Receitas
Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB eUCSAL)
Introdução
Partindo do levantamento e da estruturação do léxico da culinária quinhentista portuguesa a partir do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, tentar-se-á aqui demonstrar, a partir de uma receita, como se apresentam esses discursos encontrados nesse manuscrito. Trata-se aqui de primeiro livro de cozinha portuguesa, conhecido até o momento: o Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles, através da edição crítica mais completa: O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (MANUPPELLA, 1986). Um códice, que apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que levanta, é valioso, contribuindo não só para o vocabulário histórico da língua portuguesa, como também mostrando um lado importante da vida social que é a arte de cozinhar e bem comer, numa época da história portuguesa de que muito pouco se conhece e cujo mais antigo documento impresso de receitas culinárias, não é anterior a 1680, que é A Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues (RODRIGUES, 1987).
Para tal estudo, escolheu-se uma das sessenta e sete receitas encontradas no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, a receita XXVII, Esta he e rrecejta das boldroegas. A partir da receita, serão feitos os confrontos do discurso da mesma com outros discursos de épocas posteriores, buscando-se assim uma análise histórica desses discursos.
Sobre os hábitos
alimentares
no Portugal quinhentista
Portugal, país independente desde 1143, possui grandes tradições culinárias. Muitas receitas atuais baseiam-se em pratos que já existiram em séculos anteriores. É uma pena que o terremoto de 1755, além de ter destruído inúmeras vidas, tenha deixado em suas chamas, as cinzas do passado português, com a destruição dos monumentos e livros sobre os mais variados assuntos, incluindo, com certeza, a culinária.
Mesmo sabendo que algumas receitas foram escritas no século XVI, muitas delas são cópias de receitas mais antigas. Um livro caseiro de receitas é sempre a compilação de cópias de receitas que agradaram e foram passadas de uma geração à outra. Nunca se terá a certeza da época em que primeiro se executou tal receita, pelo menos com base nesse tipo de livro caseiro.
Comparando-se a alimentação quinhentista com a atual, a partir da leitura de livros que tratam do assunto como Salvador Dias Arnaut (1986), Luis da Câmara Cascudo (1968), João Pedro Ferro (1996) e A. H. de Oliveira Marques (1987), pode dizer-se que a mesma era genericamente pobre, prevalecendo, na maioria das vezes, a quantidade dos alimentos sobre a qualidade. Naquela época se comia basicamente cereais, carne, peixe e vinho. Além da carne, que é a base por excelência da alimentação, se consumia muito os cereais e o vinho. Dentre os cereais tem-se o trigo, o milho, o centeio.
Na alimentação quinhentista portuguesa, era comum fazerem-se duas refeições principais: o jantar, que era feito entre dez horas e onze horas (antes do século XVI, ocorria mais cedo, entre oito horas e nove horas), e a ceia, entre dezoito horas e dezenove horas. O jantar era a refeição principal e mais forte do dia. No jantar da nobreza, o número de pratos servidos era em média três, sem contar sopas, acompanhamentos ou sobremesas. Na hora da ceia, serviam-se em média dois pratos ou até mesmo um.
Muitos utensílios, hoje tão comuns nas mesas atuais, não existiam naquela época ou eram de pouquíssimo uso: os pratos não foram utilizados durante muito tempo no período quinhentista português. Comiam-se carnes e peixes sobre grandes metades de pão, de forma arredondada, postos em frente de cada conviva. Para as sopas, ‘pão embebido no caldo’, e outros alimentos líquidos, usavam-se escudelas de madeira ou prata. Se fosse de barro, denominavam-se tigelas. Mais tarde, essas escudelas vão ser utilizadas também para servirem os alimentos sólidos. Cada escudela servia para dois convivas, sentados lado a lado. Também não existiam garfos, daí a necessidade de lavar impreterivelmente as mãos antes e após as refeições. Mais tarde, com o emprego do garfo, torna-se menos higiênico e rotineiro o fato de lavar as mãos por não ser mais “tão necessário”. As facas eram muito utilizadas, porém cada conviva levava consigo a faca que iria utilizar para cortar seus alimentos. Muito raramente elas eram distribuídas. Para beber, utilizavam-se os vasos, que eram uns ‘copos mais largos e mais pesados que os de hoje’, sendo necessário segurá-los com ambas as mãos. Vasos ainda maiores eram denominados grais e tagras. Podem citar-se ainda: copas ‘para servir líquidos quentes’ (tapadas por sobrecopas), púcaras e pucarinhas de barro ‘espécie de bacia, munidas de asas’.
O discurso das receitas culinárias
quinhentistas
em confronto com as receitas atuais
Para a apresentação do discurso culinário, escolheu-se a receita de almôndegas, que são aqueles bolinhos de carne picada, cozido em molho espesso. Uma palavra de origem árabe (albondega), documentada na língua portuguesa desde o séc. XVI. Porém, O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, apesar de pertencer a este período, utiliza outra lexia para as almôndegas: boldroegas. Esse termo não é dicionarizado, mas segundo Giacinto Manupella (MANUPELLA, 1986), essa lexia seria o cruzamento de beldroega ‘planta alimentícia bem conhecida do povo’ com bodega ‘comida grosseira’.
Vale lembrar que o receituário de cozinha em questão é um discurso de uma mulher medievalista, letrada e culta, conhecedora do grego e latim.
O discurso dos receituários de cozinha tem uma estrutura regular que pode variar de uma época para outra conforme observaremos a seguir.
Atualmente, a grande maioria das receitas culinárias é disposta em duas partes: ingredientes e modo de fazer ou modo de preparo. No período quinhentista, essas mesmas receitas eram escritas em um único parágrafo, onde os gêneros alimentícios e os utensílios mais pareciam seres vivos cheios de tratamentos especiais. Assim, encontraremos verbos que não são comuns na culinária atual.
O verbo tomar[1] (tomarão, tomem, tomareis...) predomina no início da maior parte destas receitas: tomaraõ a carne de porco ou de carneiro..., tomareis ho peito.... Os ingredientes se “tomavam”, para em seguida “deitá-los[2]” ou “afogá-los[3]” ou quem sabe ainda “pisá-los[4]” ou “abafá-los[5]”. Isso demonstra um pouco da dificuldade lexical em analisar textos antigos uma vez que os significados das palavras à época nem sempre são coincidentes com os atuais. Mas essas questões semânticas e lexicais não são o mais importante aqui.
Tanto nas receitas medievais, quanto nas atuais, predomina o discurso imperativo: Tomaraõ a carne de porco.... / Limpar-se-ão dois arráteis de carneiro da perna.... / Limpos de pele..., picam-se com 115g de toucinho.... / Misture 1 kg de carne de perna de carneiro...
Outro aspecto importante é a utilização das unidades de pesos e medidas. Nos séculos passados, pesavam-se ou mediam-se os alimentos com arráteis, onças, alqueires, arrobas...: tomaraõ meyo alquejre de poo de farynha... /...e tomaraõ hu arratal dacucare... /... huua arroba de carne de porquo dos lombos e das pernas... /... e meya omca de crauo e de gimgiure.... Os utensílios utilizados para medidas eram, além das colheres, os tachos, púcaros, escudelas: tomaraõ huua escudella de acuquar.../... e huu pucoro de agoa quete /...E teraõ hu tacho dagoa feruemdo... Hoje utilizamos na maioria o quilograma e os utensílios de medidas são as colheres, xícaras ou ainda os copos.
A partir da receita XXVII do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria pode-se observar os aspectos mencionados acima.
Esta he a rrecejta das boldroegas
r. tomaraõ a carne de porco ou de carneiro muyto gordo
q naõ leue osos e picalaaõ muyto meuda e teraõ
acola a farinha peneyrada per hua peneira
de seda e teraõ dez ou doze gemas dovos duras
e etaõ meteraõ e cada pilouro tamanho co-
mo pela de jugar de carne picada e huã je-
ma dovo e etaõ efarinhado aquele pilouro
na farinha e etaõ deytalosam detro nhuã pane-
la de mãteyga q este feruendo sobre as brasas
ou taõbem caldo de carneyro muyto gordo mestu-
radocõ mãteyga e deytarlheaõ hus poucos
de cheyros atados eteyros detro e etaõ aba-
faraõ esta panela cõ hu testo e rriba e am-
de dar huã volta a panela de maneira q
naõ quebrem as pelas e amnas de deytar cõ a-
quele qualdo basto nhu prato de maneira
q naõ se quebren e aõde ter gosto destes adu-
bos.s. crauo e asafraõ pimenta e gegibre
e se o caldo he pouco seuaõno cõ o caldo das
outras panelas /
Leitura Modernizada:
Esta é a rrecejta das boldroegas
rTomaraõ a carne de porco ou de carneiro muito gordo,
quenão leve ossos, e picá-la-ão muito miúda e terão
acolá a farinha peneirada por uma peneira
de seda, e terão dez ou doze gemas de ovos duras;
e então meterão em cada pelouro tamanho co-
mo péla de jogar de carne picada e uma ge-
ma de ovo, e então, enfarinhado aquele pelouro
na farinha e então deitá-los-ão dentro numa pane-
la de manteiga que esteja fervendo sobre as brasas,
ou também caldo de carneiro muito gordo mistu-
rado com manteiga e deitar-lhe-ão uns poucos
de cheiros atados inteiros, dentro. E então aba-
farão esta panela com um testo em riba e hão-
-de dar uma volta à panela de maneira que
não quebrem as pélas, e hão-nas de deitar com a-
quele caldo basto num prato de maneira
que se não quebrem, hão-de ter gosto destes adu-
bos, isto é, cravo e açafrão, pimenta e gengibre.
Se o caldo é pouco, cevam-no com o caldo das
outras panelas.
Em uma leitura modernizada, houve a pontuação do texto, assim como a modernização da grafia do mesmo.
Essa mesma receita encontra-se no século posterior ao Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, a Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues (RODRIGUES, 1987), primeiro livro impresso da culinária portuguesa, cuja edição de 1987 traz a receita da época e a leitura modernizada da mesma, inclusive com as conversões necessárias para as unidades de peso e medida que existiam à época e diferem das medidas atuais. Aqui já se utiliza a lexia almôndegas.
A receita do séc. XVII não difere da forma discursiva do séc. anterior. Porém, a modernização da receita na edição do séc. XX, deixa claro as divergências discursivas de uma época para outra.
Séc. XVII:
Almôndegas
Limpar-se-ão dois arráteis de carneiro de perna, dos nervos e peles
E picar-se-ão com uma quarta de toucinho e cheiros; como estiver
Picado deitem-lhe três ovos, um miolo de pão ralado, adubos, vina-
gre e sal. Feito isto pique-se outra vez tudo muito bem picado, tenha-
se ao lume uma tigela, cozam-na nela as almôndegas em lume
brando, as quais se farão do tamanho que quiserem. Tornem-se a
temperar com todos os adubos e coalhe-se com três gemas de ovos
e com sumo de limão. Tenha-se no prato, que estará untado com
as almôndegas com o caldo grosso, e logo por cima canela e limão
e lavar-se-ão ã mesa.
Assim também se fazem de galinha.
Séc. XX:
Limpos de pelos e nervos 920g de carneiro de perna, picam-se com 115g
de toucinho e um ramo de cheiros; juntam-se três ovos inteiros, miolo de
um pão ralado, adubos, vinagre e sal; pica-se tudo novamente, formam-se
pequenas bolas que se levam a cozer em lume brando, engrossando-se com
três gemas de ovos e temperando-se com sumo de limão. Coloca-se este pre-
parado num prato untado com manteiga e forrado com fatias de pão; polvilha-se com canela e salpica-se com sumo de limão.
Do mesmo modo se fazem almôndegas de galinha.
Para concluir a comparação da estrutura destes receituários, mostra-se aqui uma receita da época atual, cujo discurso permanece imperativo, porém mais simplista e técnico, com essa estrutura já alterada (ingredientes / modo de fazer), conforme já se fazia desde o séc. XIX.
ALMÔNDEGAS
INGREDIENTES
½ quilo de carne moída
50grs de toucinho defumado
100grs de pão amanhecido
1 xícara de leite
2 ovos
1 xícara de caldo de carne
Temperos habituais
MODO DE FAZER
Passe pela máquina de moer
a carne e o toucinho. Tem-
pere-os com cebola, sal, alho,
temperos verdes e pimenta-
do-reino.
Deixe de molho no lei-
te o pão amanhecido e quan-
do ele estiver bem mole jun-
te-o ã carne temperada.
Acrescente dois ovos e amas-
se tudo bem. Em seguida
faça bolinhas de tamanho que
preferir e frite em gordura
quente. Faça depois um bom
refogado juntando-lhe uma
xícara de caldo de carne e
nele deite as almôndegas fri-
tas. Retiradas as almônde-
gas, deixe o molho engrossar
um pouco mais e com ele
cubra as almôndegas.
Considerações Finais
As palavras e os seus sentidos mudam de acordo com a época, com o local, com a faixa etária etc. Assim como a forma de discursar está em constante processo de transformação. Apenas ao olhar para uma receita da cozinha medieval, fica explícito o quanto ela difere da estrutura discursiva das receitas atuais.
Uma análise mais detalhada do funcionamento discursivo destas receitas, com certeza trará à tona inúmeros aspectos sociais e históricos da época estudada.
O objetivo desta comunicação é expor a necessidade, importância e utilidade de se analisar o discurso destas receitas, assim como a necessidade de explorar mais essa perspectiva tão jovem e dinâmica que é a Análise do Discurso.
Espero ter contribuído, ainda que simploriamente para o estudo da língua portuguesa através da demonstração do discurso em um corpus específico: a culinária quinhentista.
Referências Bibliográficas
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CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1968.
FERRO, João Pedro. Arqueologia dos hábitos alimentares. Introdução de A H. de Oliveira Marques. Lisboa: Dom Quixote, 1996.
FLANDRIN, Jean-Louis, MONTANARI, Massimo. História da alimentação. Trad. de Luciano Vieira Machado e Guilherme João de Freitas Teixeira. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
GAMA, Nilton Vasco da, TELLES, Célia Marques. Uma Contribuição ao estudo do “Tratado de cozinha portuguesa” (mss. I-E-33 da B.N.N.). Salvador: DLR/IL/ UFBA, 1973. Datilografado.
GOMES FILHO, Antonio. Um Tratado da cozinha portuguesa do século XV. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.
MANUPELLA, Giacinto. Livro de cozinha da Infanta D. Maria; códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Prólogo, leitura, notas aos textos, glossário e índices de Giacinto Manupella, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.
MARQUES, A. H. Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa; aspectos da vida cotidiana. Lisboa: Sá da Costa, 1987.
RODRIGUES, Domingos Arte de cozinha. Leitura, apresentação, notas e glossário por Maria das Graças Pericão e Maria Isabel Faria. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.
VELOSO, Carlos. A alimentação em Portugal no século XVIII nos relatos dos viajantes estrangeiros. Coimbra: Minerva, 1992.
[1] Apanhar, ter em mãos.
[2] lançar, colocar, pôr.
[3] Refogar, passar os temperos por gordura quente.
[4] Esmagar, triturar.
[5] Cobrir para evitar a evaporação, conservando, dessa forma, o calor.
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