos rurais e pequenas cidades (BEL BRAVO, 1992: 17). O êxodo de muitos judeus ao Norte da África e a outras regiões mediterrâneas e o grande número de conversões forçadas, contribuíram ainda mais para a decadência do judaísmo na Península. É nesta conjuntura que chegam ao trono Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os Reis Católicos.
Com a criação da Nova Inquisição, em 1478, intensifica-se a perseguição aos falsos conversos, acusados de judaizarem em segredo. A comunidade judaica divide-se em dois grupos, judeus e conversos, tanto um como o outro vítimas do ódio da população local.
Seguindo a linha de seus antecessores, os Reis Católicos consideravam os judeus como “propriedade real” e os mantinham sob sua proteção, em troca, é claro, de volumosas somas de dinheiro, e durante alguns anos tentaram “amenizar” o ódio da população local.
Os motivos que os levaram a, anos depois, assinar o edito de expulsão em 31 de março de 1492 ainda causam controvérsias entre os historiadores. Muitos acreditam que era a única saída para levar a cabo o projeto de unificação da Espanha através da unidade política, lingüística e religiosa, que só seria alcançada quando todos os súditos professassem a mesma religião. Alguns acreditam que a pressão da Igreja os “obrigou” a optar pela expulsão. Outros, entretanto, defendem a idéia de que os Reis Católicos duvidavam de um êxodo massivo, acreditando que com tal medida a grande maioria “abraçaria” a fé católica.
De fato, o que sabemos é que centenas de milhares de judeus, num prazo de quatro meses, viram-se obrigados a emigrar a regiões mais seguras: Portugal – que lhes concedia proteção temporária em troca de altas somas de dinheiro –, Norte da África, Império Otomano, Egito, Palestina, Sul da França, Países Baixos, Itália e Alemanha. Inicia-se, assim, a diáspora sefaradi.
Com relação ao número de judeus que deixaram a Espanha, não há dados seguros, já que as únicas fontes históricas são as crônicas escritas no período, que, parafraseando a pesquisadora María Antonia Bel Bravo (1992), são muito úteis para captar o ambiente e as motivações, mas muito imprecisas com relação aos dados (BEL BRAVO, 1992: 32). Estima-se que havia espalhadas pela Espanha aproximadamente 216 aljamias, o que nos leva a crer que algumas centenas de milhares de judeus abandonaram as terras espanholas.
A maior parte dos judeus de Castela foi para Portugal; os da Andaluzia se transferiram para o Norte da África; e os que saíram pelos portos do norte e leste da península se espalharam pela Europa e o Império Otomano (BEL BRAVO, 1992: 33).
Díaz-Mas (1997) divide a diáspora sefaradi em duas etapas, a primária e a secundária, e as divide em três fases: “a primeira e a terceira poderiam definir-se como de abertura para o exterior, marcadas pelo signo da emigração; na etapa intermediária, a história se desenvolve de portas para dentro e as comunidades se concentram em sua própria e efervescente vida interna” (DÍAZ-MAS, 1997: 55).
Novamente parafraseando a Díaz-Mas (1997), a primeira fase estendeu-se da expulsão a meados do século XVII e esteve marcada pela busca de um lugar de assentamento. Os judeus expulsos, e posteriormente os conversos que fugiam da península, foram assentando-se em diversos países cristãos (católicos e protestantes) e mulçumanos (império turco, Norte da África), e foi nestes últimos onde encontraram as condições mais favoráveis para a conservação de suas tradições, principalmente no então crescente império otomano, que via nos judeus, potencial humano e econômico para o desenvolvimento administrativo, urbano e comercial do império. É celebre a frase do sultão Bayazit II: “Como quereis que considere inteligente um homem que empobrece seu reino para enriquecer o meu?”. Sem entrar na discussão da veracidade dessa frase, o certo é que o sultão favoreceu e incentivou o assentamento de judeus em seus territórios, como veremos mais adiante.
Esta primeira fase termina com a grande crise provocada pelo movimento do falso messias Shabetay Sevi, que provocaria uma grande crise espiritual nas comunidades judaicas assentadas no Oriente mediterrâneo.
A segunda fase à que se refere Díaz-Mas (1997) e que se desenvolveu durante os séculos XVIII e parte do XIX, esteve marcada pela estabilização das comunidades judaicas nos novos territórios e sua preocupação com seu próprio entorno. Alguns historiadores referem-se a esse período como um período de decadência de ditas comunidades, mas não entraremos nessa questão.
A terceira fase, marcada por crises políticas, econômicas e culturais, teve início no final do século XIX, com a desestabilização do império otomano, e prolongou-se até as duas guerras mundiais, levando milhares de judeus a buscarem um novo entorno geográfico, agora nas Américas, Europa Ocidental e Israel. Esta fase marca o que Díaz-Mas (1997) chama de diáspora secundária.
Como vimos, no final do século XIX e durante a primeira metade do século XX, produziu-se o que Díaz-Mas (1997) chama de diáspora secundária: um vasto movimento migratório pelo qual os sefaradim saíram de seu entorno geográfico tradicional para assentar-se em países mais jovens, como os do continente americano, alguns países europeus – França, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Espanha –, e o então recém-criado Estado de Israel.[2]
No continente americano, o país que mais recebeu sefaradim, principalmente os originários do Oriente mediterrâneo, foi os Estados Unidos, atualmente a maior reserva do sefaradismo mundial, embora antes mesmo da chegada desses imigrantes, provenientes, como dissemos, da Turquia e dos Bálcãs, já havia nos Estados Unidos alguns descendentes de judeus espanhóis, conversos que haviam retornado à fé judaica sob o amparo dos Países Baixos e que se instalaram como colonos em Nova Amsterdã, atualmente Nova York, durante o século XVII, fundando a primeira congregação judaica dos Estados Unidos, a Shearit Israel.
A maior parte desses imigrantes chegou entre a revolução dos Jovens Turcos, 1908, e a primeira guerra mundial, 1914, e instalou-se em Nova York, uma das maiores cidades judaicas do mundo. Em Seattle, San Francisco, Atlanta, Rochester, Portland, Chicago, Indianapolis, Los Angeles, Cincinnati e Montgomery também se fundaram comunidades sefaradim.
A adaptação desses judeus foi no início bastante complicada. A maioria não conhecia o idioma inglês e encontrava-se num meio onde imperava a cultura, língua e tradição dos judeus askenazim, grupo majoritário dentro da comunidade judaica dos Estados Unidos. Inclusive, sua própria condição de judeus era posta em dúvida pelos americanos, principalmente porque não falavam o yiddish. Vejamos o que relata um jovem imigrante sefaradi, sobre sua chegada aos Estados Unidos:
Depois de ter passado alguns anos no colégio de Jesuítas do Cairo, em 1911 emigrei para os Estados Unidos e entre minhas peripécias, recordo o complicado que era definir aos americanos minha estirpe. Respondia-lhes que era da Turquia, mas como não me chamava Mustafá, nem falava turco, não acreditavam, e nunca podiam compreender que da Turquia pudessem vir pessoas de fala espanhola e com sobrenomes também espanhóis. Tampouco se convenciam do meu judaísmo. Ali, para ser judeu, a pessoa tinha de falar yiddish e ter sobrenomes alemães (até mesmo Jesus Cristo...). Quando nos escutavam falar entre nós e nos perguntavam, respondíamos que éramos sefaradim: outro mistério inexplicável para eles. Podíamos dizer-lhes que éramos de Netuno, e daria no mesmo. Ao final, decidíamos proclamar, em todas as partes, que éramos espanhóis (ainda que do Oriente), e isso simplificava o assunto.[3]
Com o tempo, as comunidades sefaradim, num princípio bastante fragmentadas e dispersas, foram organizando-se e ganhando maior expressão e representatividade. Simultaneamente, foram surgindo órgãos de expressão de grupos sefaradim, dando origem a uma fértil atividade periodística, como os semanários La América, que foi publicado de 1910 a 1923; La Voz del Pueblo; El Lucero Sefardí; La Luz; El Progreso; e, principalmente, La vara, que foi publicado em Nova York, entre 1922 e 1948, e que chegou a alcançar uma considerável tiragem.
Com o tempo, foram fundando-se outras instituições, de asilos para idosos a centros para o estudo do sefaradismo. Basta citar que a universidade judaica ortodoxa Yeshiva University introduziu em 1964 um programa de estudos sefaradim em seu currículo.
Outros países do continente americano também receberam um número considerável de sefaradim.
Já sabemos que durante os séculos XVI e XVII, muitos conversos chegaram às colônias espanholas e portuguesas, burlando a proibição que os impedia de ir ao Novo Mundo. Durante o século XVII, as colônias holandesas da América do Sul receberam colonos judeus de origem espanhola. As relações comerciais entre os Países Baixos e Marrocos favoreceram os assentamentos de sefaradim norte-africanos em Suriname, em Recife e em Curaçao.
Maior importância teve a corrente migratória do Norte da África que se produziu em meados do século XIX, como causa da explosão demográfica no Marrocos e da guerra hispano-marroquina. Muitos judeus marroquinos vinham à América, principalmente ao norte do Brasil, em pleno ciclo da borracha, com a intenção de fazer fortuna e logo regressar. Entretanto, muitas famílias acabaram instalando-se definitivamente na região.
Argentina, Venezuela, Uruguai, Chile e Peru receberam contingentes de emigrantes sefaradim. Posteriormente, foi a vez do México, América Central (principalmente Santo Domingo, Panamá e Costa Rica) e Cuba.
A emigração a países ibero-americanos foi num primeiro momento bastante reduzida. Somente com a restrição de cotas de imigração nos Estados Unidos, aumentou o afluxo de imigrantes marroquinos e orientais nesses países, principalmente Argentina e Uruguai, países mais procurados pelos sefaradim depois dos Estados Unidos.
Com relação ao atual Estado de Israel, devemos tecer algumas considerações preliminares. Enquanto a Palestina esteve sob domínio otomano, havia algumas comunidades judaicas, na sua grande maioria de sefaradim. Em Jerusalém, por exemplo, havia o Grão Rabinato sefaradi. Com o movimento sionista, a queda do Império Otomano, e o protetorado inglês na Palestina, começou a intensificar-se a imigração de judeus, principalmente de askenazim, que foram cobrando maior presença nessas terras. Com a fundação do Estado de Israel, logo após a Segunda Guerra Mundial, e as intensas ondas de imigração de judeus de diferentes grupos, a sociedade israelense encontrou-se dividida em duas classes: a dirigente, de procedência askenazi e altamente qualificada; e a dirigida, mais inculta e menos preparada, da qual faziam parte a maioria dos judeus sefaradim e orientais (DÍAZ-MAS, 1997: 92). Tal situação começou a mudar principalmente com os casamentos mistos de sefaradim e askenazim e o nascimento de sabras, nativos israelenses, que já não se sentem vinculados a uma ou outra tradição do judaísmo de seus pais. Por outro lado, o projeto sionista de “apagar” essas diferenças parece não ter alcançado plenamente seus objetivos. Atualmente, vemos surgir em Israel, movimentos que tentam resgatar as tradições, costumes e cultura de cada grupo, pelo qual podemos inferir que o sefaradismo em Israel vem ganhando força. Desde 1979 se edita a revista Aki Yerushalaim, em judeu-espanhol e dedicada aos estudos sefaradim.
Com relação à diáspora secundária na Europa, cabe mencionar que foi muito menor e inexpressiva quando comparada a de outras regiões. Devido à afinidade dos sefaradim com a língua e cultura francesas, promovida pela Alliance Israélite Universelle, alguns migraram para Paris, Bruxelas, Amsterdã e Londres, onde já havia comunidades judaicas. Espanha, principalmente pelas relações que estabeleceu com os sefaradim do Marrocos, também foi escolhida por muitos.
Cabe notar que em todas essas regiões os sefaradim puderam reconstruir suas vidas e adaptar-se às sociedades locais, e que os mais jovens já se integraram plenamente na cultura dos países para os quais se dirigiram, e estão a caminho de perder sua identidade sefaradi.
Já a presença de judeus sefaradim no Brasil remonta-se ao século XVII, quando colonos judeus procedentes dos Países Baixos se instalaram na colônia holandesa de Pernambuco, atual Recife. Entre 1638 e 1641 chegaram aproximadamente 200 imigrantes judeus, que contribuíram para o crescimento econômico da colônia holandesa, ou como donos de engenhos e arrendatários, ou como comerciantes de produtos coloniais, inclusive o tráfico de escravos. Seu conhecimento do português e sua afinidade com os cristão-novos os capacitaram como intermediários entre os holandeses e a população local. A vida comunitária judaica, que se iniciara em 1631 com a celebração de serviços religiosos em casas particulares, fortaleceu-se em 1641 com a chegada de dois rabinos, Ishac Aboab da Fonseca e Mosseh Raphael de Aguilar. Por ocasião, já havia duas comunidades organizadas, Zur Israel e Maguen Abraham, no Recife e na recentemente fundada cidade de Maurícia, respectivamente. Nos demais territórios dominados pelos holandeses – Paraíba, Itamaracá e Maranhão –, assentaram-se alguns poucos judeus, que chegaram a formar reduzidas comunidades na Paraíba e em Itamaracá. Seus serviços religiosos estavam a cargo de oficiais locais, que mantinham estreitos contatos com os rabinos de Recife (AVNI, 1992: 61). Com a restauração portuguesa, em 1654, todos os holandeses, inclusive os judeus, tiveram de abandonar a colônia. Muitos voltaram para Amsterdã, outros empreenderam novas aventuras pelo Caribe.
Durante o século XIX, com a independência do Brasil, chegaram ao Norte do país, especialmente Pará e Amazonas, que nos anos posteriores viveria o “ciclo da borracha”, imigrantes judeus de origem marroquina, que vinham com a intenção de fazer fortuna na América e regressar a seu país. Em 1823, foi solicitada ao governo licença para construir uma sinagoga. A constituição imperial do Brasil permitia o culto doméstico e particular de outras religiões que não a católica – declarada como a oficial do império –, e estabeleceram-se, em 1826 e 1828 duas congregações, Eshel Abraham e Shaar Ha-Shamaim, na cidade de Belém do Pará, que se tornou o foco de atração de imigração de judeus marroquinos no Brasil. Documentos comprovam que grande parte desses imigrantes, beneficiada com a exploração da borracha e das atividades comerciais dela advindas, participava de forma ativa da vida política e social da região. Muitos, inclusive, optaram pela naturalização. Com o tempo, muitos se transferiram para o Rio de Janeiro, na época capital do império, e posteriormente algumas famílias se estabeleceram na cidade de São Paulo, que nas primeiras décadas do século XX vivia um grande desenvolvimento econômico (AVNI, 1992: 102-106).
No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, chegaram ao Brasil os primeiros imigrantes sefaradim orientais, provenientes do antigo império turco-otomano. Embora o destino da maioria desses imigrantes fosse o Uruguai e a Argentina, muitos acabaram desembarcando nos portos do Rio de Janeiro e Santos, devido, principalmente, ao cansaço e ao desgaste da viagem.[4]
A princípio, chegavam jovens sefaradim de Esmirna, que tentavam escapar do serviço militar da Turquia, que se tornara obrigatório também para as minorias étnicas. Com o tempo foram chegando as primeiras famílias, que se instalaram no centro de São Paulo e, posteriormente, pelos bairros nobres da cidade.
No Rio de Janeiro, Santos e São Paulo, nesta ordem de importância, foram formando-se as primeiras comunidades de judeus sefaradim procedentes do Oriente mediterrâneo. Em geral, cultos, poliglotas e procedentes da elite social dos seus países de origem, esses judeus pronto se adaptaram à sociedade local, integrando-se, muitas vezes, à elite local. Vivian Flanzer (1994) emprega o termo “grupo invisível” (FLANZER, inédita) para referir-se aos rodelis[5] do Rio de Janeiro, que, dissociados de sua religião, que não se confundia com o grupo social, integraram-se de forma plena à elite carioca.
Muitas famílias dedicaram-se ao comércio, principalmente à importação e exportação de produtos como tapetes, algodão, minérios, torrefação e corretagem de café e negócios com seguro e construção (MIZRAHI, 2000: 104-5). Outras abriram lojas no centro de São Paulo, “atendendo a uma clientela sofisticada e exigente de produtos importados, como tapetes orientais, tecidos e frutas do período” (MIZRAHI, 2000: 104).
Como relata Mizrahi, “a facilidade de acomodação sefaradi à realidade brasileira permitiu que esses imigrantes retomassem em São Paulo o ritmo de vida agradável que tinham em Esmirna: passeios pela cidade, piqueniques no Horto Florestal, na Cantareira e outros parques (...). A cidade dos anos 30 e 40 oferecia à massa imigrante recreação diversificada: cinemas, teatros, passeios públicos e outros divertimentos que os convidavam a sair de casa” (MIZRAHI, 2000: 139).
Cosmopolitas e liberais, preocupavam-se com a educação e formação de seus filhos, que, em geral, eram mandados a escolas laicas, preferentemente as freqüentadas pela elite paulistana, daí a quantidade de sefaradim nascidos em São Paulo dedicados às atividades liberais, muitos se destacando como médicos, engenheiros, cientistas sociais, psicanalistas e nos meios de comunicação.
Menos conservadores que os judeus orientais – os de fala árabe e francesa, também originários do Oriente mediterrâneo e que imigraram para o Brasil à mesma época –, em geral, não se opunham aos casamentos exógenos, ou seja, entre os diferentes grupos judaicos (orientais, askenazim e judeus alemães) e aceitaram com mais “facilidade” que outros grupos os casamentos mistos (com os não judeus).
Na análise de Mizrahi (2000), os sefaradim, “antecipando a imigração de outros grupos de judeus, aproximaram-se dos brasileiros e dos imigrantes latinos e, em pouco tempo, dominando o idioma português, absorveram a cultura nacional. Sua escolaridade, condição econômica e ocidentalização, permitiram a rápida integração no mundo dos negócios (...)” (MIZRAHI, 2000: 295), diferentemente de outros grupos judaicos que aqui se estabeleceram, como os judeu-orientais e os askenazim. Essa integração e assimilação “dependeram, em última instância, da permeabilidade individual e comunitária dos valores judaicos em relação ao meio brasileiro, parte perdendo a identificação com a religião e as tradições judaicas” (MIZRAHI, 2000: 297).
Atualmente, a comunidade sefaradi de São Paulo encontra-se praticamente “assimilada” à sociedade paulistana. Como vimos, trata-se de um grupo proveniente das classes média e alta da sociedade turca, que se integrou com facilidade à elite paulistana. Cosmopolitas, liberais, poliglotas e detentores de um elevado grau de cultura e instrução, assimilaram-se “silenciosamente”, como, nas palavras de Flanzer (1994), um “grupo invisível”.
Da chegada dos primeiros imigrantes à cidade de São Paulo até hoje, passaram-se mais de cem anos, e muitas famílias encontram-se já na quinta geração. Altamente qualificados e dedicados às mais diversas atividades liberais, bem como ao comércio e à indústria, acomodaram-se harmoniosamente às classes média e alta da sociedade paulistana. Em geral, os encontramos nos bairros nobres da cidade, principalmente nos Jardins.
Os casamentos exógenos e mistos impossibilitam, muitas vezes, uma identificação clara com o grupo judaico de origem. Os membros mais idosos, os que chegaram às décadas de 30 e 40, ainda se lembram com saudosismo dos primeiros anos em São Paulo, das reuniões entre os membros da comunidade; das celebrações e festividades e do espanyoliko, judesmo ou ladino que ainda mantinham no seio da família e usavam para comunicar-se entre si.
O judeu-espanhol
Como pudemos verificar em nossa pesquisa bibliográfica, especialmente no texto de Díaz-Mas, os judeus viveram, em séculos passados, uma situação de isolamento físico, reclusos em bairros especiais, o que resultou também num isolamento cultural, social e lingüístico. Tal isolamento fez com que se desenvolvessem as judeus-línguas, ou seja, variedades do idioma da cultura dominante utilizadas na vida social e familiar das judiarias. Essas formas especiais de falar funcionavam também como uma autodefesa em relação aos não judeus e marcavam as peculiaridades culturais deste povo, principalmente no que tangia a sua religião.
Com relação aos judeus que viviam na Espanha, estes falavam uma língua que não diferia da falada pelos demais habitantes da península, salvo em poucos aspectos dialetais, determinados principalmente por razões religiosas. Devido às contínuas viagens e aos intercâmbios entre as comunidades das distintas zonas peninsulares, e também a sua vinculação à administração real, a maioria deles provavelmente conhecia e falava o castelhano mesmo antes da expulsão. Certamente, a fala de Castela e Andaluzia, a de maior prestígio sociocultural da época, tendeu a impor-se entre os judeus espanhóis, embora estes também conhecessem e empregassem as línguas locais de suas comunidades, como o catalão, o aragonês, o leonês, o galego etc.
No exílio, as diferentes comunidades de judeus sefaradim mantiveram, ao longo dos séculos XVI e XVII, através de rabinos, comerciantes e artesãos, relações com a península, principalmente com os conversos que ali continuaram vivendo, o que, somado à influência das publicações em judeu-espanhol impressas em Salônica, Constantinopla e Esmirna, que se difundiram por todo o mundo sefaradi, fez com que se diluíssem as possíveis diferenças lingüísticas regionais e se criasse uma espécie de koiné, ou seja, uma língua comum, na que conviviam formas dialetais variadas e às vezes divergentes, mas que todos conheciam e entendiam.
É importante ressaltar que entre os sefaradim não se fixou uma norma lingüística unificada, e que sua língua seguiu sua evolução independente da normalização operada na península. Ademais, as relações com a península, pouco a pouco, tornaram-se mais escassas, e os sefaradim começaram a ficar isolados num entorno no qual não se falava o espanhol, senão outras línguas, como árabe, turco, grego, italiano, francês e flamengo, entre outras. Este progressivo isolamento produziu também uma divisão do mundo sefaradi em dois grandes blocos: o oriental e o do Norte da África, nos quais a língua evoluiu de maneira diferente.
Deve-se destacar também que a partir de meados do século XIX produziu-se um movimento de ocidentalização do mundo sefaradi: a hispanização e afrancesamento do Marrocos e a introdução do francês e do italiano, através das escolas da Alliance Israélite Universelle e das escolas Dante Alighieri, como línguas de cultura entre os sefaradim do Oriente, além do desmembramento do Império Otomano e do nascimento de novas nações, que, numa onda de nacionalismo, impuseram a integração de todas as comunidades a sua língua e cultura. Tais fatores desencadearam uma progressiva decadência do judeu-espanhol: o quase desaparecimento da hakitia (o judeu-espanhol do Marrocos) e o progressivo abandono do judesmo (o judeu-espanhol do Oriente) entre as novas gerações de sefaradim.
O judeu-espanhol
na comunidade sefaradi de São Paulo
Com relação à situação atual do judeu-espanhol na comunidade sefaradi de São Paulo, é importante esclarecer o percurso que realizamos em nossa dissertação de mestrado, da qual advém esta comunicação.
Em nossa Dissertação, nosso objetivo foi analisar a situação atual do judeu-espanhol, a partir de uma exploração bibliográfica que nos proporcionasse suporte teórico para nossa análise, e de uma pesquisa de campo empreendida entre os membros da referida comunidade. Para nossa análise, nos valemos dos estudos da sociolingüística e da sociologia da linguagem, principalmente os empreendidos por Joshua Fishman e seus seguidores.
Em nosso trabalho tratamos de esclarecer algumas diferenças conceituais entre a sociolingüística e a sociologia da linguagem, com o fim de que nosso marco teórico estivesse suficientemente claro. Segundo Francisco Moreno Fernández, sociolingüista espanhol, a relação entre a língua e a sociedade nos leva a dois portos, o da sociolingüística propriamente dita e o da sociologia da linguagem. O objeto de estudo da sociolingüística é a língua como sistema de signos, mas considerada dentro de um contexto social. Ao sociolingüista interessam-lhe as relações entre os estratos sociais e a estrutura lingüística. A sociologia da linguagem, segundo Fishman, examina a interação entre dois aspectos: o uso da língua e a organização social da conduta. Ela ocupa-se, portanto, do espectro total dos temas relacionados com a organização social do comportamento lingüístico, incluindo não somente o uso lingüístico per se, mas também as mesmas atitudes lingüísticas e os comportamentos explícitos com relação à língua e seus usuários. Ao sociólogo da linguagem preocupam-lhe, portanto, aspectos como o plurilingüismo, a diglosia, a planificação lingüística e as atitudes lingüísticas. Como referencial, William Labov pode ser considerado o nome mais representativo dos estudos sociolingüísticos; Joshua Fishman, por sua vez, é o pesquisador que mais vem dedicando-se à sociologia da linguagem.
Tanto Fishman como Moreno Fernández verificam que a conservação ou desaparecimento de línguas são fenômenos resultantes de outros fenômenos de contatos lingüísticos: o bilingüismo e a diglosia, conceitos estes que tratamos de explorar em nosso trabalho, principalmente através da leitura dos textos de Fishman e Fasold.
Com relação aos estudos de conservação e substituição de línguas, Fishman observa que estes se ocupam basicamente da relação entre o grau de mudança (ou estabilidade) nos modelos de uso lingüístico, por um lado, e dos processos psicológicos, culturais e sociais em andamento dentro das populações que utilizam mais de um nível lingüístico para fins de tipo interno ou externo. Dentro deste campo de estudos, Fishman propõe três subdivisões básicas: o uso habitual da língua em mais de uma circunstância; os processos psicológicos, sociais e culturais relacionados com a estabilidade ou mudança no uso de hábitos lingüísticos; e as atitudes lingüísticas.
Com relação a este último campo, Fasold destaca que o estudo das atitudes lingüísticas é um valioso instrumento para ressaltar a importância social da língua e para compreender como esta é utilizada como símbolo de pertencimento a um grupo, como um símbolo de identidade. E cita os conceitos de convergência e divergência propostos pelo psicólogo social Howard Giles como extremamente úteis para se entender a função que tem a língua como signo de identidade. De acordo com a teoria de Giles, a conduta lingüística de uma pessoa pode convergir ou divergir da fala de qualquer pessoa com quem mantenha uma interação. A convergência seria a expressão de um sentimento de unidade entre as pessoas que participam numa conversação. A divergência, no sentido contrário, é um sentimento de separação, ou um distanciamento da pessoa com a qual se fala, a favor de um grupo com o qual se identifica. Deste modo, a convergência estaria relacionada com a função unificadora da língua proposta por Garvin e Mathiot, e a divergência com a função separadora. Portanto, segundo Fasold, um modo de descobrir o sentido de identidade de grupo de uma pessoa através da língua é estudando a convergência a longo alcance. Deste modo, destaca Fasold, se um indivíduo adapta sua fala para concordar com o modelo lingüístico de um novo grupo, de modo que esse modelo se converta em seu meio normal de expressão lingüística, isso implica uma forte tendência a integrar-se a esse grupo.
Com relação à metodologia empregada em nosso trabalho, esta abrangeu quatro etapas:
(1) Definição do perfil dos informantes: no nosso caso, membros da comunidade sefaradi que se identificassem como tal;
(2) Elaboração do roteiro de entrevista: confecção de um questionário que nos permitisse recolher dados que pudessem ser relevantes em nossa pesquisa, como a procedência de nossos informantes e de seus antepassados, questões relativas a sua identidade, reconhecimento da língua através da leitura ou audição de um texto em judeu-espanhol, os nomes com os quais identificam essa língua, e o emprego (ou não) que fazem do judeu-espanhol e em que âmbito ele se processa.
(3) Realização das entrevistas, após um primeiro contato telefônico; e
(4) Transcrição das entrevistas, com o objetivo de anotar todas as informações e observações que julgássemos relevantes para nosso trabalho.
Os dados colhidos permitiram-nos dividir os informantes em dois grandes grupos:
(1) Membros que têm do judeu-espanhol um conhecimento ativo, embora já não o empreguem, nem em âmbitos informais (como no lar), nem em âmbitos formais. Tratam-se dos sefaradim procedentes da Turquia e dos países balcânicos, e um excepcionalmente do Marrocos, na faixa dos sessenta anos, em geral poliglotas, de elevado nível de instrução.
(2) Membros que têm desta língua um conhecimento passivo, ou seja, a entendem mas não sabem falá-la. Tratam-se de sefaradim nascidos no Brasil ou que vieram para cá muito jovens, que se encontram na faixa dos cinqüenta anos, conhecem dois ou três idiomas e possuem alto nível superior de instrução, na sua maioria, profissionais liberais.
Pudemos verificar também que a totalidade dos informantes pertence à classe média-alta da sociedade, de alto poder aquisitivo e elevado nível cultural. Em geral, os informantes demonstraram conhecer a história de seus antepassados, pelo menos em traços gerais. Falam pelo menos uma língua estrangeira e residem nos bairros nobres da cidade, principalmente na região dos jardins.
Os que declararam não falar o judeu-espanhol conhecem alguns dichos e expressões nessa língua, em geral empregados pelos pais e avós.
Após esta primeira etapa, verificamos a necessidade de proceder a uma pesquisa de atitudes lingüísticas, com o objetivo de verificar de que modo nossos informantes avaliam o judeu-espanhol, e que relações afetivas mantêm com a língua. Não se tratava, entretanto, de verificar atitudes positivas ou negativas com relação à língua, mas sim de verificar até que ponto nossos informantes acreditavam ou não na conservação do judeu-espanhol e num possível resgate por parte das gerações mais jovens.
A guisa de conclusão, podemos destacar que a pesquisa que realizamos junto à comunidade sefaradi de São Paulo permitiu-nos comprovar alguns fatos que já intuíamos antes de iniciarmos este trabalho, e aportou-nos outros que realmente não imaginávamos. Antes de iniciarmos este trabalho, acreditávamos que encontraríamos uma comunidade na qual o judeu-espanhol estivesse ainda fortemente presente no âmbito familiar e religioso, e que a comunidade sefaradi era um grupo étnico minoritário e que bastaria que estabelecêssemos o primeiro contato para que tivéssemos livre trânsito entre seus membros e acesso irrestrito ao universo lingüístico que nos interessava estudar. Tal fato não se comprovou, o que num primeiro momento chegou a nos assustar e a pensar que nosso trabalho não se concretizaria. Comprovar que não encontraríamos os sefaradim em bairros étnicos, em clubes ou congregações, reunidos e comunicando-se em judeu-espanhol, nos fez repensar os caminhos que deveríamos seguir a partir de então. Era necessário conhecer e entender os caminhos que empreenderam os primeiros imigrantes sefaradim desde sua chegada à cidade de São Paulo, no começo do século XX, até hoje, o que significaria aproximadamente cem anos de história. Mas tampouco isso bastaria. Era necessário entender também como se organizaram durante os cinco séculos em que estiveram estabelecidos no Norte da África e no Oriente Mediterrâneo. Era necessário empreender uma “viagem” pela história deste povo, conhecer suas tradições e costumes. Isso representava empreender uma pesquisa histórica, acessar uma bibliografia nem sempre disponível em nosso país. Os começos, portanto, foram difíceis, mas lentamente fomos aproximando-nos da história, cultura e língua dos judeus sefaradim. Mas eram necessários mais dados, necessitávamos conhecer a história da imigração sefaradi no Brasil e especialmente em São Paulo, e praticamente não havia bibliografia especializada sobre o tema. A leitura de uma tese defendida recentemente no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sobre a imigração de judeus do Oriente Médio em São Paulo e Rio de Janeiro, sugerida pela professora Dra. Eliana Rosa Langer, membro da Banca de Qualificação de nossa dissertação, e o contato com sua autora abriu-nos as portas para a referida comunidade, e colocou-nos em contato com alguns de seus membros.
Tínhamos de proceder a uma pesquisa em sociologia da linguagem, mas não dispúnhamos de um modelo que nos orientasse em nosso trabalho. Havia pistas, sim, mas sabíamos que teríamos de nos mover segundo nossa intuição, mais que nada.
Exploramos a bibliografia disponível, elaboramos um roteiro de entrevista e procedemos à pesquisa de campo. A partir das leituras teóricas e da análise do material colhido, buscamos respostas que nos explicassem a perda do judeu-espanhol entre os membros da comunidade sefaradi de São Paulo, e pudemos verificar os fatores sociais que implicaram o abandono e a substituição dessa língua, entre eles o desejo de integração à nova sociedade.
O número restrito de informantes deveu-se à indisponibilidade de muitos em conceder-nos uma entrevista, e as alegações mais comuns eram a falta de tempo ou o desconhecimento da língua. O fato de não pertencermos à comunidade judaica dificultou-nos, em alguns momentos, o acesso aos informantes.
Da análise do material colhido, podemos comprovar que as etapas que levam à substituição de língua, citadas por Fasold e Fishman, verificam-se na comunidade que estudamos, e, como resultado, comprovamos que o judeu-espanhol foi praticamente substituído pelo português em quase todos os âmbitos, permanecendo em âmbitos muito restritos, nas reuniões informais e familiares, e em algumas celebrações religiosas, nas quais o judeu-espanhol “aparece” nos provérbios, dichos, saudações e no cancioneiro sefaradi, resgatado recentemente pela intérprete Fortuna Safdié.
Esta pesquisa serviu-nos também para revisar a bibliografia de uma área ainda bastante incipiente em nosso país: a sociologia da linguagem. Surpreendeu-nos muito comprovar a inexistência até então de traduções para o português das principais obras.
Ao finalizarmos esta apresentação, advertimos que ainda há muito a ser estudado sobre o tema, questões que não pudemos ou não tivemos condições de tratar com a merecida profundidade em nossa pesquisa, mas esperamos que o mesmo sirva de incentivo a outros trabalhos, e que possamos, futuramente, prosseguir nos estudos da cultura sefaradi em nosso país.
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[1] O presente trabalho é resultado da pesquisa desenvolvida na dissertação de mestrado, de título homônimo, defendida em março de 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Mirta Groppi.
[2] O que se segue, tomamos de DÍAZ-MAS, 1997
[3] ESTRUGO, José M. El retorno a Sefarad: Un siglo después de la Inquisición. Madrid, 1933, p.32 apud DÍAZ-MAS, 1997: 88. Tradução nossa.
[4] Sobre a imigração dos sefaradim orientais a São Paulo, Rio de Janeiro e Santos, nos valemos do trabalho de MIZRAHI, 2000, atualmente, o único trabalho detido sobre o tema. Todas as informações sobre o tema foram recolhidas da referida obra.
[5] Sefaradim procedentes da ilha de Rodes.
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