Uma análise comparativa
das construções de indeterminação
na fala e na escrita
Juliana Esposito Marins (UFRJ)
Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ)
Introdução
O português brasileiro (PB), ao contrário do que vem ocorrendo com o português europeu (PE), com o espanhol e com o italiano, está passando por um processo de mudança no que diz respeito à representação do sujeito pronominal. Assim, vem-se observando que no Brasil há uma preferência pela realização fonética do sujeito, em decorrência da redução do paradigma flexional do verbo, conforme a hipótese de Duarte (1993, 1995). Isto quer dizer que estamos diante de uma mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, de língua positivamente marcada em relação a ele para língua negativamente marcada.
Estudo da fala culta carioca – NURC/RJ – (Duarte, 1995 e 2000) confirma a hipótese para os sujeitos de referência definida, como mostram (1) e (2) a seguir (exemplos de Duarte, 2000: 22):
(1) De repente elai sabe que elai quando criança ficava meio triste por isso.
(2) Nova Trentoi é do tamanho da rua São Clemente de Botafogo. Elai é desse tamanho. Elai não tem paralelas.
A partir disso, investigou-se a possibilidade de também os sujeitos de referência indeterminada seguirem o mesmo padrão, o que foi confirmado também na fala culta carioca – NURC/RJ– por Duarte (2000). Desta maneira, constatou-se que o PB desenvolveu estratégias alternativas às formas de indeterminação prescritas pela gramática tradicional – o uso de ‘se’ e da 3ª pessoa do plural, numa evidência de mudança “encaixada” num conjunto maior de mudanças.
O presente trabalho tem como objetivo estabelecer uma comparação entre fala culta e escrita padrão no que diz respeito à representação do sujeito indeterminado. Em função do seu caráter mais conservador, espera-se que haja diferenças significativas entre escrita e fala. No entanto, também são esperadas estratégias inovadoras naquela variedade, visto que este procedimento já se encontra implementado na fala.
Metodologia
O trabalho insere-se no quadro teórico da Sociolingüística Paramétrica, que associa pressupostos teóricos de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981) e da Sociolingüística Variacionista (Labov, 1972).
Para a realização de nossa análise, foram utilizadas duas amostras:
I. a amostra de fala culta (NURC-RJ), gravada em 1992 (Duarte, 2000);
II. a amostra de língua escrita, constituída de textos de opinião e crônicas publicados entre 2002 e 2004, em jornais direcionados a um público mais escolarizado (O Globo e JB).
Esses dois gêneros textuais foram escolhidos por propiciarem estruturas de indeterminação, ao contrário do que se verifica, por exemplo, nas reportagens.
Para a análise estatística dos dados, foi utilizado o pacote de programas VARBRUL.
Os Resultados
Distribuição das estratégias de indeterminação
Observando os dados obtidos, notamos que as estratégias encontradas na fala também aparecem na escrita, como ilustram (3) a (7) seguir, em que apresenta um exemplo da fala (Duarte, 2000: 23,24) e um da escrita:
(3) a. Você quando você viaja, você passa a ser turista. Então você passa a fazer coisas que você nunca faria no Brasil. (NURC-RJ)
b. É muito chato assistir a um filme, quando você já conhece o final. (O Globo)
(4) a. Quando eles querem eles fazem. Quando eles querem eles acham dinheiro. (NURC-RJ)
b. (...) o assalto ao Banco Central nos reassegura que ainda ___ fazem assaltos em moldes clássicos. Pelo menos isso.(O Globo)
(5) a. Hoje em dia, quando a gente levanta as coisas, é que a gente vê tudo o que aconteceu. Mas na época a gente não podia acreditar (...). A gente não acreditava nisso, primeiro porque a gente era novo. (NURC-RJ)
b. Aqui a gente ainda leva sustos diários mas, pelo menos, quando diz ‘Jesus!’ não aparecem dezessete cubanos e dizem ‘Si?’. (O Globo)
(6) a. Antigamente jogava-se futebol na rua Visconde Silva. (NURC-RJ)
b. Em nenhum outro país se dá mais importância ao IDH do que no Brasil. (O Globo)
(7) a. Agora mesmo __ estamos em época de festividades... (NURC-RJ)
b. Realmente não existe mais ética neste país, nenhum princípio moral, nenhum caráter, __ vivemos numa total inversão de valores. (O Globo)
No entanto, a análise quantitativa revelou que fala e escrita, como já se esperava, apresentam comportamentos absolutamente distintos no que se refere à estratégia preferida para preencher o argumento externo do verbo nessas estruturas de indeterminação. Isto fica claro observando a tabela 1 abaixo, que apresenta ao distribuição das ocorrências segundo a estratégia utilizada e as figuras 1 e 2, que apresentam os valores percentuais:
Variedade |
Você (1) |
Eles (2) |
A gente (3) |
Se (4) |
Nós (5) |
Total |
Fala |
140 |
50 |
41 |
26 |
8 |
265 |
Escrita |
7 |
29 |
13 |
97 |
122 |
268 |
Tabela 1. Distribuição das estratégias de indeterminação
na fala culta e na escrita padrão
Figura 1. Distribuição percentual das estratégias de indeterminação
– Amostra de fala (Duarte 2000)
Figura 2. Distribuição percentual das estratégias de indeterminação
– Amostra de escrita
Como se nota, tanto na tabela 1 quanto nos gráficos, há um abismo entre fala e escrita no que diz respeito às estratégias preferidas por essas duas modalidades. Enquanto a fala elege o uso de ‘você’ (52%) e praticamente abandona o uso de ‘se” (10%) e ‘nós’ – aqui representando o uso do verbo na primeira pessoa do plural, com o sujeito expresso ou não expresso – (3%), a escrita, dado seu caráter mais conservador, faz largo uso do pronome ‘nós’ (45%) e do clítico ‘se’ (36%), que respondem juntos pela quase totalidade das ocorrências (81%). Curiosamente, o pronome ‘nós’ para referência à primeira pessoa do plural e para a referência indeterminada, praticamente extinto na fala, e não previsto pelas gramáticas normativas entre as estratégias de indeterminação aparece na escrita, concorrendo com o pronome ‘se’, a estratégia contemplada pela gramática normativa. Este quadro nos permite perceber que a escola e o contato com a leitura conseguem resgatar na escrita formas já praticamente extintas na fala. Ainda sim, este aspecto permite perceber que há uma distância entra os processos de aquisição da fala e da escrita (Kato, a sair).
É interessante mostrar que as múltiplas possibilidades de construções de indeterminação oferecidas pelo sistema fazem com que o falante/escritor possa utilizá-las numa mesma sentença. É o que podemos notar em (8) abaixo, extraído de uma crônica:
(8) O Porto, se você já leu Pessoa sabe, é uma cidade em que __ se pede amor num restaurante e __ servem dobradinha fria.
em que temos três estratégias diferentes, mas seria possível, por exemplo, usar o clítico “se” nas três sentenças.
Os baixos percentuais de ‘a gente’ (5%) e de ‘você’ (3%) na escrita mostram que a implementação de inovações na variedade escrita ocorre de forma lenta, sendo, no presente caso, a crônica o gênero que mais propicia essa entrada.
A realização dos pronomes
A realização fonética dos pronomes encontrados na análise é outro aspecto que ratifica o caráter mais conservador da escrita em relação à fala. Analisando as figuras 3 e 4 abaixo, é possível notar que as duas variedades apresentam comportamentos quase opostos.
Figura 3. Realização dos pronomes na fala
Figura 4. Realização dos pronomes na escrita
Na fala, há supremacia das formas plenas dos pronomes ‘você’ e ‘a gente’, fato já esperado, se levarmos em consideração a redução do paradigma flexional do verbo em PB. Quanto ao pronome ‘eles’, há praticamente um empate entre as formas nula e plena. Mesmo o pronome ‘nós’, cuja desinência verbal é mais saliente, revela um percentual maior para a forma foneticamente realizada, o que confirma a tendência ao preenchimento dos sujeitos referenciais definidos e indeterminados na fala.
A exemplo do que ocorre na fala, também na escrita os pronomes ‘você’ e ‘a gente’ aparecem mais preenchidos que nulos. Em contraposição, porém, os pronomes ‘eles’ e ‘nós’ apresentam-se quase em sua totalidade foneticamente realizados. Este pode ser considerado outro indício de que a aquisição/aprendizagem da escrita permite ao indivíduo o acesso a uma outra gramática, que, se não chega a ser igual à gramática da fala de sincronias passadas, tampouco é igual à gramática portuguesa, que ainda inspira nossas gramáticas normativas. Como lembra Kato (a sair), mesmo que esta segunda gramática (G2) se constitua de um acervo de “regras estilísticas”, não há dúvida de que essas regras são um subproduto da nossa Gramática Universal.
Os gêneros textuais
Embora o número de dados seja ainda pequeno, é possível fazer algumas considerações no diz respeito aos gêneros contemplados na análise. Observemos a tabela 2 abaixo:
Gênero |
Se |
Nós |
A gente |
Eles |
Você |
Total |
Crônica |
45 – 33% |
49 – 37% |
10 – 7% |
24– 18% |
6 – 5% |
134 – 100% |
Opinião |
52 – 39% |
73 – 54% |
3 – 2% |
5 – 4% |
1 – 1% |
134 – 100% |
Total |
97 – 36% |
122 – 45% |
13 – 5% |
29– 11% |
7– 3% |
268 – 100% |
Tabela 2. Distribuição das estratégias pelos gêneros textuais
O estudo de Couto (2004), feito a partir da análise também de editoriais, revelou que realmente as formas inovadoras na indeterminação ocorrem em maior número nos gêneros menos formais. Com isso, como entendemos que a crônica é um gênero textual mais informal do que o texto de opinião, esperávamos de fato que tais estratégias encontrassem maior facilidade de penetração neste gênero. A tabela 2 confirma isto, já que vemos maiores percentuais dos pronomes ‘você’ e ‘a gente’ (5% e 7%, respectivamente) neste gênero.
No entanto, é curioso que o pronome ‘nós’/ou o uso da primeira pessoa do plural tenha encontrado nos textos de opinião terreno tão fértil, correspondendo a de metade (54%) das ocorrências totais desse gênero. Uma análise mais minuciosa desses textos nos fez chegar à conclusão de que isso se deve ao grau de comprometimento do escritor com o texto. Embora tenham sido escolhidos aleatoriamente, em geral, apresentam um caráter político/argumentativo, o que faz com que o autor se envolva com a causa que está defendendo. Assim, tenta mobilizar o leitor, tornando-o cúmplice de seu projeto. Abaixo, transcrevemos um trecho de um desses textos, com o objetivo ilustrar esta tendência:
(9) No Brasil e na América Latina, tais movimentos (estudantis) foram calados pelos sucessivos golpes militares e instauração de ditaduras.
Nesse momento, os porões são destrancados, deixando-nos ver e discutir os fatos e as provas de uma época marcada pela tortura, pelo arbitrário e pela censura.
Dói. __ Somos obrigados a encerrar o leito de sangue que batizou nossa geração durante os anos de chumbo. [...]
__ Estamos distanciados demais, anestesiados demais, lubrificados demais, globalizados demais para sofrer pelo outro. O passado é o passado, dizemos dando de ombros.
Conclusão
A partir dos resultados apresentados, é possível concluir que de fato há uma lenta implementação de estratégias inovadoras de indeterminação na escrita, o que ocorre através dos gêneros menos formais. Por outro lado, percebe-se a eficácia do processo de letramento no que diz respeito à aprendizagem de estruturas que não estão presentes no processo de aquisição da linguagem, como se se tratasse da aquisição de uma L2. Assim, a escola recupera na escrita estruturas praticamente extintas na fala espontânea (mesmo na de indivíduos letrados).
É importante ainda notar que o pronome ‘nós’, estratégia que concorre com o ‘se’ na escrita, não é contemplado pelas gramática normativas como forma padrão de indeterminação, o que recomenda uma revisão das descrições da escrita padrão, ampliando-se o leque de opções através da inclusão de formas velhas desprezadas e de formas novas, que, aos poucos, vão se implementando.
Referências bibliográficas
CHOMSKY, Noam. Lectures on Government and Binding. Dordrecht: Foris, 1981.
COUTO, Marco Aurélio de Souza. Estratégias pronominais de indeterminação do agente. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2004.
DUARTE, M. Eugênia L. “Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil”. In: Roberts & Kato, M. A. (orgs.) Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: UNICAMP, 1993: 107-128.
––––––. A perda do princípio “Evite Pronome” no português brasileiro. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 1995.
––––––. ‘The loss of the Avoid Pronoun principle in Brazilian Portuguese’. In: Kato, M. A. & Negrão, E. V. (eds.) Brazilian portuguese and the Null Subject Parameter. Frankfurt-Madrid: Vervuert-Iberoamericana, 2000: 17-36.
––––––. “Variação sintática e mudança paramétrica”. Gragoatá, línguas e variação lingüística no Brasil, 9, 2001, p. 75-84.
KATO, Mary A. A gramática do Letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES, M. A.; KOLLER, E.; TEIXEIRA, J. & LEMOS, A. S. (orgs.). Ciências da linguagem: trinta anos de investigação e ensino. Braga: CEHUM (U. do Minho), [no prelo].
LABOV, William. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.
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