ESQUEMA IMAGÉTICO, METÁFORA E DINÂMICA
DE FORÇAS: O CASO DA PREPOSIÇÃO “CONTRA”

Angelina Aparecida de Pina (UFRJ)

Introdução

As gramáticas normativas contemporâneas definem a classe das preposições como um inventário fechado de morfemas gramaticais, cuja função é relacionar duas palavras, sendo a primeira denominada antecedente ou termo regente e a segunda, conseqüente ou termo regido. Por serem consideradas meramente como elos sintáticos, freqüentemente os gramáticos advogam que as preposições são invariáveis e vazias de significado. (cf. ALMEIDA, 1982: 335; CEGALLA, 1985: 230)

No entanto, ao contrário do que sustentam os gramáticos, as preposições não são meros conectivos, desprovidos de significado. Nas sentenças “Cheguei de Santa Catarina” e “Cheguei em Santa Catarina”, por exemplo, são justamente as preposições de e em que determinam uma diferença de significado: a primeira indicando ponto de partida e a segunda, o ponto de chegada no percurso.

Portanto, a principal hipótese que norteia este trabalho é a de que há para cada preposição um sentido primário e sentidos derivados deste, o que nos remete ao fenômeno da polissemia, caracterizada em Lingüística Cognitiva como uma família de sentidos relacionados, formando uma categoria radial com um sentido mais central e outros periféricos, motivados a partir dele.

Tendo por objetivo explicar os sentidos da preposição contra, este trabalho tem por base uma importante premissa cognitivista: a mente é inerentemente corporificada e imaginativa. (LAKOFF, 1987: 368) Torna-se imperativo proceder a uma breve explanação das noções que essa premissa envolve, bem como expor, de forma simples e concisa, o modelo de interação de forças como desenvolvido à luz da Semântica Cognitiva (cf. Seção 2).

Pressupostos teóricos

De acordo com o paradigma cognitivista, o sistema conceitual humano baseia-se em experiências concretas, incluindo experiências sensório-motoras e de natureza social. Essas experiências são armazenadas sob a forma de bases de conhecimento estáveis. Para os propósitos deste trabalho, têm papel central os esquemas imagéticos, as imagens convencionais e a língua.

Os esquemas imagéticos são estruturas abstratas e genéricas advindas de experiências sensório-motoras, facultadas pelas características da espécie humana. Essas imagens esquemáticas são de natureza cinestésica, pois dizem respeito a muitos aspectos da atividade do ser humano no espaço, tais como: orientação, movimento, equilíbrio, forma etc. Os esquemas imagéticos mais comuns refletem as experiências de percurso, continente/conteúdo, parte/todo, ligação, centro/periferia, em cima/embaixo, frente/trás, entre outros.

Desde a infância, o ser humano internaliza, por exemplo, a experiência de mover-se de um lugar para outro. Essa experiência física rotineira consolida-se na mente de forma esquemática, dando origem ao esquema de percurso, cujos elementos estruturais são uma origem (ou ponto de partida), um alvo (ou ponto de chegada), uma distância percorrida (ou uma seqüência de locais contíguos que conectam uma origem a um alvo) e uma direção (para um alvo).

As imagens convencionais, por sua vez, são imagens mentais ricas em detalhes e partilhadas por todos os membros de uma mesma cultura e por membros de culturas semelhantes. A maioria dos seres humanos tem imagens de xícaras, bem como imagens de ações típicas realizadas com esse objeto, como servir café ou chá, apoiá-la em um pires, segurá-la pela asa para levá-la à boca etc. Algumas partes da imagem são estáveis e claras, outras são instáveis e vagas. A imagem da maçã, por exemplo, é estável quanto à forma e à cor vermelha, mas o tamanho é mais variável.

As imagens convencionais são empregadas para entender até mesmo a mais simples sentença. Se Pedro fosse um jogador de basquete e acertasse a bola na cesta, seria lícito dizer que “Pedro encestou a bola”. No entanto, se, em vez de atirar a bola na cesta com as mãos, Pedro utilizasse uma catapulta para atirar a bola na cesta, seria inadequado descrever o evento como “Pedro encestou a bola”, pois a expressão “encestar a bola” associa-se a uma imagem convencional que caracteriza a ação do jogador de basquete, e não a utilização de uma catapulta para realizar a ação de atirar a bola na cesta.

A língua também é considerada uma base de conhecimento que reflete o sistema conceitual e as habilidades cognitivas do ser humano. Além disso, os recursos lingüísticos são capazes de promover um enquadre adequado para aquilo que se pretende transmitir.

As bases de conhecimento são operadas mediante habilidades cognitivas, dentre as quais a mais básica é a comparação, que permite “entender e experienciar um tipo de coisa em termos de outra.” (LAKOFF & JOHNSON, 1980: 5) Essa habilidade imaginativa denomina-se metáfora.

Para a Lingüística Cognitiva, a metáfora não é meramente um dispositivo retórico ou decorativo, confinado à literatura. Ao contrário, a metáfora é um fenômeno conceitual de mapeamento interdomínios, ou seja, envolve dois domínios da experiência diferentes, projetando uma estrutura de um domínio-fonte em uma estrutura correspondente de um domínio-alvo.

Em um estudo pioneiro sobre as metáforas do dia-a-dia, George Lakoff & Mark Johnson (1980) demonstram que conceituam-se sistematicamente muitos domínios da experiência através de metáforas conceituais, isto é, projetando neles outros domínios.

Para ilustrar a idéia de que as metáforas conceituais estruturam nossas atividades diárias, os autores observam que, em sociedades ocidentais, conceitua-se uma discussão (ou debate) através da metáfora DISCUSSÃO É GUERRA. Entre esses dois domínios estabelecem-se analogias estruturais: os participantes de uma discussão (ou debate) correspondem aos adversários de uma guerra; o conflito de opiniões corresponde às diferentes posições dos inimigos; levantar objeções corresponde a atacar; manter uma opinião corresponde a defender-se; desistir de uma opinião corresponde a render-se; o local da discussão (ou debate) corresponde ao campo de batalha etc.

Em outras palavras, tanto uma guerra como uma discussão (ou debate) passa por momentos de ataque, defesa, contra-ataque e retirada, até que um dos oponentes vença, visto que, “embora não haja uma batalha física, há uma batalha verbal” (LAKOFF & JOHNSON, 1980: 4).

Diferentes expressões lingüísticas podem instanciar uma mesma metáfora conceitual, de modo que, como realizações lingüísticas da metáfora conceitual DISCUSSÃO É GUERRA, estratégias são utilizadas, posições são defendidas, pontos fracos são procurados, argumentos são atacados e, no fim, um dos oponentes ganha ou perde a discussão (ou debate).

Conforme afirmam os autores, diferentes culturas têm diferentes sistemas conceituais. Por isso, no Oriente, a metáfora DISCUSSÃO É GUERRA não é válida, pois a cultura oriental concebe a discussão como um ato cooperativo entre indivíduos.

Através de mapeamentos metafóricos, a conceituação das categorias abstratas fundamenta-se, em grande parte, na nossa experiência concreta cotidiana. O tempo, por exemplo, que é uma abstração humana, é conceituado como um objeto que se move no espaço ou como um objeto imóvel para o qual nos dirigimos, como nas sentenças “Viajo semana que vem” e “Estamos nos aproximando do Dia da Independência”.

Na cultura ocidental, o tempo é também conceituado como dinheiro, um bem valioso e limitado. Essa metáfora reflete-se em expressões lingüísticas como ganhar tempo, perder tempo, economizar tempo, investir tempo etc.

Para a análise da preposição contra, faz-se necessário, ainda, o modelo de interação de forças, como proposto por Leonard Talmy (1981, 1988, 2000). A dinâmica de forças é uma categoria semântica que diz respeito ao modo como as entidades interagem com relação à força. Seus conceitos fundadores são do domínio das interações de forças físicas. No domínio lingüístico, a dinâmica de forças envolve quatro distinções básicas:

Entidades de força: Agonista vs. Antagonista

Tendência intrínseca de força: para o movimento vs. para o repouso

Resultante da interação de forças: movimento vs. repouso

Equilíbrio de forças: entidade mais forte vs. entidade mais fraca

O Agonista é a entidade que exerce uma força em virtude de ter uma tendência intrínseca a manifestá-la. A tendência de força de uma entidade pode ser para o movimento ou para o repouso. O Antagonista é a entidade que exerce uma força contrária sobre o Agonista.

A entidade que é capaz de manifestar sua tendência em prejuízo de sua opositora é mais forte. De acordo com suas forças relativas, as entidades de força produzem um estado de atividade resultante do Agonista, que pode ser o movimento ou o repouso.

Tendo em vista que as preposições indicam relações no espaço, a tese central desta investigação é a de que as preposições do português, em seus sentidos mais básicos, provêm de esquemas imagéticos e, a partir desses esquemas, sentidos mais abstratos são criados via extensões metafóricas (cf. Seção 3).

Análise

Segundo Manuel Said Ali (1965: 210), na época quinhentista, a preposição contra indicava um ponto geográfico para onde dirigia-se um movimento. Não é por acaso que, para Evanildo Bechara (2004: 298), essa preposição caracteriza-se por um traço de “dinamicidade”, indicando limite do movimento.

Sendo assim, o sentido mais básico da preposição contra baseia-se no esquema de percurso, indicando um ponto-limite no espaço, como na sentença “Aline correu contra a praia”.

Hoje, porém, esse sentido tornou-se menos freqüente em favor de um sentido interacional, que depende do mapeamento metafórico entre o esquema de percurso e o modelo de interação de forças. O sentido interacional da preposição contra pode subdividir-se em: colisão, direção contrária, oposição e aproximação.

Nos três primeiros sentidos, essa metáfora determina que ORIGEM E ALVO SÃO ENTIDADES DE FORÇA, sendo que a origem é o Antagonista (a entidade que exerce força), e o alvo é o Agonista (a entidade afetada). O Antagonista direciona uma ação para o Agonista, podendo modificar ou não sua tendência intrínseca.

Com o sentido de colisão, a preposição contra marca o Agonista com tendência intrínseca para o repouso.

Na sentença “O sol bate contra o muro”, por exemplo, o sol é o Antagonista e o muro é o Agonista, com tendência intrínseca para o repouso. O Antagonista, por ser mais fraco que o Agonista, não é capaz de movê-lo.

Em contrapartida, na sentença “O menino esbarrou contra o jarro de flores”, o Antagonista o menino é mais forte que o Agonista jarro de flores, portanto, é capaz de modificar sua tendência para o repouso.

Considere-se que as imagens convencionais relacionadas ao sol e a um muro, a um menino e a um jarro de flores, nos permitem interpretar a interação de forças entre Antagonista e Agonista. Além disso, a língua fornece um enquadre adequado para as idéias que pretendemos transmitir, visto que seria, no mínimo, inadequado dizer “O muro bate contra o sol” em vez de “O sol bate contra o muro”, e “O jarro de flores esbarrou contra o menino” em vez de “O menino esbarrou contra o jarro de flores”.

Com o sentido de direção contrária, por sua vez, a preposição contra marca o Agonista com tendência intrínseca para o movimento.

Na sentença “Pedro remou contra a maré e chegou à praia”, o Antagonista Pedro é mais forte que o Agonista maré, com tendência intrínseca para o movimento. Ainda que a tendência do Agonista não se modifique, o Antagonista é capaz de vencer sua resistência.

Contrariamente, na sentença “Pedro remou contra a maré, mas as ondas o levaram”, o Antagonista Pedro é mais fraco que Agonista maré. Portanto, a tendência do Agonista não se modifica e o Antagonista é vencido.

As imagens convencionais e a língua também são importantes para a interpretação dessas sentenças. A força de uma pessoa e a força da maré são cotejadas, e a língua fornece recursos para expressar se a pessoa venceu ou foi vencida pela maré.

Com o sentido de oposição, a preposição contra também marca o Agonista, mas não é possível determinar com precisão sua tendência intrínseca.

Na sentença “Os cariocas protestam contra a violência”, os cariocas são os Antagonistas e a violência é o Agonista. No entanto, a violência não é uma entidade de força prototípica, pois consiste em um conceito abstrato. Do mesmo modo, na sentença “Começou a campanha contra a paralisia infantil”, a paralisia infantil não é uma entidade de força prototípica. Por serem conceitos abstratos, é muito difícil determinar a tendência intrínseca.

Note-se que, na sentença “Os Estados Unidos combateram contra o Iraque”, o Iraque é uma entidade de força paralela aos Estados Unidos, mas, ainda que o desfecho da guerra tenha evidenciado que o Antagonista Estados Unidos era mais forte que o Agonista Iraque, é difícil determinar a tendência intrínseca do Agonista. Em sentenças como essa, a língua fornece a possibilidade de enquadrar o mesmo evento de dois pontos de vista diferentes: “Os Estados Unidos combateram contra o Iraque” ou “O Iraque combateu contra os Estados Unidos”, sinalizando maior atividade do primeiro termo e maior passividade do segundo.

Por fim, no sentido de aproximação da preposição contra, o mapeamento entre o esquema de percurso e o modelo de interação de forças determina que DIREÇÃO DO MOVIMENTO É DIREÇÃO DA FORÇA. Na sentença “Rita apertou a carta contra o peito”, por exemplo, o Antagonista Rita exerce uma força sobre o Agonista carta na direção de seu próprio peito. Similarmente, na sentença “Sérgio empurrou o armário contra a parede”, o Antagonista Sérgio exerce uma força sobre o Agonista armário na direção da parede. Em ambos os casos, o Antagonista é mais forte que o Agonista, sendo, portanto, capaz de movê-lo. A preposição contra não marca mais o Agonista, mas sim a direção da força exercida pelo Antagonista sobre o Agonista.

Novamente, as imagens convencionais e a língua nos permitem interpretar essas sentenças, na medida em que a relação de forças entre Rita e a carta, e entre Sérgio e o armário, fica clara devido tanto às imagens armazenadas como ao enquadre lingüístico.

Esse sentido de aproximação é menos periférico do que os demais sentidos interacionais, uma vez que encontra-se mais ligado ao sentido central de ponto-limite no espaço.

Conclusão

Tendo em vista as idéias desenvolvidas ao longo deste estudo, é possível concluir que cada preposição forma uma rede de significados relacionados, cujo sentido central é espacial e determinado por um esquema imagético, enquanto seus sentidos periféricos são motivados pelo sentido mais básico e viabilizados pela habilidade cognitiva de mapeamento metafórico entre domínios.

A preposição contra tem como sentido central indicar um ponto-limite no espaço e deste decorrem os sentidos interacionais de colisão, direção contrária, oposição e aproximação.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 1982.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 26ª ed. São Paulo, 1985.

LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.

–––––– & JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

SAID ALI, Manuel. Gramática histórica da língua portuguêsa. 5ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

TALMY, Leonard. “Force dynamics”. Paper presented at the Conference on Language and Mental Imagery. University of California at Berkeley, May 1981.

––––––. Force dynamics in language and cognition. Cognitive Science 2, 1988, p. 49-100.

––––––. Toward a Cognitive Semantics. Cambridge: The MIT Press, 2000.

 

 

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