Estudo Etimológico na
Obra
EmíliA no País da Gramática
Valéria Marta Ribeiro Soares (UEFS)
Este trabalho objetiva fazer um inventário dos vocábulos latinos presentes no livro Emília no País da Gramática, de José Bento Marcondes Monteiro Lobato (1882-1948). Tal livro possivelmente foi editado em 1934, na década de 30, mesma década em que Lobato fez a tradução de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, pseudônimo do autor inglês Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898). Provavelmente teve acesso à Gramática Histórica, de Eduardo Carlos Pereira, pois a personagem Narizinho cita esta gramática, comprada por Dona Benta, como a responsável pela sabedoria repentina do rinoceronte Quindim sobre os fatos da língua.
O livro começa mostrando Pedrinho em dificuldades com a gramática e, como quase sempre acontecia, a avó Dona Benta exercita um poder formal, servindo, neste caso específico, de incentivadora da aprendizagem da língua materna. É uma personagem adulta que entra em cena mais como coadjuvante, para possibilitar a verossimilhança do relato. Os personagens-neto – Narizinho e Pedrinho –, os personagens-antropomórficos – Emília, Visconde e Palavras Personificadas e o personagem-intermediário – Quindim (o rinoceronte que fala) – participam das aventuras ao país da Gramática, viagem esta idealizada por Emília, o alter ego lobatino em versão infantil. Desde o primeiro capítulo – Uma idéia da Senhora Emília – fica claro que, para o verdadeiro aprendizado da criança, o estudo da língua deveria ser associado a um jogo, a uma brincadeira e, em torno de crianças, é que irá girar a ação do livro-gramática.
A despeito do caráter didático da obra, Lobato consegue explicar diversos conceitos lingüísticos, brincando com seus leitores mirins, através dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo. O livro torna-se um misto de didatismo e de literatura. Por se tratar de obra estética, também, deve-se ter cautela, na abordagem de assuntos de natureza técnico-científica. O Lobato-escritor não se anula frente ao Lobato-lingüista, filólogo, latinista. Esta última denominação é uma das que mais interessa nesse trabalho.
Emília no País da Gramática possui 27 (vinte e sete) capítulos que tratam dos vários níveis da língua portuguesa: o fonológico, o morfológico e o sintático, não deixando de abordar a história interna e externa da língua, a semântica e a estilística. Essa espécie de Gramática Normativa Mirim funde teoria e prática para os pequenos leitores, respeitando seu imaginário infantil.
Diz o biógrafo de Lobato que, depois de alfabetizado, ele teve um professor particular e, aos sete anos, vai finalmente para a escola, passando por uma sucessão de estabelecimentos. Em um deles, o São João Evangelista, encontra angustiantes dificuldades com o idioma português, a ponto de se sentir martirizado nesse aprendizado. Provavelmente num curioso processo de vingança, Lobato viria a se inspirar nessa experiência para escrever Emilia no País da Gramática. Acrescente-se a essa dado a crônica, O Doutor Quirino, autobiográfica, impressa no jornal O Taubateano, em 12/09/1937, que revela o desconforto do menino Lobato, ao estudar a língua materna, e a forte admiração que o mestre e diretor, Dr. Antônio Quirino de Sousa e Castro, do colégio já citado, inspira nele, em Taubaté.
Um dia fui parar em seu colégio, onde ele era o professor de gramática. O compêndio encadernado em couro, de Bento José de Oliveira... O colégio ficava a uns três quilômetros de minha casa, distância que eu vencia com o Bento José diante dos olhos, procurando decorar a lição, mas sem entender coisa nenhuma. O que mais tarde me fez escrever “Emília no País da Gramática”, talvez fosse a lembrança do muito que naquele tempo me martirizou a tal “arte de falar e escrever corretamente”. [...]
Comecei a compreender aquele homem e a fazer-me seu amigo, Vi logo que era o que La Bruyére, na sua coleção de caracteres humanos, definiria como “O Estudioso”. O Doutor Quirino outra coisa não fez na vida senão estudar. Passou-a estudando. Mas estudando por estudar – arte pela arte. Estudando por amor ao estudo e não para qualquer fim de imediata aplicação prática. O seu grande, e talvez o seu único prazer na vida, foi sempre esse: estudar.
Para evidenciar a importância e a evolução da língua viva falada pelo povo, o livro põe, no capítulo XV – Uma nova Interjeição – a Senhora Etimologia “uma velha coroca, de nariz recurvo e uma papeira – a papeira da sabedoria” para falar como lingüista.
[...] As pessoas cultas aprendem com professores e, como aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem o pouco que sabem com outros incultos, e só aprendem mais ou menos, de modo que não só repetem os erros aprendidos como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos adiante. Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e, portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.
Em diversos capítulos do livro, Lobato recorre à etimologia para explicar a mudança dos vocábulos do latim para o português e vice-versa. Assim o fez com as palavras esse, speculum, castra, entre outros. É relevante informar que, embora faça utilização freqüente das regras gramaticais e do latim, os personagens do sítio não perdem a oportunidade de criticar os gramáticos e filólogos.
[...] os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas rebarbativas, dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo.
[...] A cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carranças, chamados filólogos, ou então por gramáticos e dicionaristas, gente que ganha a vida mexericando com as palavras, levando o inventário delas etc.
[...] Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
A obsessão em reclamar os etimólogos é tamanha, que Emília, no capítulo XXVI – Emília Ataca o Reduto Etimológico –, trava uma discussão com a Senhora Etimologia e elimina consoantes e vogais desnecessárias das palavras que teimavam em seguir a antiga Ortografia Etimológica.
Dos vinte e sete capítulos da obra, será extraído, pelo menos, um vocábulo de origem latina dos capítulos II, VIII, IX, X, XIV, XV, XVII e XXVI, pois, em cada um deles, aparece, pelo menos, um vocábulo de origem latina. Vejamos, agora, tais vocábulos:
HOC ANNO (Narizinho, no capítulo II – Portugália, conversa com a palavra Ogano)
– E a senhora, que é? Perguntou-lhe.
– Sou a palavra Ogano.
– Ogano? O que quer dizer isso?
– Nem queira saber, menina! Sou uma palavra que já perdeu até a memória da vida passada. Apenas me lembro que vim do latim Hoc Anno, que significa Este Ano. Entrei nesta cidade quando só havia uns começos de rua; os homens desse tempo usavam-me para dizer Este Ano. Depois fui sendo esquecida, e hoje ninguém se lembra de mim. A senhora Bofé é mais feliz; os escrevedores de romances históricos ainda a chamam de longe em longe. Mas a mim ninguém, absolutamente ninguém, me chama. Já sou mais que Arcaísmo; sou simplesmente uma palavra morta...
POER (Capítulo VIII – No Acampamento dos Verbos).
– Vamos começar nossa visita por aquele – disse Emília – só porque ele é mais novinho e menor do que os outros.
Dirigiram-se todos para lá mas o desapontamento foi grande. Encontraram apenas o verbo Pôr e sua família.
– Ora essa – disse Emília. – explique, Quindim, o que faz aí essa coruja? Por que não está no acampamento grande junto com os outros?
Quindim suspirou e começou:
– Antigamente Pôr pertencia à Segunda Conjugação e chamava-se Poer. Mas o tempo, que tanto estraga e muda os verbos, como tudo mais, fez que apodrecesse e caísse o E de Poer. Ficou Pôr, como está hoje. Os gramáticos então criaram uma nova conjugação para ele e seus parentes Compor, Depor, Propor, Dispor, Antepor, Supor e outros. Depois outros gramáticos acharam que não estava bem criarem uma conjugação inteira para um verbo só, e trouxeram o pobre Pôr e sua família para este anexo da Segunda Conjugação e lhe deram o nome de Verbo Anômalo, que quer dizer, Verbo Anormal da Segunda Conjugação.
– Que complicação! Seria muito mais simples fabricarem um E novo de pau para substituir o que apodreceu – lembrou Emília.
ESSE (Capítulo IX – Emília na Casa do Verbo Ser)
O verbo Ser falou muita coisa de si, contando toda a sua vida desde o começo dos começos. Disse que já havia morado na cidade das palavras latinas, hoje morta.
– Naquele tempo eu me chamava Esse. Depois que a cidade latina começou a decair, mudei-me para as cidades novas que se foram formando por perto e em cada uma assumi forma especial. Aqui nesta tomei esta forma que você está vendo e que se escreve apenas com três letras. Na cidade de Galópolis virei Etre. Em Italópolis virei Essere. Em Castelópolis sou como aqui mesmo.
ADVÉRBIOS LATINOS (Capítulo X – A Tribo dos Advérbios).
Emília viu ainda outra caixa de Advérbios de ares estrangeirados.
– E estes gringos? – perguntou.
– São advérbios latinos que ainda têm uso no Brasil. Moram nessa caixa o Máxime, o Infra, o Supra, o Grátis, o Bis, o Primo, o Segundo, e outros [...].
POENE (Capítulo XIV – A Senhora Etimologia).
– Estou pensando em coisas passadas – respondeu o excelente paquiderme – Estou pensando na velhice destas palavras. Vieram de muito longe, sofreram grandes mudanças e continuam a transformar-se, como essa Pena de escrever que acaba de perder um N. A maioria delas já morou na Antiga Roma, dois mil anos atrás. Depois espalharam-se pelas terras conquistadas pelos romanos e misturaram-se às palavras que existiam nessas terras. E vieram vindo, e vieram vindo, até chegarem ao que hoje são.
– Enquanto vocês estavam de prosa com Pena (dó), eu pus-me a recordar a forma dessa palavra no tempo dos romanos. Escrevia-se Poene. E antes ainda de escrever-se assim, escrevia-se Poine, no tempo ainda mais antigo em que ela morava na Grécia.
– Que divertimento interessante não deve ser o estudo da vidinha de cada palavra! – exclamou Pedrinho. – Hão de ter cada uma o seu romance, como acontece com a gente.. .
– E assim é – confirmou o rinoceronte. – Esse estudo chama-se Etimologia.
SPECULUM (Capítulo X – Uma nova Interjeição).
– Tomemos a palavra latina Speculum – continuou a velha. – Essa palavra emigrou para Portugal com os soldados romanos, e foi sendo gradativamente errada até ficar com a forma que tem hoje – Espelho.
– E os ignorantes de hoje continuam a mexer nela – observou Narizinho. – A gente da roça diz Espeio.
– Muito bem lembrado – concordou a velha. – Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos como a forma Espelho devia ter sido repelida com horror pelos cultos de dantes. Mas como os cultos de hoje aceitam como certo o que já foi erro, bem pode ser que os cultos do futuro aceitem como certo o erro de hoje. Eu, que sou muito velha e tenho visto muita coisa, de nada me admiro. O homem é um animal comodista. Daí à sua tendência a adotar os erros que exigem menor esforço para a pronúncia. Espelho exige menor esforço do que Speculum, e por isso venceu. Espeio exige menor esforço do que Espelho. Quem nos diz que não acabará vencendo, nestes mil ou dois mil anos?
CASTRA (Capítulo XV – Uma nova Interjeição).
– As palavras desta cidade nova, onde estamos, vieram quase todas da cidade velha que fica do outro lado do mar. Lá na cidade velha, porém, essas palavras levaram uns dois mil anos para se formarem.
– Como foi isso? Explique.
– Nos começos, as terras em redor dessa cidade haviam sido ocupadas pelos soldados romanos, que só falavam latim. Esses soldados moravam em acampamentos (ou Castra, como se dizia em latim), de modo que foi em redor dos acampamentos que a língua nova começou a surgir.
– Que língua nova?
– A portuguesa. [..].
– Então a língua portuguesa não passa dum dialeto do latim?
– Perfeitamente. E também a língua francesa, a espanhola e a italiana não passam de outros tantos dialetos do mesmo latim. [...].
MONÓCULO, CENTÍMETRO e MINERALOGIA (Capítulo XVII – O Susto da Velha).
– Então aquelas palavras no cercado não são Híbridas e sim de puro sangue.
– Perfeitamente – concordou a velha. – Um verdadeiro vocábulo Híbrido é o Monóculo que já citei; como também Centímetro e Mineralogia, porque nos três casos metade da palavra é grega e outra metade é latina. Estas sim, são as verdadeiras mulas da língua.
SABBATUM (Capítulo XXVI – Emília Ataca o Reduto Etimológico).
Emília acenou para uma das palavras que andavam por ali. Era a palavra Sabbado com dois BB.
– Senhor Sabbado venha cá.
Sabbado aproximou-se.
– Diga-me por que é que traz no lombo dois BB quando poderia passar muito bem com um só?
Sabbado olhou para o lado da casinha da velha, com expressão de terror nos olhos. Emília viu que ele estava com medo de manifestar-se livremente, e levou-o para mais longe dali. Sabbado então disse:
– É por causa da bruxa velha. Como venho do latim sabbatum, que, por sua vez, veio do hebraico Sabbat, ela não consente que eu me alivie desse B inútil. Há séculos que trago no lombo semelhante parasito, que nenhum serviço me presta.
No português, temos muitas palavras que nasceram com a língua, continuação do latim vulgar e do romance lusitânico. Às vezes, palavras arcaicas, mortas e enterradas reaparecem, pois tinham ficado guardadas na memória do povo, numa região mais afastada ou foram redescobertas num texto por este ou aquele escritor, que as devolvem à circulação, inadvertidamente ou de propósito, como nesta obra lobatiana. O nobre Horácio já tinha notado fato e proclamou-o, em primorosa linguagem na Epistula ad Pisones, mais conhecida por Arte Poética (vs. 70-72). No Capítulo XXVI – Emília Ataca o reduto Etimológico –, Quindim, o gramático e lingüista, usa a expressão latina “Est modus in rebus”, para evidenciar a importância do uso lingüístico pelo povo.
Referências BIBLIOGRÁFICAS
CÂMARA JR. J. Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. São Paulo: Ática, 1989.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens Indo-Européias ao Brasil Contemporâneo. 4ª ed. ver. São Paulo: Ática, 1991.
FERREIRA, Arrelio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
KHEDE, Sônia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986 (Série Princípios).
LOBATO, Monteiro. Conferências, artigos e crônicas. 5ª ed. v. 15 São Paulo: Brasiliense, 1968.
––––––. Emília no País da Gramática. 5ª ed. v. 15. São Paulo: Brasiliense, 1998.
MELO, Gladstone Chaves de. Ensaio de estilística da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
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