A (dis)concordância do verbo “pingar”

Bruno de Assis Freire de Lima (PUC-Minas)

 

Ô, a palavra é o som
A palavra ê
A palavra é o dom
A palavra é o bem dizer

(Moraes Moreira)

 

INTRODUÇÃO

É evidente a constatação de inúmeros casos de variação lingüística no que tange à concordância verbal. Não é necessário ir longe em revistas, jornais, outdoors além das conversas corriqueiras para se perceberem desvios de natureza sintática.

A explicação para esses fenômenos, no entanto, se resume a uma leitura sintática a partir da tradição gramatical, reduzindo, dessa forma, a realização lingüística a uma análise clássica, onde se desconsideram todos os estudos referentes ao discurso, como a própria semântica e pragmática.

Quando se trata da concordância verbal em construções passivas, sobretudo a chamada “sintética” pela tradição gramatical, os dados são ainda mais instigantes. De um lado, o bom senso do falante opta por construção do tipo Aluga-se quartos para estudantes da PUC e, de outro lado, a tradição gramatical recomenda construções do tipo Alugam-se quartos para estudantes da PUC.

Neste estudo, a partir da ilustração supra sobre a concordância na voz passiva sintética, pretendo aludir aos estudos clássicos da gramática em um primeiro momento, passando por estudos de natureza discursiva para, enfim, adentrar ao proposto pela Teoria Temática – substanciada pelo trabalho de Noam Chomsky – para, dessa forma, explicitar conceitos e análises de natureza semântica que justifiquem o emprego da variação não recomendada pela tradição gramatical.

Com tal propósito, são retomadas as considerações de ilustres gramáticos da língua portuguesa, como Evanildo Bechara (2001) e Ernani Terra e José de Nicola (1997) para, a partir de então, ser feita uma breve consideração das postulações de Manuel Said Ali (1908), precursor das críticas ao modelo clássico da sintaxe, passando por Noam Chomsky (1999) para, enfim, adentrar nas considerações dos estudos e análises semânticos propriamente ditos com Gennaro Chierchia (2003).

 

O MODELO CLÁSSICO

A tradição gramatical, no que diz respeito às orações em voz passiva sintética, aponta para uma prática lingüística que não condiz com a realidade de fala da grande maioria dos falantes da língua portuguesa – ilusória, portanto. Salvos raríssimos casos e em situações de extrema formalidade são encontradas – proferidas e entendidas – construções oracionais que comportem aquilo que Saviolli – e a grande maioria dos gramáticos tradicionais – chama de “sujeito plural” em presença de verbo transitivo direto igualmente no plural (Cf. Emprestam-se livros e revistas; donde livros e revistas ocupar a posição de sujeito – óbvia para esses gramáticos).

 

O que diz Bechara

Bechara (2001), à p. 563, quando trata da questão da concordância verbal na passiva pronominal – ou sintética – diz que:

A língua padrão pede que o verbo concorde com o termo que a gramática[1] aponta como sujeito:

Alugam-se casas.

Vendem-se apartamentos.

Fazem-se chaves. (...)

Observação: Se o verbo estiver no infinitivo com sujeito explícito, o normal é usar o infinitivo flexionado (...). Todavia aqui e ali bons escritores deixam escapar exemplos com infinitivo sem flexão:

Basta ver o que este bom povo é para se avaliar as excelências de quem assim o educou.

Evanildo Bechara aponta um caso em que o uso padrão é desrespeitado quando do uso da passiva pronominal diante de verbos infinitivos, não obstante é relevante lembrar que há inúmeros casos em que a variante não padrão também é encontrada com bons autores[2] em sentenças formadas a partir de verbos não infinitos.

O autor não aprofunda nas discussões acerca da concordância diante da chamada “passiva sintética”, mas assume claramente a postura tradicional de que, nessas construções, há sujeito explicitamente marcado no sintagma, a partir do qual se dá a concordância verbal.

 

O que dizem Ernani e Nicola

Ernani Terra e José de Nicola se esquivam do assunto em seu capítulo sobre concordância verbal. À p. 142, dizem claramente que:

Quando o verbo vier acompanhado da partícula apassivadora se[3], terá sujeito expresso na oração e, portanto, concordará normalmente com o sujeito.

Alugam-se casas de veraneio.

Reformam-se ternos.

Vendeu-se um carro em bom estado.

Acrescentam, ainda, em uma observação que:

Caso a palavra se seja índice da indeterminação do sujeito, o verbo permanecerá na 3ª pessoa do singular.

Precisa-se de pedreiros.

Confia-se naquelas pessoas.

Em seu capítulo sobre a função do “se”, Ernani e Terra, no item 3, à p. 177, afirmam que o “se” será partícula apassivadora “quando se junta a verbo que pede objeto direto, apassivando-o. Ex Compram-se moedas antigas.” (grifos meus).

Interessante notar a incoerência que, internamente, se estabeleceu nas postulações entre os capítulos que tratam da concordância e das funções do “se”. Claramente é dito que o “se” se junta a VERBO QUE PEDE OBJETO DIRETO, portanto, o que é necessário na oração além de um objeto direto? Se então o verbo pede objeto direto, como teremos “sujeito expresso na oração” e “omissão desse objeto”, conforme as próprias palavras desses gramáticos?

Ainda assim é notável outra observação dada por eles sobre a função do “se”, logo em seguida – interessante – ao que propõem ser a partícula apassivadora:

Quando a palavra se funcionar como partícula apassivadora, teremos uma oração na voz passiva sintética, sendo sempre possível sua conversão para a voz passiva analítica.

Observe:

Moedas antigas são compradas.

O resultado da prova foi divulgado.

Apesar de citarem a chamada “conversão de vozes”, os autores não explicitam como a mesma é feita, nem tampouco os critérios e sua natureza (semântico, sintático, discursivo) que são usados para tal fim.

 

O ANTIMODELO CLÁSSICO

A análise lingüística (psicológica) de Said Ali

Os argumentos apresentados por Manuel Said Ali em seu livro Dificuldades da língua portuguesa, ainda que datem de 1908, suscitam, indubitavelmente, a necessidade de maiores discussões acerca da problemática referente ao uso e emprego do pronome “se” apassivador em sintagmas verbais (SV).

O estudo sistemático da semântica enquanto ciência se dá a partir da segunda metade do século XX. Said Ali, não obstante, já apontava a necessidade de os fatos lingüísticos serem concebidos como reflexo do “psicológico” (o que, posteriormente, na lingüística, foi estabelecido como semântica).

Para elucidar tal observação, basta tomar, em primeira instância, que, semanticamente, o proposto pela gramática tradicional para justificar concordâncias verbais em que Sintagmas nominais (SN) concordem em número plural com verbos (V) não se justifica. Bom exemplo vem do próprio Said Ali para casos como i. Aluga-se esta casa (SV singular + SN singular) em contraste com ii. Esta casa é alugada (SN singular + SV singular), a partir do qual a explicita diferença semântica fica evidente para qualquer falante: uma pessoa que pretende alugar uma casa, jamais entenderia que o enunciado ii comporta, em estrutura profunda, que há uma casa disponível para ser alugada. Sobre tal transformação proposta pela gramática tradicional, Said Ali é categórico:

Contradizem-se, todavia, os que argumentando se prevalecem de taes passagens; porque, de duas uma: ou não se deve, segundo sentenceiam, empregar a “partícula apassivadora” com agente claro, e portanto desconfiaremos dos casos em contrário; ou então a regra nada vale (1908: 162)

A partir da ilustração das divergências semânticas entre as vozes verbais, preconiza Said Ali que o pronome “se” seja analisado como um índice que indetermina o sujeito, dado o falante inferir a existência de um sujeito desconhecido que está alugando uma casa determinada e, por algum motivo, se queira ou se precisa omitir esse sujeito.

A discussão de Said Ali, no entanto, não se embasa em nenhuma teoria lingüística formalmente estabelecida: o lingüista simplesmente vale-se do bom senso contrastivo entre os demais SVs diante de pronome se em que o sujeito é semanticamente indeterminado (basta observar, por exemplo, casos como Precisa-se de emprego ou Vive-se tranqüilo por aqui.)

 

A semântica e a teoria temática

A semântica visa estudar o significado das expressões das línguas naturais e procura responder como são processadas essas expressões e como os sentidos são formados pelos falantes.

Várias relações de significação são processadas pelos usuários de línguas naturais, estabelecendo nexos de significado nos enunciados, como o caso específico dos temas.


 

Gênese chomskiana

Em trabalho posterior ao de Said Ali, Chomsky (1999), traça a Teoria Temática, a partir da qual se estabelecem critérios cognitivos para a formação de sentenças. Grosso modo, a Teoria Temática afirma que cada constituinte de uma sentença possui traços semânticos que o separam ou aproximam de outros constituintes. (Cf. MIOTO, 2004: 119).

Com as considerações sobre a Teoria Temática, Chomsky propõe que os enunciados sejam constituídos de elementos lexicais articulados entre si, por haver uma relação de adequação entre esses elementos sobre a Forma Lógica. Desta forma, a cada constituinte do enunciado é atribuída a lógica fundamental de ser “argumento de” outro elemento constituinte, no qual se fundamenta para ser lexicalmente selecionado. Assim sendo, os elementos que constituem a sentença não são aleatoriamente selecionados pelo falante, mas apresentam relação semântica (nem todo elemento sentencial admite qualquer argumento) a qual permite haver correspondência entre as estruturas profunda e superficial.

A Teoria Temática, portanto, impõe que a relação entre os elementos constituintes do enunciado e as funções de entrada do verbo desse enunciado seja uma relação fechada a partir da qual todos os argumentos recebem uma função temática e todas as funções temáticas são atribuídas. Com essas considerações, haverá uma relação biunívoca entre cada elemento que constitui a sentença e o argumento que o mesmo seleciona. Dessa maneira, cada função temática corresponde a apenas um argumento e vice versa[4].

 

Os papéis temáticos

O verbo geralmente é o núcleo do encadeamento temático de uma sentença. Os elementos dotados de significação e que se ligam a este núcleo são chamados de argumentos. O papel temático de um argumento é definido “como sendo o grupo de propriedades atribuídas a esse argumento a partir dos acarretamentos estabelecidos por toda a proposição em que esse argumento encontra-se” (CANÇADO, 2003: 99)

Vários são os papéis temáticos que os argumentos podem assumir. Entre eles – e que interessam, especificamente a este estudo – estão citados em Cançado, 2003:

i. Agente: “Função desempenhada por um ente animado que é responsável, voluntária ou involuntariamente, pela ação ou pelo desencadeamento dos processos” (Fillmore, 1968); “Elemento controlador da ação” (Halliday, 1967)

ii. Paciente: à “Elemento que é modificado no processo ou na ação” (Fillmore, 1968)

Chierchia (2003) resume a explanação, trazendo também a noção de TEMA enquanto papel temático, afirmando que:

O agente é o argumento que, em virtude da posição que ocupa, calha de fazer alguma coisa; o tema é o argumento que “sofre” esse “alguma coisa”. Os conceitos de tema e de agente são, portanto, definidos a partir de conseqüências como as representadas em Eva beija Leo. à BEIJAR (Eva, Leo) (p. 526s)

Em seus estudos, o autor é categórico numa postulação aparentemente óbvia – sim, aparentemente óbvia, pois a mesma não é observada pelo tradicionalismo gramatical – de que cada argumento constituinte do sintagma desempenha somente um papel temático. Cabe a ressalva de que Jackendoff (1972) nega essa observação, dado haver a existência de elementos oracionais que não desempenham papel temático algum. O tradicionalismo gramatical, no entanto –e ao que diz respeito ao assunto tratado nesse estudo – desconsidera a relação entre o constituinte oracional e os papéis temáticos, sejam eles intrínsecos ou não.

 

A TRANSITIVIDADE VERBAL

Um exemplo bastante prático de como relacionar os postulados de Said Ali, Chomsky e de toda a Teoria Temática com o propósito de críticas ao tradicionalismo gramatical se dá a partir de uma breve análise do verbo alugar (analisado por Said Ali em 1908). Na Teoria Temática, tal verbo recebe o traço de [+ ação], exigindo dois argumentos: um sujeito que seja [+ volitivo] e um complemento verbal que esteja expresso na sentença. Em esquema, temos:

[JoãoED1 [alugar V] [a casa ED2]][5]

Por meio desse esquema, é possível chegar à conclusão aparentemente óbvia de que o verbo alugar não somente seleciona ED1 e ED2, mas, para que haja o real processamento da informação, tanto ED1 quanto ED2 necessitam estar in praesencia na sentença.

A atribuição de traços semânticos, contemplada na Teoria Temática, para os elementos constitutivos da sentença, seria argumento suficiente para justificar que em “aluga-se casas” é atribuído um sujeito agente [+ humano] que pudesse alugar as casas, sendo, portanto casas, o objeto a ser alugado.

A tradição gramatical divide os verbos em grupos distintos pela mera classificação entre transitivos, intransitivos e “de ligação”. A justificativa de tal classificação se dá pelo esvaziado argumento de uma suposta carga semântica inerente aos verbos, como em Cegalla, (2005), por exemplo, que categoriza verbos intransitivos como aqueles que não precisam de complemento, por terem sentido completo; ao passo que os verbos transitivos são os que, para se integrarem ao predicado, necessitam de outros termos e ainda os verbos de ligação que meramente ligam ao sujeito uma palavra ou expressão predicativa.

Essas diferenças entre as categorias verbais se voltam para os estudos de Chomsky sobre a relação entre os constituintes sintáticos e semânticos de uma sentença. Assim, o que a tradição gramatical aponta como critério para a classificação dos verbos não é suficientemente capaz de explicar os mecanismos de seleção e combinação das estruturas lingüísticas, uma vez que, em cada enunciado, haverá um verbo, com determinadas diáteses, com cargas temáticas tais, que permitirá a seleção de argumentos tais, que resultará no enunciado, construto lingüístico que comporta duas faces: estruturas sintática e semântica, ambas indissociáveis.


 

O transitivo (?) “PINGAR”

É possível pensar em casos de verbos que, embora tradicionalmente classificados como transitivos diretos, seu elemento determinado na posição de objeto pode ser omitido sem transcorrer em transformações na estrutura profunda do enunciado, como, por exemplo, o verbo pingar:

iii. Maria pingou colírio.

iv. A torneira pingou.

Em iii, observam-se os traços: V pingar [+ ação], ED1 Maria [+volitivo], ED2 colírio – constituinte presente

Em iv, observam-se os traços: V pingar [+ação], ED1 A torneira [-volitivo], ED2 água – constituinte não presente

Como esquema representativo de tais construções, temos:

iii. [[MariaED1 [pingar V] [o colírio ED2]] ΘED3] ΘED4]]

iv. [[A torneiraED1] [pingarV] [ΘED2] [ΘED3]

Em iii, é possível atribuir papel temático a ED3 e a ED4 em que ED3 recebe o papel [+locativo] e ED4, [+ humano][6]. Algo semelhante a Maria pingou colírio nos olhos (ED3) de Maria (ED4) (ela mesma) ou Maria pingou colírio nos olhos (ED3) de João (ED4).

Interessante observar que o ED2 atribuído ao verbo pingar em iii, pré-define o ED3. Pingar colírio implica que seja nos olhos. Intencionalmente poderão ocorrer construções como iv. Maria pingou colírio no chão, ou no nariz sintática e semanticamente possível. A questão que se aborda, então, é a seguinte: se o complexo semântico pingar colírio pré-define o ED4 em iii, porque o mesmo fenômeno não ocorre em iv? A resposta a essa questão é bastante simples: sendo ED1 possuidor do traço [+ volitivo], ele pode modificar a função atribuída a ED2. Nesse caso, salienta-se, contudo, que não é possível o apagamento de ED3, sem o qual a sentença fica ininteligível ou toma sentido adverso a iv, todavia é possível o apagamento de ED4:

[[MariaED1 [pingar V] [óleo ED2]] no chãoED3] ΘED4]]

Em síntese, podemos pensar que a estrutura superficial de Maria pingou colírio remete somente a casos com ED3 definido (olhos, por exemplo). Assim, em esquema:

a. O ED2 (colírio) gera o argumento ED3 (olhos), mas nunca o ED3 (chão)

b. O ED1 (Maria) gera o argumento ED3 (olhos) ou o ED3 (chão)

Retomando o caso apontado em iv, infere-se o sentido do ED2 água pelo próprio conhecimento da função extralingüística do ED1: da torneira sai água, fato não comprovado por ED1 do enunciado iii: ED1 pode pingar inúmeras substâncias além de colírio, como água, mercúrio, álcool etc.

A comparação entre os casos de iii e iv se deve ao fato de ED2 de iv não pré-definir ED3, nem mesmo quando da relação com ED1 [-volitivo]. O SV de iv pode ocorrer na pia, no jardim, no tanque, na garagem[7] etc. ED2, por si só, não constitui argumento capaz de selecionar e pré-definir ED3. O mesmo ocorre em relação a ED1, que não seleciona ED3. Sintetizando:

a.  O ED2 (água), ainda que não presente na sentença, não gera o argumento ED3.

b.  O ED1 (A torneira) não gera ED3.

 

Ocorrência “não-padrão” do verbo pingar

O exemplo que segue foi retirado da web em uma página sobre relatórios de experimentos de alunos do curso de fisiologia animal:

v. “Pinga-se gotas de água quente (37ºC) no coração
afim de se observar as reações.”

Donde se notam os seguintes traços: V pingar [+ação]; ED1 gotas [+partitivo]; ED2 de água quente [+especificativo; – humano]; ED3 no coração [+locativo], a partir dos quais se extrai o esquema:

ED4] [[[PingarV] [[gotasED1] [de água quenteED2] [no coraçãoED3]]]]

Na análise profunda de v, é notado que V seleciona um argumento que possua traço [+volitivo], representado aqui por ED4 (Alguém para pingar as gotas de água quente no coração), uma vez que a torneira (como discutido anteriormente) não pode desempenhar a função ED4 estabelecida pelo SV de v.

A questão que surge, no entanto, é a seguinte: apesar de haver o óbvio distanciamento entre o estruturalismo no que tange a concordância verbal com o se apassivador e os postulados gerativistas para os constituintes da sentença, que papel temático recebe o pronome se?[8] Que fatores inerentes à língua ou a sua exterioridade induzem à variante não padrão?

São facilmente admitidos valores diferentes aos argumentos selecionados por ED2 de iii e de v. Enquanto que em iii, o ED2 colírio aponta para a seleção de ED3 com traço [+humano], em v, o ED2 de água quente não atribui o traço [+humano] a ED3.

Se em iii o SV pingar colírio [nos olhos] pode recair sobre ED1 (Maria que pinga colírio em ela mesma), selecionado por ED3, o mesmo não ocorre em v, uma vez que o ED3 no coração elimina qualquer possibilidade de ED4 (sujeito apagado) pingar as gotas de água quente em seu próprio coração[9].

Em síntese, é possível admitir reflexividade em ED1 de iii (ED1 agindo sobre ED4 que possui a mesma referenciação de ED1) ou a não reflexividade (ED1 agindo sobre ED4 que pode se referir a João, por exemplo); dado não comprovado com a sentença v, a partir da qual ED4 (apagado) age somente em ED3 de um suposto ED5 (coração da rã, por exemplo), mas nunca se inferindo esse ED5 como tendo a mesma referenciação de ED4 (Maria jamais poderia pingar água quente em seu próprio coração).

Destes dados é possível salientar que: em sentenças como v, pelos argumentos supracitados, há a existência de um sujeito não definido marcado pelo se que age sobre ED3 eliminando toda e qualquer possibilidade de reflexividade do SV sobre esse sujeito não definido.

Gerando a transformação proposta pela tradição gramatical:

VOZ PASSIVA SINTÉTICA

Pinga-se gotas de água quente no coração.

VOZ PASSIVA ANALÍTICA

Gotas de água quente são pingadas no coração.

Dispensado aqui explicitar e esgotar o proposto pela tradição gramatical para justificar a transformação das vozes verbais, novamente retomando os pressupostos iniciais de Said Ali, há uma evidente diferença semântica entre elas (até mesmo pelos novos papéis temáticos a serem atribuídos pelos elementos constituintes da voz passiva analítica).

Na estrutura profunda da VOZ PASSIVA SINTÉTICA, o processo desencadeado por seu SV é distribuído em um continuum temporal diferente ou não do momento de fala (Pinga-se gotas continuamente, ontem, hoje, amanhã, tempo não definido). Tal fenômeno, contudo, não ocorre na estrutura profunda da VOZ PASSIVA ANALÍTICA. O processo desencadeado por seu SV, marca com precisão uma distribuição não contínua do processo. No momento da fala as gotas são pingadas no coração.

 

CONCLUSÃO

A partir dessa simples análise é possível considerar que as estruturas sintáticas são diretamente determinadas pela estrutura temática dos itens constituintes da sentença. Sendo assim, a mera tradição gramatical sobre as construções sintáticas na chamada voz passiva sintética simplesmente desconsidera o funcionalismo lingüístico em sua estrutura argumental bem como todos os postulados referentes ao encadeamento temático dos enunciados.

Dessa forma, é possível afirmar que as vozes verbais passivas jamais serão equivalentes, uma vez que, mudado o papel sintático de um constituinte oracional – alteração na estrutura superficial da sentença –, fatalmente ocorrerá mudança na estrutura profunda da mesma.

Especificamente no caso do pronome ‘se’, a suposta “apassividade” não se sustenta: os elementos constitutivos do enunciado não são aleatoriamente selecionados. Há uma razão de cunho argumental para que o mesmo se faça presente na sentença. Isso reitera a consideração de que a língua é uma entidade lógica e, portanto, não presa às regras gramaticais propostas pela normativização tradicional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALI, Manuel Said. Dificuldades da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: [s/e.], 1908.

BAGNO, Marcos. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia e exclusão social. São Paulo: Loyola, 2000.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna. 2001.

CANÇADO, Márcia. Um estudo teórico para os papéis temáticos. In: Foltarn, Maria José et alii. Semântica Formal. São Paulo: Contexto, 2003.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 46ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2005.

CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Campinas: Unicamp, 2003.

CHOMSKY, Noam. O programa minimalista. Tradução e apresentação de Eduardo Paiva Raposo. Lisboa: Caminho, 1999.

LIMA, Bruno de Assis Freire de. A norma e o desvio gramatical na concordância verbal com o se “apassivador” In: Anais do V Congresso e V Mostra de Ciências Humanas, Letras e Artes das IFESMG. Ouro Preto: EDUFOP, 2000.

MIOTO, Carlos et al. Novo manual de sintaxe. 2ª ed. Florianópolis: Insular, 2004.

RAPOSO, Eduardo Paiva. Teoria da gramática: a faculdade da linguagem. 2ª ed. Lisboa: Caminho, 1998.

RESENDE, Viviane de Melo; LIMA, Bruno de Assis F. Uma abordagem semântica para o problema da chamada voz passiva sintética. In: Gláuks. Viçosa: UFV, 2004.

SANDALO, Filomena. Morfologia. In: MUSSALI e BENTES, Introdução à lingüística. V. 1. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

TERRA, Ernani e NICOLA, José. Gramática, literatura e redação para o 2° grau. São Paulo: Scipione, 1997.

 


 


 

[1] Interessante notar que Evanildo Bechara usa o termo “a gramática” como algo externo a seus escritos. Ora, seus escritos também constituem o que conhecemos como “gramática”, muito embora o autor não aponte onde esteja o suposto sujeito das construções passivas citadas por ele.

[2] Aludo-me aqui às consideração de Marcos Bagno (2001) sobre a gênese da gramática tradicional ao afirmar que os bons autores eram tidos como modelo do “bom uso” e,  portanto, correto da linguagem. Visão que, em seu texto, Evanildo Bechara reafirma: se há a variedade não padrão usada pelos bons escritores, as mesmas passarão a ser “aceitáveis” sob o ponto de vista gramatical.

[3] Interessante observar que, na obra consultada desses autores, as considerações sobre o que seja “se” apassivador e “se” indeterminador, só aparecem 5 capítulos após a discussão sobre concordância verbal, na unidade 4, denominada “APÊNDICE” pelos autores.

[4] Essa informação é categórica em Chomsky, embora não seja sustentada, como em Jackendoff (1972)

[5] Entende-se como ED: elemento determinado do processo estabelecido por V, chamado aqui de ED1; ou elemento determinado pelo processo estabelecido por V, aqui como ED2. Nos postulados gerativos, estes termos são denominados DP (Determiner Phrase)

6 Diferenciam-se aqui os traços [volitivo] e [humano].

[7] Chamado aqui, também, de ED3. A torneira pingou água no jardim.

[8] Repare que em primeira análise o “se” foi propositalmente deixado de lado para que pudesse agora serem retomadas as considerações a seu respeito.

[9] Obviamente exclui-se aqui a linguagem metafórica.

 

 

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