Formas de Tratamento no Recôncavo
Baiano
Um Estudo da Realidade Lingüística
em Santo Antônio de Jesus
Ludinalva Santos do Amor Divino (UFBA)
INTRODUÇÃO
A variação lingüística, a cada dia, remete à pesquisa de itens lingüísticos passíveis de investigação e análise. Como exemplos, podemos citar as formas “nós” e “a gente” que se destacam como pronomes de primeira pessoa do plural, bem como as formas “tu” e “você” que se alternam nas interlocuções.
Muitos estudos têm demonstrado as diferenças entre o português brasileiro e o português europeu, particularmente no que se refere ao quadro pronominal, considerando-se que os critérios que condicionam os usos de diferentes formas de tratamento evidenciam crenças e valores de uma determinada cultura.
A forma “você” foi originada do pronome de tratamento “Vossa Mercê” que em fins do século XVI, ainda se mantinha como forma de tratamento respeitoso que era utilizado para dirigir-se ao rei, mais tarde a fidalgos, infantes, bem como, à classe burguesa urbana, passando assim, por um rápido processo de vulgarização. Atualmente, é o pronome de 2ª pessoa mais produtivo na variante brasileira do português, tanto escrito quanto falado. Dessa forma, esse pronome já está integrado aos pronomes pessoais e em algumas regiões, vem sendo substituído pelo tu ou convive com o”tu” sem a marca de segunda pessoa.
Apesar de os estudos mostrarem tendência ao uso de você ao invés de tu, observa-se que no interior do Nordeste, o “você” não substitui o “tu”, pelo menos, nas situações informais.
Quanto à forma “a gente”, embora encontrada em larga escala na linguagem coloquial, as gramáticas não a registram e nem a legitimam no quadro pronominal. Apenas há observações, classificando-a ora como pronome indefinido, ora como pronome pessoal ou de tratamento. Está claramente perceptível a introdução da forma “a gente” no sistema dos pronomes, mais uma modificação, dentre outras, que vem acarretando reformulações no sistema lingüístico.
Este estudo é resultado de um trabalho-piloto que pretendemos analisar a coocorrência das formas de tratamento tu/você e nós/a gente na comunidade de Santo Antônio de Jesus. Embora ainda em andamento, a pesquisa permite antever que o uso do pronome a gente é de grande freqüência em elocuções informais, com o verbo na 3ª pessoa do singular.
O corpus foi constituído por oito amostras de fala resultante das respostas de um questionário pré-elaborado. Utilizaremos 3 faixas etárias. A escolaridade será um fator controlado.
Vale afirmar que os resultados são apenas hipóteses explicativas, buscaremos ainda avaliar os diversos desdobramentos a partir de uma pesquisa maior.
HIPÓTESES LEVANTADAS
Quando optei por estudar os pronomes de tratamento na região do Recôncavo, especificamente em Santo Antônio de Jesus, foi pelo fato de acreditar que o pronome “tu” era mais usual na região interiorana do que o pronome “você”. Nas interlocuções entre pessoas íntimas e em momentos informais o uso do tu prevalece, o que dá indícios de que o “tu” é usado para pessoas próximas e o “você”, para pessoas mais distantes e em situações formais.
Acredita-se que a diferença no uso dos pronomes “tu” e “você” está subordinada a faixa etária. O pronome “tu” é usado pela população mais velha, com maior escolaridade e em momentos informais. Já o pronome “você” é usado pela população mais jovem, com maior escolaridade e mais formalidade.
Busca-se identificar se há uma correlação na variação entre nós/a gente e tu/você, uma vez que em ambos os casos, a mesma forma verbal está sendo utilizada (terceira pessoa do singular).
OBJETIVOS DA PESQUISA
Objetivo geral
O objetivo central desse trabalho é certificar quais as formas de tratamento utilizadas pelos interlocutores santoantonienses, buscando elementos na interlocução que revele a escolha do falante por determinada forma, bem como verificar como se distribuem as variantes “tu” e “você” entre os diversos grupos de fala.
Objetivos específicos
· Analisar se as variáveis sociais: faixa etária, gênero, escolaridade são relevantes para a escolha do uso de nós/a gente.
· Verificar como se comportam os fatores de natureza social e os fatores de caráter lingüístico neste processo de variação.
· Verificar se os índices de ocorrência de cada variante, evidenciados na análise quantitativa, mostram uma concentração em torno de um determinado grupo de falantes.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Pesquisando nas gramáticas tradicionais sobre as formas de tratamento, percebemos que os gramáticos tradicionais não apresentam uma significativa contribuição para essa temática, encontramos apenas uma lista de pronomes de tratamento de maneira breve, às vezes acompanhada de um restrito comentário ou de nenhuma justificativa acerca das diferentes formas de uso.
De acordo com Cunha e Cintra (1985: 284), no português do Brasil, o uso do “tu” se restringe ao extremo sul do país e em algumas localidades da região norte, sem demarcações exatas. Na maioria do território brasileiro o “tu” foi substituído por “você” como forma de intimidade. Você também se emprega fora do campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior.
Infante (2001: 356) coloca como uma observação à parte para as formas de tratamento: o senhor, a senhora, você e vocês. O senhor e a senhora são empregados no tratamento cerimonioso, você/vocês, no tratamento familiar. Segundo ele,as formas você/vocês são largamente empregadas no português do Brasil praticamente substituindo as formas “tu” e “vós”. Também chama a atenção para o fato de que esses pronomes de tratamento utilizam o verbo e outros pronomes de terceira pessoa.
Mais recentemente Paredes (2003), reunindo amostras de fala oral, confirma o retorno do pronome “tu” à fala carioca, o que aponta para uma mudança em curso nesse dialeto carioca. Nesse estudo, ela destacou a variável gênero/sexo. A influência do sexo do falante precisa ser analisada com certa prudência nos processos de mudança lingüística, mesmo porque os homens detiveram o predomínio nos usos do pronome “tu”, especialmente os mais jovens, na faixa dos 20 anos. Todavia, a última faixa etária não apresentou nenhuma ocorrência do sujeito “tu” mais verbo na terceira pessoa. Essa pesquisa de Paredes comprova um pressentimento exteriorizado pelos autores em peças teatrais, na segunda metade do século XX, em relação ao retorno do pronome “tu” acompanhado de verbo na terceira pessoa do singular, em uso não padrão.
Barrenechea e Alonso (1987, apud PAREDES, 2003), contudo, acrescentam que o aumento de sujeito explícito de segunda pessoa resulta da necessidade do falante envolver o ouvinte, do desejo de manter contato próximo, sendo assim utiliza das repetições de pronomes que a ele se refiram. Temos a forma pronominal “tu” que o falante utiliza para marcar a referência ao interlocutor e o pronome “você”, reduzido ao clítico “cê” para chamar a atenção do interlocutor. Segundo Paredes, através do pronome “tu” o falante estaria resgatando um monossílabo tônico para competir com vantagem, com o clítico “ce” na função de atrair a atenção do interlocutor e compensar a perda de corpo tônico que se vem assinalando.
Alguns fatores devem ser considerados para explicarmos o uso do “tu”, tuteamento, em algumas áreas do Brasil e não em outras, a saber: o povoamento tardio e maciçamente luso-açoriano do Sul e do Maranhão; no Sul, a presença do “tu” nas falas dos alemães e dos italianos, com um longo período de isolamento dos imigrantes; uma subsistência bastante forte dessa forma no português europeu.
Pesquisando sobre a região de Florianópolis, Furlan (1987) certificou-se da presença predominante do pronome "tu”. O resultado consistiu em cerca de 60% de uso do “tu”, 20% de uso misto de “tu” e “você” e 19% de uso de você, na localidade de Pocala.
Pesquisas realizadas nas três capitais do sul mostram a ausência de “tu” em Curitiba, sua concorrência com “você” em Florianópolis e Porto Alegre. Em Florianópolis, o “tu” é menos usual que “você”, porém tende a aparecer mais com a flexão verbal marcada, enquanto em Porto Alegre, “tu” é mais freqüente, mas a flexão verbal é mais rara (Lopes, 2003). Ainda assim, torna-se necessário uma pesquisa mais detalhada dessa variação nas regiões norte e nordeste.
De acordo a esses estudos feitos no Sul do país, podemos perceber que há uma diferença semântica significativa entre os dois pronomes e as opiniões sobre o uso das formas “tu” e “você” convergem para o seguinte resultado: o “tu” implica em solidariedade ou aproximação e “você” denota formalidade, implicando num tratamento mais distanciado com aquele com o qual não se tenha muita intimidade. O pronome “tu”, no dialeto florianopoliano apresenta variações, ora ele aparece flexionado, ora ele se compatibiliza sem a flexão verbal de segunda pessoa, ora sem a de terceira pessoa. O pronome “você”, semanticamente, aproxima-se do pronome senhor, por acarretar respeito e formalidade.
POPULAÇÃO E AMOSTRAGEM
Nesse estudo, utilizaremos para análise um corpus a ser constituído com dados coletados na cidade de Santo Antônio de Jesus, uma das mais importantes cidades do Recôncavo Baiano, situada na Micro-Região do Recôncavo Sul. Foi emancipada politicamente no dia 29 de maio de 1880, possui aproximadamente 83.000 (oitenta e três mil) habitantes, com extensão territorial de 252 km2, está situada à margem da BR 101, distante de Salvador 187 km , por via terrestre, e 90 km, por via marítima.
No século XX, Santo Antônio de Jesus é marcada pelo desenvolvimento da cidade em todos os sentidos: na parte administrativa, cultural, industrial e, finalmente, comercial, o qual viria, anos mais tarde, a se notabilizar. Em 1952, foi inaugurada a estrada de ferro, da qual Santo Antônio de Jesus seria fim-de-linha durante dez anos. Com isso o comércio local tomou grande impulso e contribuiu para um significativo crescimento do número de habitantes da cidade.
O corpus será constituído de 18 amostras de fala resultante das respostas de um questionário pré-elaborado. Utilizaremos 3 faixas etárias: faixa I (15 – 35 anos); faixa II (36 – 55 anos e faixa III ( acima de 56 anos). A escolaridade será um fator controlado (analfabetos,ensino fundamental e ensino superior), uma vez que direta ou indiretamente, a participação da escola acaba sendo decisiva como condicionante do comportamento lingüístico.
RESULTADOS FINAIS
Por meio do estudo piloto, ficou provado que as formas de tratamento senhor/senhora foram utilizadas como indicação de respeito e prestígio, uma vez que as pessoas cujos cargos são considerados de “status” pela sociedade foram tratadas, de forma geral, por senhor/ senhora. Observamos também um amplo uso da forma pronominal “a gente” na função de sujeito indeterminado, em estruturas nas quais prevaleceu o uso do verbo no singular e, por fim, os pronomes “tu” e “você” foram usados em interlocuções entre pessoas íntimas, bem como em situações informais. Nas amostras, o pronome “tu” não concordou com a segunda pessoa verbal.
Como se pode ver, o pronome “você” convive com o pronome “tu”, na comunidade em estudo. Lembraremos ainda que os resultados são apenas hipóteses explicativas, buscaremos avaliar os diversos desdobramentos a partir de uma pesquisa maior. Mais adiante, na ampliação desse corpus, utilizado para a referida pesquisa, analisaremos os dados estatísticos por meio do pacote de programas computacionais VARBRUL. Este estudo visa contribuir para a compreensão de um traço representativo do português brasileiro, bastante marcado socialmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Celso & Cintra, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1985.
FARACO, Carlos Alberto. “O tratamento você em português: uma abordagem histórica”. In: Fragmenta. Curitiba, 13:51-82, 1996.
FREITAS, Judith. Os pronomes pessoais na norma culta e nos textos pedagógicos. Estudos Lingüísticos e Literários. (11): 133-145. UFBA, 1991.
INFANTE, Ulisses. Cursos de Gramática aplicadas aos textos. São Paulo: Scipione, 2001.
LOPES, Célia Regina dos Santos & DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. “De Vossa Mercê a você: análise da pronominalização de nominais em peças brasileiras e portuguesas setecentistas e oitocentistas”. In: BRANDÃO, Silvia Figueiredo & MOTA, Maria Antônia (orgs). Análise Contrastiva de Variedades do português. Primeiros estudos. Rio de Janeiro: In-Fólio, 2003, p. 61-75.
PAREDES, Vera Lúcia. “O retorno do pronome tu à fala carioca”. In: RONCARATI, Claúdia & ABRAÇADO, Jussara. (orgs.) Português brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, p. 160-169.
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