A UNIDADE LEXICAL MORRO NO SAMBA CARIOCA

Beatriz Daruj Gil (USP)

Introdução

O léxico é o módulo integrante do sistema da língua em que se realizam a produção e a transformação dos recortes culturais de determinada comunidade lingüística. Além disso, na atualização de suas unidades, revela valores ideológicos e visões de mundo dos sujeitos interlocutores produtores da enunciação membros dessa comunidade. O acervo de lexemas da língua também retrata o conjunto da experiência humana acumulada, práticas sociais e culturais, assim como o movimento de expansão e alteração dessas práticas, o surgimento de novas experiências, novas idéias ou novas técnicas. Dessa forma, vê-se, no movimento do léxico, como a marginalização de unidades ou setores e a criação de novas unidades lexicais, por exemplo, um espelhamento das modificações realizadas pelo homem em seus hábitos sociais e culturais.

A reflexão aqui proposta pretende delinear-se no sentido de observar a unidade lexical morro em sambas cariocas como elemento produtor e definidor de recortes culturais, analisando como a visão do morro é construída no uso discursivo dessa unidade do léxico em um conjunto de canções.

Concentra-se o estudo na análise da unidade lexical morro em quatros sambas cariocas: Praça Onze (1942), de Herivelto Martins e Grande Otelo, Alvorada (1960), de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, Produto do Morro (1983) de Bezerra da Silva e Lei do Morro (1983), de Ney Silva, Paulinho Corrêa e Trambique, interpretada por Bezerra da Silva.

Objetiva-se descrever, por meio da análise da unidade lexical morro, os sentidos produzidos pelos enunciadores das canções e para isso trata-se de considerar a unidade do léxico em seus usos discursivos, instância em que se pode visualizar a ação dos usuários da língua sobre a estrutura do léxico, na medida em que eles atribuem sentidos variados aos lexemas que contribuem para o conhecimento de seu entendimento do mundo.

Contribuem para essa análise os estudos da teoria do texto com base na orientação sociocognitivo-interacionista (KOCH: 2004) que fundamentam o estudo do léxico em uma perspectiva discursiva e o estudo de questões relativas ao samba (MATOS: 1982; TINHORÃO: 1998 e VIANNA: 1999).

O léxico em uma perspectiva discursiva

Sabe-se que o léxico da língua pertence à comunidade daquela língua. Seus usuários agem sobre sua estrutura simultaneamente ao movimento de suas práticas sociais e culturais. Assim, quando o léxico é manifestado em discurso, sentidos vão sendo atribuídos às unidades lexicais.

Sobre a questão, BIDERMAN (1978: 139) afirma:

Os membros dessa sociedade funcionam como sujeitos-agentes, no processo de perpetuação e reelaboração contínua do Léxico de sua língua. Nesse processo em desenvolvimento, o Léxico se expande, se altera e, às vezes, se contrai.

A autora considera que a incorporação do Léxico ocorre durante toda a vida do indivíduo e se dá por meio de “atos sucessivos de cognição da Realidade e de categorização da experiência através de signos lingüísticos: os lexemas.” (BIDERMAN, 1978: 140). O que ocorre é que a realidade é interpretada cognitivamente e armazenada na memória do indivíduo registrando ali todo o sistema lexical. Como ela é constantemente reinterpretada pelo indivíduo, ele opera permanentemente sobre o material lingüístico que tem armazenado.

Com base na orientação sociocognitivo-interacionista dos estudos da Teoria do Texto (KOCH: 2004), essa ação sobre os elementos do léxico realizada pelos indivíduos em um permanente movimento de construção e reconstrução, revelada nos usos discursivos, acontece por meio de operações cognitivas que não ocorrem na mente dos indivíduos de forma isolada, mas são determinadas socialmente. De acordo com essa linha teórica,

... muitos dos nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e capacidade de atuação física sobre o mundo. Uma visão que incorpore aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão do processamento cognitivo baseia-se no fato de que existem muitos processos cognitivos que acontecem na sociedade e não exclusivamente nos indivíduos. (KOCH, 2004: 30)

KOCH (2004: 31) acrescenta que

... na base da atividade lingüística está a interação e o compartilhar de conhecimentos e de atenção: os eventos lingüísticos não são a reunião de vários atos individuais e independentes. São, ao contrário, uma atividade que se faz com os outros, conjuntamente.

A partir dessas reflexões, pode-se considerar a ação lingüística como um evento essencialmente interativo em que os sentidos são construídos pelos interlocutores nessa ação conjunta que realizam. Também se conclui que o conhecimento explicitado na seleção lexical realizada na ação dos interlocutores, tanto para a produção do texto quanto na sua compreensão, é produzido por um conjunto social e renovado no momento da interação, o que indica que é um conhecimento compartilhado.

Isto significa que o indivíduo procede à categorização dos elementos do mundo de acordo com uma forma coletiva de perceber e atuar sobre os objetos. Esses objetos, referentes interpretados, frutos de um processo de manipulação significativa da percepção da realidade, tornam-se, na perspectiva de que o evento lingüístico é uma ação entre interlocutores que realizam uma atividade sociocognitiva, objetos do discurso, uma vez que eles não precedem essas atividades, mas são o resultado delas. Assim, acima da materialidade desses objetos, está a interpretação realizada pelos interlocutores.

Nesta perspectiva, as unidades lexicais devem ser analisadas como objetos do discurso, com a finalidade de descrever qual o conhecimento compartilhado pelos interlocutores envolvidos em determinada ação lingüística. Neste caso, o evento lingüístico objeto de análise é o conjunto de canções já referidas e busca-se encontrar qual o entendimento comum dos interlocutores na atualização da unidade do léxico morro.

A cada uso lexical, os objetos do discurso constroem-se e reconstroem-se fundamentados em um projeto de dizer do enunciador que é sociocognitivamente determinado, ou seja, é coletivo. A construção dos sentidos promovida nos usos discursivos revela um dizer coletivo que independe da presença física dos autores:

... as ações verbais são ações conjuntas, já que usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lugar onde a ação acontece, necessariamente em coordenação com os outros. Essas ações não são simples realizações autônomas de sujeitos livres e iguais. São ações que se desenrolam em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente. (KOCH, 2004: 31-32)

Antes de observar a unidade lexical morro atualizada nas letras dos sambas, deve-se considerar o morro não de maneira isolada, mas inserido nas temáticas com que ele se envolve: samba, classes populares e malandragem.

Morro, samba,
classes populares e malandragem

Ainda sem o componente lingüístico, o samba surge no início do século XX, algum tempo depois do choro. Origina-se em grupos negros e populares e inicialmente não tem aceitação na comunidade branca da classe média, ocupando, assim, desde seu início, lugar demarcado no corpo social.

O samba nasce de uma conjunção de grupos populares excluídos pelas injustas orientações da economia. Não possuem trabalho formal e buscam, para sobrevivência, uma organização própria que vai determinar suas práticas culturais. São grupos formados, essencialmente, por migrantes negros que com a abolição da escravidão destinam-se ao Rio de Janeiro, especialmente vindos da Bahia, em busca de condições melhores de vida:

No Rio de Janeiro esse espírito de sobrevivência levou tais camadas mais pobres desde o fim do século XIX a ocupar progressivamente os mangues da Cidade Nova, a concentrar-se em cômodos e porões de aluguel de casas do centro da cidade (o espaço interno multiplicado por tabiques, o externo por acréscimos de madeira e lata, chamados de ‘puxadas’), a subir os morros para armar barracos (primeiro próximo ao centro da cidade, como nos morros de Santo Antônio e da Providência – aqui fazendo surgir o termo favela para o conjunto de casebres – e depois partir para os subúrbios mais distantes). (TINHORÃO, 1998: 263).

O samba era praticado em três regiões: região central, próxima ao Cais do Porto, chamada de Pequena África, bairro do Estácio de Sá e Vila Isabel e não se mantém como expressão exclusiva da cultura negra, integrando segmentos brancos da classe média e alta da sociedade carioca. Da conjunção desses grupos surge o samba carioca. Inicialmente, nas casas do centro, era tocado especialmente nos quintais, nos fundos, já que a parte dianteira das casas era reservada ao choro.

Ainda que não tenha nascido no morro é lá que o samba se desenvolve. Negros pobres sem espaço na cidade vão sendo empurrados para viver nos morros, muitas vezes vítimas da perseguição da polícia que os considera desordeiros e bandidos, formando as favelas que passam a constituir um espaço de poder antagônico ao espaço das autoridades constituídas, o da cidade, entendendo-se que até então os morros não integravam a cidade oficialmente. Mesmo não sendo proprietários do espaço, os moradores do morro fazem dele um “reduto de uma auto-afirmação racial que não encontra lugar fora delas, no espaço dominado pelos brancos” (MATOS, 1982: 29). Seus moradores possuíam uma identidade étnica, cultural e socioeconômica que garantia sua união e organização interna e o samba retrata um dos produtos dessa organização interna.

Contra a opressão da vida marginalizada do sistema constituído, as carências econômicas, o trabalho opressor e mal remunerado e a desigualdade social, surge o samba, espaço da brincadeira e do prazer lúdico e é o morro seu lugar de eleição, espaço de libertação e realização plena do indivíduo.

O samba, portanto, sempre esteve presente nos locais apartados da sociedade, onde se fixavam os grupos populares, tanto no morro como em algumas localidades como o Estácio que não estavam no morro, mas próximo dele.

O gênero passa por fases diferentes desde sua origem. Do tipo amaxixado das primeiras décadas do século XX a uma nova modalidade ganhando um ritmo mais vivo a partir da década de 30. É esse o momento que ganha o nome de samba malandro, quando tratava em seus temas de exaltar a postura do sambista malandro. Mais tarde, com o desenvolvimento da indústria fonográfica e a difusão da música no rádio, adota a temática amorosa e na melodia ganha novas faces: o samba-canção, o samba-choro e o samba de breque.

No que se refere ao componente temático, passa a abordar três grandes linhas: lírico-amoroso, apologético-nacionalista e malandro. As duas primeiras conduzem o indivíduo a uma visão romântica do mundo. É na face malandra do samba que se manifesta sua origem popular, preenchida de uma consciência da condição dos grupos desprestigiados enaltecendo a identidade das classes baixas que habitam o morro e os subúrbios, sua condição de dominados como revelação da realidade externa ao próprio grupo. (MATOS, 1982: 45-48)

Para MATOS (1982: 56-59) os trajes do malandro, assim como as fantasias utilizadas nos desfiles, revelam os disfarces do proletário, assim como seus conteúdos recalcados:

... ao colocar em foco justamente o que mais distante está de sua própria realidade (o nobre europeu, para o crioulo), o folião fantasiado simultaneamente evidencia, pela hipérbole, pelo paradoxo, pela caricatura, a mesma realidade (de crioulo). A simbologia do carnaval não se esteia apenas no processo de liberação dos desejos, mas também na repressão a que eles estão normalmente submetidos. Ela aponta para fora do carnaval. A reviravolta passageira de valores instituídos e códigos de conduta do sistema social pressupõe a vigência desse mesmo sistema no resto do ano. (MATOS, 1982: 64)

Importa apresentar uma reflexão sobre o mito da malandragem, uma vez que o indivíduo consagrado como malandro revela a identidade do próprio morro, que pode ser aqui entendido como um sujeito coletivo.

MATOS (1982) compreende que a figura do malandro, que transcende o acontecimento do carnaval, corresponde a essa idéia de fantasia: é o indivíduo das classes populares que cria um personagem por meio de adereços fantasiosos, o lenço no pescoço, o chapéu de palha, por exemplo, buscando colocar-se como alguém respeitado, temido, bem posicionado socialmente: “O malandro enquanto caricatura do burguês representa metaforicamente a fantasia do oprimido ao mesmo tempo que o conflito social do qual ele provém” (MATOS, 1982:65). Essa idéia da fantasia aponta para o indivíduo marginalizado que quer ser inserido no meio social e, com a fantasia, aproxima-se desse mundo desejado, carregando, assim, um discurso de seu grupo social.

Considera-se que mesmo diante das tentativas de o Estado intervir na produção musical buscando desvincular o samba da malandragem no período do Estado Novo (a partir de 1937), ela se mantém como linguagem do samba marcando-o como expressão de classe.

De acordo com VIANNA (1999: 116), Bezerra da Silva, sambista carioca consagrado a partir de meados dos anos 70, considera que o malandro é “... o trabalhador que consegue sobreviver à exploração capitalista, ao descaso do Estado, à opressão dos policiais e dos traficantes, sem sucumbir, sem virar bandido”. Ainda que tenha se feito conhecido como sambista dos bandidos do morro, Bezerra não faz apologia do bandido, mas busca explicá-lo, contextualizando-o no contexto da desigualdade social.

As reflexões acima postas orientam para o entendimento do morro como o espaço da libertação em que o indivíduo se livra do uniforme repressor do trabalho, “tirar a camisa e fazer um samba”. Espaço destinado à alegria, caracterizado como lugar oposto ao espaço da “cidade” em que o indivíduo encontra seus iguais e constrói sua identidade cultural no ritmo e nas temáticas do samba. Na figura do malandro, o morro, que o abriga, aparece como reduto do sujeito que questiona os códigos de conduta do sistema social, um oprimido que transita nos limites de classes, mostrando por meio de sua “fantasia de malandro” a própria identidade de integrante da classe popular. Também, em uma outra perspectiva de malandro, o morro revela o lugar do trabalhador que sobrevive à opressão.

Muitos anos depois do estabelecimento do samba no morro, ele vai retratar um sujeito novo, o bandido que, para Bezerra da Silva, não é o malandro, mas que também habita o morro e ao qual o morro, muitas vezes, tem que se sujeitar. É esse o morro que se confunde com a liberdade frente à opressão social, com a malandragem e finalmente com a bandidagem que se apresentam nos sentidos atribuídos a esse acidente geográfico da realidade física, compreendendo assim que os sentidos dados ao morro em suas atualizações discursivas vão conjugar o entendimento que a sociedade construiu conjuntamente acerca do fenômeno.

As ocorrências de morro

Trata-se de apresentar a seguir uma análise dos sentidos atribuídos à unidade lexical morro em seus usos discursivos em quatro composições do samba carioca. Para isso, considera-se todo o entendimento do morro associado ao fenômeno do samba na sociedade carioca exposto anteriormente.

A primeira canção, Praça Onze, data de 1942. É um samba de Herivelto Martins e Grande Otelo e revela o sentimento do povo do samba quando o desfile oficial das Escolas de Samba é transferido da Praça Onze, local de tradição dos desfiles, para a Avenida Rio Branco:

Vão acabar com a Praça Onze
Não vai haver mais escola de samba, não vai
Chora o tamborim
Chora o morro inteiro
Favela, Salgueiro
Mangueira, Estação Primeira

Guardai vossos pandeiros, guardai
Porque a escola de samba não sai
Adeus, minha Praça Onze, adeus
Já sabemos que vais desaparecer
Leva contigo a nossa recordação
Mas ficarás eternamente em nosso coração
E algum dia nova praça nós teremos
E o teu passado cantaremos.

Pode-se observar que a lexia (unidade lexical atualizada em discurso) morro destacada revela o povo oprimido que se sente consternado, triste e vê a perda do seu espaço de lazer. Quando o morro chora, compreende-se que os próprios grupos populares é que choram o fim da liberdade; o espaço do samba, que se confunde com o espaço do morro, onde se conquistou liberdade, é perdido quando um outro espaço tradicional do samba, a Praça Onze, é suprimido. O enunciador retoma morro, em um procedimento de coesão referencial com uso de lexemas, por meio de outras unidades do léxico Favela, Salgueiro/Mangueira, Estação Primeira, reafirmando a tristeza de uma coletividade.

O samba Alvorada é de 1960, composto por Cartola, em parceria com vários outros compositores, entre eles, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho:

Alvorada lá no morro, que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo é tão lindo, tão lindo
E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
A alvorada
Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando
meus caminhos tão sem vida
Mas o que me resta é tão pouco
Ou quase nada, do que ir assim, vagando
Nesta estrada perdida.

Cartola compunha, prioritariamente, sambas mais ligados a uma temática lírico-amorosa expressando o sentimento do amor atemporal e universal. Também dentro dessa temática, ele usa morro como o espaço da beleza e alegria. Objetivando comparar a beleza do ser amado com o morro, ele apresenta inicialmente uma bela fotografia do morro. Como elementos lexicais referenciais aparecem beleza, sol, lindo, natureza, sorrindo, tingindo, todos elementos do contexto lingüístico que retomam e ativam o sentido de morro como espaço de prazer. Também dissabor revela o elemento de oposição ao morro. Vistas como objetos do discurso, as lexias, ao se referenciarem no contexto lingüístico, ativam o contexto sociocognitivo.

Um outro samba pode ser um bom exemplo do entendimento do morro como lugar de uma coletividade que se opõe ao poder constituído na sociedade, reclamando seu lugar e apontando para o sofrimento diante da opressão. É Produto do Morro, de Bezerra da Silva, composto em 1983, que revela a face do morro oprimido que se posiciona contra a opressão social:

Sou produto do morro
Por isso do morro não fujo nem corro
No morro eu aprendi a ser gente
Nunca fui valente e sim conceituado
Em qualquer bocada que eu chegar
Eu sou muito bem chegado
E no Canta Galo, na linha de frente
Naquele ambiente sou considerado
Sou produto do morro
Sou produto do morro
Sem pedir socorro pra ninguém
Embarquei no asfalto da cruel sociedade
Que esconde mil valores que no morro tem
Tenho pouco estudo, não fiz faculdade
E atestado de burro não assino também
Sou produto do morro
É que a música é meu alento
E o meu talento a Deus agradecer
E nesse momento é a Ele que peço
Se eu sou sucesso fiz por merecer
Sou favelado, mas tenho muita dignidade
E muita honestidade pra dar e vender
Sou produto do morro.

Nesta letra a constituição dos sentidos de morro ocorre pela ancoragem nos elementos lingüísticos e nos saberes enciclopédicos. Algumas lexias podem ser associadas nessa situação discursiva porque se ancoram em um contexto sociocognitivo. O enunciador apresenta uma relação de oposição morro/cidade quando atualiza asfalto, cruel sociedade, faculdade e estudo como lugares opressores para ele (que se situa como objeto do morro) ou distantes de sua realidade, como em faculdade e estudo, e que estão situados na cidade. Por outro lado, relaciona o morro com gente, conceituado, bem chegado, Canta Galo (nome do morro onde viveu Bezerra da Silva no Rio de Janeiro), considerado, música, alento, favelado, dignidade e honestidade, enaltecendo o indivíduo do morro, sua identidade, reconhecimento local e sua prática cultural.

Finalmente em Lei do Morro, composição de 1983, de Ney Silva, Paulinho Corrêa e Trambique, interpretada por Bezerra da Silva, encontra-se a relação morro/bandidagem:

A lei do morro
A lei do morro não é mole não
se você cagüetar tem que ter muita disposição
pra meter a mão na turbina
E apertar com precisão
Se você não acertar o alvo
você vai se arrepender
Pois o alvo te acerta e quem fica caído é você
E se você era limpeza
Pois sujeira passou a ser
em seguida é logo esculhambado
Com o risco de morrer
Tem que ser ligeiro e hábil
Pra poder sobreviver
Bom malandro é cadeado
Nada sabe e nada vê
e também se não for considerado
você logo vai saber
Vai pagar uma taxa de pedágio
Pra subir e pra descer.

Em Lei do morro, destaca-se o espaço da violência, não apenas aquela entendida de forma geral, voltada para a sociedade, mas uma violência interna do morro. Ancora-se a interpretação do morro como espaço da lei do bandido em outras unidades lexicais, atualizadas discursivamente e que constituem elementos do contexto lingüístico. Cagüetar aponta para o silêncio imposto pelo bandido (legislador) aos moradores do morro, ao mesmo tempo em que a desobediência ao silêncio caracteriza a violência em meter a mão na turbina, apertar com precisão, acertar o alvo, ou seja, ao desobedecer ao bandido, a pessoa torna-se um bandido, sendo obrigada a matar pra se defender.

Assim, configuram-se os indivíduos que obedecem e os que desobedecem a essa lei. Em limpeza e sujeira aponta-se para posições que o indivíduo ocupa na favela, no morro. Estar dentro da lei e ser limpeza e estar fora e ser sujeira. O que está fora da lei, ou seja, o sujeira, é esculhambado e tem o risco de morrer; o que está dentro da lei é o bom malandro cadeado, que respeita o silêncio imposto e é o que vai sobreviver.

Taxa de pedágio, subir e descer tem interpretação ancorada na própria lei do morro, da qual se entende que a taxa do pedágio para entrar e sair faz parte. Em toda a associação feita a elementos do contexto lingüístico, tem-se como base uma associação com o contexto sociocognitivo, ativando conhecimentos presentes na memória referentes às “leis da favela” impostas por bandidos.

Considerações finais

Verificou-se que os sentidos atribuídos à unidade lexical morro estão nucleados em torno de três visões: a alegria, a liberdade frente a opressão social e a violência interna. A unidade lexical foi interpretada em seus usos discursivos entendendo que os sentidos são determinados na relação de interlocução que compreende um “eu” e um “outro” que partilham conhecimentos de mundo em maior ou menor quantidade, responsáveis pela produção de sentidos. Tem-se, na interpretação, uma ativação de sentidos ancorada no contexto lingüístico com base no contexto sociocognitivo. Observa-se que esses conhecimentos são construídos socialmente, o que caracteriza os textos como formas de cognição social. As unidades lexicais, observadas em suas atualizações discursivas, ou seja, como lexias, revelam uma forma de uso social do conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. 4ª ed. Campinas: Pontes: UNICAMP, 1995.

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria lingüística. Lingüística quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

MATOS, Cláudia. Acertei no milhar. Samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

KOCK, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à Lingüística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva, produto do morro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

 

 

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