ANÁLISE DA
EM DOCUMENTOS DOS SÉCULOS XIX E XX
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (UEFS)
INTRODUÇÃO
Os documentos manuscritos que se acumulam nos acervos dos arquivos brasileiros representam uma fonte inesgotável de informações, permitindo a comunicação através do tempo e do espaço. Os documentos revelam a escrita de uma época e esta traz à tona a natureza do texto: seus argumentos, os propósitos e as intenções, o vocabulário etc. Quanto mais se conhece o texto mais revelações são feitas.
O discurso escrito transcende o espaço e a duração. Por si mesmo, pode ser difundido, em sua totalidade, em todos os tempos e em todos os lugares, dispensando a presença de quem o fez e, conseqüentemente, suprimindo a dependência de quem o recebe. Para Bottéro, “[...] a mensagem escrita tem a condição de dar impulso a uma série de ondas concêntricas de reflexão, ampliadas e aprofundadas sucessivamente” (1995: 22).
À Filologia cabe a tarefa de dar à luz os documentos que permanecem nos subterrâneos dos arquivos, pois assim está-se dando vida à memória de um povo. Este trabalho consiste em editar semidiplomaticamente textos de naturezas quaisquer.
A PESQUISA COM DOCUMENTAÇÃO MANUSCRITA
Desde a Antiguidade que os gregos já se preocupavam em salvaguardar suas obras clássicas do esquecimento e da degradação, criando, a partir do séc. III a. C., a Crítica Textual, com o intuito de editar criticamente os textos de Homero e de outros autores. Para Auerbach (1972: 11):
A necessidade de constituir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual; salvá-las não somente do olvido como também das alterações, mutilações e adições que o uso popular ou o desleixo dos copistas nelas introduzem necessariamente. Tal necessidade se fez já sentir na época dita helenística da Antiguidade grega no terceiro século a. C., quando os eruditos que tinham seu centro de atividades em Alexandria registraram por escrito os textos da poesia grega, sobretudo de Homero, dando-lhes forma definitiva.
Objetivando salvar determinados textos dos estragos do tempo, o Grupo de Edição de Textos da UEFS (composto por profissionais de diversas áreas, a saber: Letras, História, Artes Plásticas e Administração, além de estudantes de graduação: bolsistas de iniciação científica e voluntários)[1] vem desenvolvendo dois projetos de pesquisa: “Documentação de Feira de Santana: um trabalho lingüístico-filológico” e “Estudo histórico-filológico e artístico de documentos manuscritos baianos dos séculos XVIII ao XX”, e tem por objetivos: 1. Permitir a leitura dos documentos a partir do trabalho filológico de edição semidiplomática, o que possibilitará o acesso mais rápido de pesquisadores de outras áreas do conhecimento a esses documentos; 2. Resgatar parte da história baiana, referente aos séculos XVIII ao XX, através das edições semidiplomáticas dos documentos selecionados; 3. Tornar conhecida a existência desta documentação com o propósito de evidenciar a sua importância para diversas áreas do saber, tais como: Religião, Geografia, Direito, Genealogia, Antropologia, Sociologia, dentre outras; 4. Estudar o desenho da letra enquanto manifestação artística; 5. Editar semidiplomaticamente os documentos, visando sua publicação e posterior veiculação, não só nos meios acadêmicos, como para o público em geral, permitindo assim o conhecimento do documento sem a necessidade de manuseá-lo.
O “corpus” da pesquisa
O corpus de pesquisa deste trabalho é composto por documentos manuscritos cíveis e religiosos dos seguintes municípios: Água Fria, Cachoeira, Conceição da Feira, Feira de Santana, Riachão do Jacuípe, Santo Amaro, São Gonçalo dos Campos, São José, Serrinha e Tanquinho, Bahia – Brasil, pertencentes ao Arquivo do Arcebispado de Feira de Santana, Arquivo Público Municipal de Cachoeira, Arquivo Público Municipal de Feira de Santana e Arquivo Público Municipal de Santo Amaro, assim discriminados: Livros de casamento, batismo e óbito; Inventários e testamentos; Livro de notas e escrituras; Livro de tombo; Queixas-crime (autos de defloramento) e Termo de juramento.
O estudo do vocabulário
Os documentos selecionados para o estudo do vocabulário são relativos a processos-crime, sendo eles:
· Queixa-crime de arrombamento – documento pertencente ao Acervo de Monsenhor Galvão, sediado no Museu Casa do Sertão, órgão da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, sob a cota M–QC–01. Trata-se de um texto escrito em 1844; com tinta preta; em dois fólios – recto e verso.
· Auto de defloramento de Maria Juliana – documento pertencente ao Arquivo Público Municipal de Santo Amaro – Ba. Texto cuja escrita foi iniciada em 1903; com tinta preta; em sessenta fólios – recto e verso.
O ESTUDO TERMINOLÓGICO
A elaboração de um vocabulário requer uma prática lexicográfica que tome por base dois princípios distintos: o semasiológico ou o onomasiológico. Estes dois princípios se contrapõem. A semasiologia parte da forma (significante) para chegar ao significado (conceito). Trabalhos lexicográficos elaborados segundo este princípio privilegiam a polissemia, pois se organizam, apresentando para cada entrada, suas diferentes acepções. A onomasiologia, ao contrário, evidencia a sinonímia. Ela parte do conceito para examinar todas as formas ou significantes que o realizam. Todavia, os dois pontos de vista se complementam.
Os estudos terminológicos, enquanto matéria organizada e sistêmica, surgem em Viena – Áustria, nos anos 30 do séc. XX. O pioneiro desta área de pesquisa foi E. Wüster. O seu interesse estava centrado na superação dos obstáculos causados pela imprecisão, diversificação e polissemia da linguagem. A metodologia empregada por Wüster na confecção de dicionários consistia em estabelecer princípios preponderantemente onomasiológicos, contrastando com a lexicografia, esta de caráter semasiológico.
Sager (1993: 21) define assim a terminologia:
La terminologia es el estudio y el campo de actividade relacionado con la recopilación, la descripción y la presentación de términos, es decir, los elementos léxicos que pertenecen a áreas especializadas de uso en una o más lenguas. En cuanto a sus objetivos es semejante a la lexicografia, que combina la doble finalidad de la recopilación general de información sobre el léxico de la lengua con la de suministrar información y, en ocasiones, incluso con un servicio de asesoramiento a los usuarios de la lengua.
Os princípios estabelecidos por Wüster foram:
· A terminologia deve ser concebida como matéria autônoma;
· Os termos científicos e técnicos, sendo objeto de estudo, devem ser entendidos como unidades específicas de uma determinada área;
· O valor de um termo depende do lugar que ele ocupa na estrutura conceitual de uma dada matéria;
· Estudar o termo é normalizá-lo conceitual e denominativamente;
· A finalidade da terminologia é garantir a precisão e a unicidade da comunicação profissional.
A tarefa da terminologia é facilitar a comunicação entre profissionais de áreas especializadas. Com isso, reduzem-se as dificuldades existentes em uma determinada língua e amplia-se o intercâmbio entre línguas diversas.
A mensagem em uma comunicação cuja linguagem é especializada compõe-se de intenções e conhecimento, que são selecionados pelo emissor a fim de que seja a mais eficaz possível. A organização da mensagem se dá para que os objetivos da comunicação sejam atingidos, pois é imprescindível que se atenda cada vez mais às exigências dos grupos nos quais os falantes estão inseridos.
A comunicação entre especialistas de uma determinada área se desenvolve através de suas próprias convenções lingüísticas. Destarte, a normalização dos termos é preponderante para o estabelecimento de conceitos e designações.
Los lenguajes especializados han sido definidos como sistemas semióticos complejos, semiautónomos basados en el lenguaje personal y derivados de este, solo las personas que han recibido una educación especializada, emplean estos lenguajes de una manera eficaz para comunicarse con sus colegas y colaboradores. (SAGER, 1993: 156)
Segundo Santos (2004: 135) “A normalização dos termos confere à linguagem especializada objetividade e univocidade”.
O VOCABULÁRIO JURÍDICO
DE DOCUMENTOS DOS SÉCULOS XIX E XX
Um glossário terminológico jurídico representa uma contribuição para aqueles que se apóiam sobre áreas especiais. Não há pretensão normativa neste tipo de trabalho.
A seleção dos termos jurídicos foi feita a partir da edição semidiplomática de dois documentos, um do século XIX e outro do século XX, sendo uma Queixa-crime de arrombamento e um Auto de Defloramento, respectivamente.
A apresentação dos verbetes se dá ordenadamente em esferas semânticas. Os textos são indicados através da abreviatura do documento – QC = Queixa-crime, AD = Auto de defloramento –; a essa indicação seguir-se-ão o número do fólio e o número da linha correspondente. Apresentar-se-á também o contexto no qual consta o termo, vindo este em destaque.
O glossário terminológico jurídico
SUPLICANTE Adjetivo
Domínio: PESSOA
Definição: Pessoa que faz uma súplica. Pessoa que dirige uma petição, um requerimento a órgão judiciário; autor, requerente, peticionário.
Contexto: [...] como este fato constitua um crime publico, attendendo-se a presente representação que a V. S. dirije, espera a supplicante que a justiça se manifestará para punir o crime e desaggravar a honra. (AD, f. 3r, l. 17) – (QC, f. 1r, l. 5, l. 17, l. 20 / f. 1v, l. 2, l. 4, l. 6, l. 8, l. 14, l. 16, l. 20 / f. 2r, l. 1, l. 3, l. 4, l. 10, l. 15, l. 19, l. 20, l. 24, l. 26 / f. 2v, l. 6, l. 12) |
[AGRESSOR] Nome masculino
Domínio: PESSOA
Definição: Pessoa que agride, que pratica uma agressão. Pessoa ativa de crime doloso contra a vida ou de crime de lesões corporais dolosas.
Contexto: [...] quando ouvio o estrondo que com o arrombamento fizerão as mencionadas portas querendo levantar-se de uma rede que se achava foi ja de envôlto com os agressores [...] (QC, f. 1r, l. 11 / f. 1v, l. 3, l. 17)
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OFENSA Nome feminino
Domínio: AÇÃO
Definição: Lesão, física ou moral, causada contra pessoa.
Contexto: Depois do que Leolino Pinto Canguçu lhe atravessou o pescosso com um punhal principiando a offensa desde abaixo da barba [...] (QC, f. 1v, l. 11 / f. 2r, l. 26) |
[AGRAVANTE] Nome masculino
Domínio: AÇÃO
Definição: Pessoa que, em um processo, interpõe agravo. Circunstância que torna o delito mais grave.
Contexto: [...] Mirante mandado pedir que não consumasse o crime principiado. Este facto que se acha revestido das circunstancias agravantes do artigo [...] (QC, f. 2v, l. 3) |
[INQUIRIR] Verbo transitivo
Domínio: AÇÃO
Definição: Indagar, investigar, dirigir perguntas.
Contexto: [...] V. S. de designar dia para ter lugar a formação da culpa, inquerendo-se as testemunhas do rol abaixo, intimando-se o denunciado, com sciencia desta Promotoria. (AD, f. 2v, l. 12-13 / QC, f. 2v, l. 8) |
A ROGO Locução adverbial
Domínio: MODO
Definição: A pedido.
Contexto: A rogo de Maria Maximiana (AD, f. 3r, l. 25) |
[AUTUAR] Verbo transitivo
Domínio: AÇÃO
Definição: Proceder a uma autuação. Lavrar um auto contra a pessoa presa em flagrante delito.
Contexto: Anno de mil novicentos e trez nesta Cidade de Santo Amaro aos dous dias do mez de Junho, em meo escriptorio authuei a petição e dispacho nella [...] (AD, f. 4r, l. 25) |
[DAR FÉ] Locução verbal
Domínio: ATITUDE
Definição: O serventuário da Justiça atesta a verdade de algo de que tem notícia em razão de suas atribuições. Portar por fé.
Contexto: Eu Pedro Lopes Moniz Fiuza escrivão interino que o escrevi e dou fé. (AD, f. 4r, l. 29) |
[AUTO CONCLUSO] Locução nominal
Domínio: CONTRATO
Definição: Peça escrita de natureza judicial e conclusiva em que se registra a narração minuciosa, formal e autêntica de determinados atos judiciais ordenados pelo magistrado.
Contexto: Aos cinco dias do mez de Junho de mil nove centos e trez faço em meo Cartorio estes autos conclusos ao Juiz de Direito [...] (AD, f. 17r, l. 5) |
JUSTIFICAÇÃO Nome feminino
Domínio: CONTRATO
Definição: Comprovação judicial de algum fato ou relação jurídica, por meio de inquirição de testemunhas ou qualquer outro meio.
Contexto: Julgo por sentença a presente justificação para produzir os effeitos legaes pagas as contas e entregues a parte independente do traslado. (AD, f. 17r, l. 14) |
INTIMAÇÃO Nome feminino
Domínio: AÇÃO
Definição: Ato pelo qual uma autoridade dá ciência a alguém de algo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa.
Contexto: Mandado de intimação de testemunhas. (AD, f. 18r, l. 1) |
SEDUZIR Verbo transitivo
Domínio: AÇÃO
Definição: Convencer alguém à prática de um ato que lhe é prejudicial mediante ardis promessas enganosas. Praticar o crime de sedução.
Contexto: [...] tinha em sua companhia uma filha menor de nome Maria Juliana, de quem cuidava com zelo de mae extremoza, tanto mais, quanto presentia della se aproximar iminente perigo na pessôa do denunciado que por todos os meios procurava sedusir sua referida filha com fascinantes e enganosas promessas. (AD, f. 2r, l. 21/ f. 3r, l. 11) |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de edições semidiplomáticas de documentos dos séculos XIX e XX, cuja apresentação prima pelo caráter conservador, a fim de oferecer o texto o mais fiel possível à escritura da época, pode-se proceder a qualquer tipo de estudo que interesse ao pesquisador. Neste trabalho, a opção foi pelo estudo terminológico jurídico, já que foram realizadas edições de dois documentos – uma queixa-crime de arrombamento e um auto de defloramento, ambos relativos áquela área de conhecimento.
Faz-se mister esclarecer que esta incursão pela terminologia não esgotou todas as possibilidades de apresentação de um glossário terminológico. Apresentou-se aqui uma ínfima parte do que seria o glossário dos textos acima mencionados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para a leitura de documentos manuscritos. 2ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2003.
ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva. 12ª ed. ampl. rev. e atual. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004.
BOTTÉRO, Jean; MORRISON, Ken et al. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995.
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 20ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
GEORGES, Jean. La Escritura: memoria de la humanidad. Traducción Enrique Sánchez Hormigo. Barcelona: Ediciones B.S.A., 1998.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão e Irene Ferreira. 4ª ed. Campinas: UNICAMP, 1996.
MALTA, Cristóvão Piragibe Tostes. Dicionário jurídico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, [s/d.].
OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2ª ed. Campo Grande: Ed. da UFMS, 2001.
SAGER, Juan C. Curso práctico sobre el procesamiento de la terminologia. Traducción del inglês Laura Chumillas Moya. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez / Pirámide, 1993.
SANTOS, Arlete Silva. Nas entranhas da escrita do século XVIII: edição e estudo terminológico. Tese de Doutorado em Letras e Lingüística. Salvador: Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 2004.
[1] Diretório dos Grupos de
Pesquisa do Brasil – CNPq [Grupo de Edição de Textos].
Cf.
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