O DICIONÁRIO OS FEZ HOMEM E MULHER
Nelly Carvalho (UFPE)
APRESENTAÇÃO
A linguagem recria a realidade de acordo com a experiência de vida de seus falantes. Para a maioria dos estudiosos, a realidade humana é gerada pela vida social. Como todos os sistemas simbólicos atuais foram fabricados por e para os homens, (as mulheres pouco espaço tiveram para contribuir) a realidade social resultante será derivada de sua vontade e de seu ponto de vista: leis, gramática, crença, filosofia, poder político e econômico. Na gramática da Língua Portuguesa já o sabemos, o gênero-rei é o masculino que comanda os sentidos, que exige ferozmente a concordância, que impõe suas regras, da mesma forma que na sociedade.
E o vocabulário, como se comporta? Este arquivo do idioma e da cultura encontra-se entesourado nos dicionários da língua materna que registram como verbete de entrada, como forma que prevalece, o termo no gênero masculino seja substantivo, adjetivo ou pronome. O feminino quando aparece tem razões especiais, nunca neutras, nem positivas. Torna-se uma nova entrada, se o feminino corresponder a termo diferente do masculino – galo/galinha – boi/vaca ou quando adquire um sentido diferente, em 99% dos casos pejorativo – cachorra, macaca e outros casos mais...
É que o dicionário não é só o celeiro do idioma, mas é o depositário da cultura. Nele estão contidas as interpretações da comunidade sobre fatos, objetos, pessoas. O dicionário é considerado um oráculo e um tira-teima, respeitado como obra imparcial que reproduz a língua real/ social. Na microestrutura dos verbetes estão as acepções do termo-entrada bem como abonações que apresentam o funcionamento do termo no discurso nos verbetes. Neles, o sujeito da enunciação é apagado, transmitindo a impressão de neutralidade. Porém a marca do pensar da comunidade, da forma como é interpretada pelo autor está presente nas definições, sobretudo, aquelas que abordam questões onde os preconceitos sociais são mais arraigados. Se nos termos que contêm o sema sexo, o dicionário já destila ideologia, nos verbetes básicos – homem/mulher – a ideologia pode ser observada com maior facilidade.
E não se trata apenas da língua portuguesa, como também nas demais línguas cujas culturas arquivam nas expressões e no tratamento no dicionário, a perspectiva da dominação da mulher pelo homem.
Para observar a prática significante da comunidade de língua portuguesa, especificamente no Brasil, resolvemos estudar o confronto homem / mulher (no dicionário!) utilizando como corpus os dicionários mais usados no Brasil, recentes e de grande porte, junto com um único dicionário português europeu, também recente, porém, básico.
EMBASAMENTO TEÓRICO
Uma língua não é um todo homogêneo e monolítico. Ela se expressa através de variedades sociais e regionais, registros, níveis, dialetos, gírias, jargões que fazem parte da comunicação. Esta variação já foi tida inclusive como marginal. Porém desde que Labov (1973) afirmou ser a variabilidade inerente à toda língua, esta passou a ser reconhecida como um fato central, pois a língua é um sistema simbólico nas relações sociais. Por isso ela não é neutra, e não comunica apenas; permite a censura, a mentira, o desprezo, a opressão, o lazer, a alegria, o jogo.
A ligação do individuo com a língua passa por sua ligação com a sociedade. Assim, entre os muitos parâmetros da variação, existe a diferenciação sexual, semente da discriminação. A discriminação sexual é assimilada junto com a discriminação social pela convivência conjunta de homens e mulheres. A língua é, por sua estrutura de conotações e metáforas, um espelho cultural que fixa representações simbólicas, que repete preconceitos e estereótipos, ao mesmo tempo em que os alimenta.
A que imagem de mulher nos remete a língua? Em que medida ela reflete o papel social de mulher?
As diferenças entre o falar de homens e mulheres têm sido observadas desde a Antiguidade. Heródoto fala sobre isso, citando as amazonas.
Os indigenistas registram esse aspecto nas tribos brasileiras. O nosso Serafim da Silva Neto lembra o fato de ter a fala da mulher o traço de conservadorismo, que foi importante na Península Ibérica, nas mudanças do latim para o português, e, no Brasil, no processo de transplantação da língua.
Nos Estados Unidos, foi adotada corrente que julga como determinante lingüístico, a condição feminina e não o sexo, isto é, adota ponto de vista social e não psico-biológico.
Raoul Smith, observando a fala feminina na língua inglesa, dizia ser caracterizada por usos lexicais diferentes, onde os campos semânticos (cores, p. ex) eram bem especificados e como também havia o uso freqüente de intensificadores e apoio constante em interrogações da adesão ou confirmação. (tag questions) Seria uma fala pouco convincente e insegura.
Alguns admitem a existência de um código feminino e um masculino, distintos. A língua dominante é sempre dos homens e a das mulheres é percebida como derivada.
No caso da mulher, o cultural triunfa sobre o biológico. Os elementos sócio-culturais tentam naturalizar a sujeição, mas ser diferente não é ser desigual, nem inferior Apesar disso, as diferenças ecoam como desigualdades e as desigualdades como inferioridades.
A mulher se percebe no mundo como o outro mediatizado pelo homem, sem a menor autonomia do ser. Não tem autonomia nem tem assegurada sua identidade.
As representações do mundo se fazem por via masculina, síntese de um eu poderoso.
Os símbolos culturais traçam o arcabouço de um feminino distanciado das potencialidades da existência. Nenhuma persona alcança a individualidade sem antes construir os símbolos da existência.
É preciso admitir que a língua comum, a língua dominante, é antes de tudo, a dos homens o que explica que a língua das mulheres seja vista como desviante. Esta língua essencialmente masculina exprime o desprezo pelas mulheres.
Os qualificativos injuriosos para a mulher, reduzida à escolha entre a Santa e a Prostituta, a gíria sexual e sexista, revelam ser os dicionários, criações ideológicas cujas definições refletem a mentalidade conservadora do usuário da língua.
O estudo do gênero (gramatical ou natural) e seus valores simbólicos são índices da prevalência do espírito conservador e machista no funcionamento da língua, com a absorção do masculino pelo feminino, nas dissimetrias morfológicas, na linguagem pejorativa. Enfim, nos dicionários, o tratamento dos verbetes incorpora a ideologia que subjaz à sua concepção.
Na vida social, a forma como é referida a identidade da mulher, definida por seu pai ou marido, é um índice lingüístico/social dessa prevalência masculina.
Se a língua é sexista, os dicionários, repositórios da cultura por ela veiculada, também o são.
Este será o nosso estudo.
METODOLOGIA
As idéias acima expostas encontram origem e guarida em muitos estudiosos que abordaram o assunto, em lingüistas como S. Benhamou, Marina Yaguello, Raoul Smith, Graça Krieger, em sociólogos como Rose Marie Muraro e em antropólogos como Fátima Quintas.
Tomando as reflexões dos autores acima como bússola, lemos atentamente os verbetes/ entradas Homem e Mulher nos seguintes dicionários:
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. AURÉLIO: O. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Século XXI. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1999. (Incluímos alguns exemplos da edição anterior do AURÉLIO – 1986)
KOOGAN, Houaiss. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1999.
MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.
VILELA, Mário. Dicionário do Português Básico. Porto: Edições ASA, 1998.
A seguir, a análise levou em consideração os seguintes itens:
Entrada Homem/ Entrada Mulher
Entrada principal
Características específicas/ Sentidos particulares
Discurso sobre Homem e Mulher
Uso como adjetivo
Presença do homem no verbete mulher
Presença da mulher no verbete homem
Tipos masculinos/ Tipos femininos
Iniciamos a análise pelo dicionário de Aurélio/ SÉCULO XXI (sem perder de vista a edição anterior, como já citamos) a e a ele dedicamos a maior parte das observações, pelo fato de ser, entre as obras estudadas, a mais recente (naquele momento: primeiro semestre de 2001), com as definições mais extensas e representativas, relevantes para o que queríamos observar. O dicionário de Michaelis, embora extenso, ofereceu menos material, sobretudo no referente ao termo Mulher. Koogan-Houaiss é um dicionário enciclopédico e não apenas lingüístico, tendo, portanto, um espaço menor para estudos da linguagem, e o de Mário Vilela, o único de Portugal a ser analisado, é básico; na prática, um dicionário escolar.
Transcrevemos os verbetes no final do trabalho para facilitar as consultas e confrontações.
DESCRIÇÃO DO CORPUS
As entradas – Homem/ Mulher
A distorção dos conteúdos de mulher e homem observada no exame dos verbetes dos dois vocábulos num corpus de dicionários da língua contemporânea se impõe para estabelecer aproximação entre o tratamento das duas unidades lexicais e constatar a apreciação dos significados respectivos.
Esta analise visa constatar os preconceitos contidos nos verbetes dos dicionários examinados. Os autores dos dicionários aplicam nas entradas o tratamento polissêmico ou o tratamento homonímico. Este último possibilita mais precisão, mas não evita a confusão. As entradas são constituídas por enunciados apresentados como exemplos da língua comum introduzidos por uma numeração ou por signos tipográficos com valor metalingüístico.
Entrada principal
Na maior parte do dicionário, os artigos homem e mulher têm entradas bem distintas:
| Sentido geral e especificado
Mulher { Sentido particular: esposa
| Sentido particular – doméstica
| Ser humano em geral
Homem { Individuo do sexo masculino
De um modo geral, também em outras línguas, a maioria dos dicionários tradicionais e alguns mais modernos utilizam organizações semelhantes Os que foram examinados não revelaram usos diferenciados dos acima apontados, no tratamento dos dois vocábulos.
A estrutura do verbete no dicionário de Aurélio
Descreveremos, neste tópico, os verbetes do dicionário de Aurélio, que podem ser conferidos nos Anexos.
No verbete Homem, até a terceira entrada é concernente a toda humanidade, mas sobretudo o último exemplo refere-se apenas ao sexo masculino: como se vê na abonação: Errei, fui homem! (Fagundes Varella).
A partir da entrada quatro, refere-se especificamente ao sexo masculino sendo que a quinta é a idade adulta e a sexta, a idade viril.
Apenas a entrada oito traz referência à mulher. As demais se referem ao homem dentro da sua especificidade. O adjetivo humana parece conferir ao homem a exclusividade e a posse da humanidade (ver humanismo).
Os verbetes têm a dupla função semasiológica e onomasiológica.
A metalíngua, isto é, o conjunto de elementos descrevendo o funcionamento da língua, permite observar as definições dicionárias como indicação prioritária, específicas e nominais (sinonímicas) segundo a observação das noções regulamentadas pela tradição, as definições iniciais (primeiras entradas) são as mais gerais.
No exame das entradas, desde o primeiro momento, a importância dada à reprodução humana no verbete mulher, é indicação prioritária. O papel de genitor (gerador) função de reprodução masculina não aparece para homem.
Nas definições, há certa confusão entre maturidade psíquica, física, sexual e moral.
Características específicas
Apesar das indicações definitórias de caráter geral nas primeiras entradas, ressalta que as qualidades ditas femininas são ligadas a aspectos e comportamento femininos na relação com o homem e a família, como também os defeitos.
As qualidades masculinas revelam a moral e a ética dos homens.
Sentidos particulares
Há uma grande diferença entre o tratamento do dicionário para os sentidos particulares de homem e mulher.
Mulher sendo elemento de lexia complexa, isto é, de expansão da unidade, tem um lugar especial no tratamento homonímico e um lugar importante no tratamento polissêmico, onde se revelam sempre os sentidos depreciativos do termo (remete a um único referencial: prostituta).
Homem, seja executivo, soldado, operário, parece não precisar de tratamento especial, pois o sentido de base permanece.
Conclui-se que o traço diferencial, considerado como essencial, revela-se arbitrário, sem neutralidade. A indicação definitória se revela como uma fórmula única e as demais definições transmitem conteúdos tradicionais (ultrapassados em muitos casos) dos dois vocábulos.
A estrutura dos verbetes no dicionário Michaelis
As entradas principais definem o homem como equivalente a ser humano (primeira e segunda). Na terceira equivale a ser humano do sexo masculino e na quarta refere-se à humanidade. A quinta traz a sua relação implícita com a mulher (marido ou amante) e a sexta e a sétima são definições apreciativas: quem procede com madureza ou possui um alto grau distintivo de hombridade. Seguem-se as lexias complexas a partir de homem, cujos traços negativos estão em homem de duas caras, de maus bofes. Os demais são expressões positivas que incluem homem marginal (!) como aquele que vive entre duas culturas, concluindo com a expressão seja homem: isto é, suporte com coragem um mal.
A entrada um de Mulher é como feminino de homem (não é ser, nem pessoa). Na entrada dois está a relação implícita com homem iniciada na um (esposa). A partir da entrada seis, as lexias remetem a prostituta, excetuando mulher de casa (doméstica) mulher de governo (que não é mulher de estado), mas equivalente a governante), mulher de virtude (significa bruxa e advinha), mulher durázia – (de certa idade) Algumas remetem ao lesbianismo: mulher– macho – mulher– homem. Mulher-objeto é a definição que mais contraria o conceito de pessoa, pois esta passa a ser apenas tida como fonte de prazer.
A estrutura dos verbetes no dicionário Koogan /Houaiss
O verbete Homem remete, na entrada um, à condição psicológica do ser humano. Na entrada dois, à humanidade e a sua evolução social. Na entrada três, ao ser humano do ponto de vista moral. Na entrada quatro, remete ao sentido de ser humano masculino (há, portanto, um tratamento homonímico) na idade viril. A entrada cinco é valorativa: pessoa que possui qualidades atribuídas ao sexo masculino, assim como a entrada seis. A sete coloca o homem com indivíduo quando ele equivale ao indefinido alguém.
As lexias complexas a seguir remetem ao poder, às qualidades e às grandezas do sexo masculino. Somente homem do povo, pobre homem e homem de palha não contem semas de exaltação.
Meu homem é a única expressão que traz implícita a relação com a mulher: marido ou amante.
O verbete Mulher é bem reduzido, com poucas entradas. A primeira é ser humano do sexo feminino; na segunda, a que atingiu a puberdade, e na terceira está registrada sua relação com o homem, legal ou não: esposa, amásia, concubina.
A seguir, inúmeras lexias remetem a meretriz: mulher à toa, mulher de rua, mulher pública, mulher solteira. Não é referido o papel de mãe, caso raro; na relação com homem, esposa está no mesmo patamar de concubina e amásia, como sinônimos. A prostituta é que ocupa o maior espaço na descrição de mulher.
A estrutura dos verbetes no dicionário do português europeu
de Mário Vilela
Escolhemos o Dicionário de Mário Vilela por representar a língua portuguesa na sua terra de origem, uma cultura em muitos aspectos diferenciada da brasileira.
A organização dos verbetes é diferente. O verbete Homem inicia-se pela representação fonética e categorização morfológica, para colocar seis contextos frasais. As lexias complexas (de significação positiva) são um número de cinco com duas frases feitas ou clichês, de homem para homem/ ser homem. Na entrada (G) enumera o feminino do termo, o aumentativo e o diminutivo. Na entrada (S) descreve os significados de Homem: ser humano, a humanidade, a espécie humana. A seguir, refere-se ao ser humano masculino e à idade adulta. A abonação cinco (5) traz a relação implícita com a mulher: marido, companheiro, amante; e na seis equivale a qualquer um (indefinido).
Construção semelhante tem o verbete Mulher. Na entrada um (1) adverte o autor que o nome deve ser precedido de um possessivo ou determinativo no caso de equivaler à esposa, companheira.
A abonação 11 confirma o termo como pessoa do sexo feminino oposto à homem. Bastante cuidadoso e formal, adverte também que senhora deve substituir mulher quando significa mulher casada ou idosa, menina, quando for solteira e rapariga quando for jovem.
Estar uma mulher não é atingir a puberdade, mas estar crescida, (não explica se há conotação de amadurecimento sexual).
Mulher de + nome indica uma profissão que em geral não é de prestígio, pois o exemplo é mulher de limpeza. O nome precedido da preposição de pode indicar também o caráter (mulher de fibra). Na entrada S 2 com tratamento de homonímia, o verbete afirma ser a mulher aquela que está ligada a um homem pelo casamento, tendo como sinônimo esposa. Não há nenhuma referência ao papel social de prostituta, amante, concubina. Mulher de limpeza é a única lexia complexa.
INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
O discurso sobre o homem e sobre a mulher
Após descrever os verbetes nos quatro dicionários escolhidos, seguiremos, interpretando os dados já descritos no item 4, utilizando para tal, apenas o dicionário de Aurélio, por conter maior número de entradas e de abonações.
Prolongando as definições, o discurso nas abonações mostra as unidades em função explicitando-as e ilustrando-as. Constituído de exemplos de empregos produzidos e reproduzidos ou observados e de citações, permite observar o campo sintagmático dos dois vocábulos. As citações têm intenções ambíguas, porque fora do contexto sofrem desvio. Geralmente são citações de texto ultrapassados, não em relação a seu valor literário, mas em relação à realidade atual, dificilmente testemunhando a validade dos conceitos.
Apesar disso, estas citações têm influência sobre os consulentes – imaturos ou não – e, a despeito das mudanças vertiginosas do século XX, conservam a postura de referências comportamentais.
Adjetivação homem x mulher
Mulher
O termo Mulher, usado como adjetivo, tem vários significados que não são sequer ambíguos; têm dependência maior do contexto, forte conotação sexual ou/e são pejorativos. Ser mulher, tornar-se mulher, indicam o inicio da fertilidade ou a perda da virgindade – (mulher, não! Respeite)
Os diversos modelos revelam o caráter feminino, podendo ser percebido, segundo o dicionário, os traços específicos da mulher: submissão, indecisão, falta de firmeza, ou papel de auxiliar: como mulher, sabe apoiá-lo na medida certa.
Homem
Contrariamente ao termo mulher, o termo homem não contém sema de função biológica. Sempre apreciativo/ valorativo, ele ora é associado ao caráter viril, ora à maturidade ou às qualidades específicas, quando tem valor adjetival.
Traços dominantes dos caracteres particulares
No verbete mulher, ficam evidentes a importância:
a) Do aspecto biológico da mulher.
b) Do aspecto da relação sexual, legitima ou não.
c) Do papel social, com sentimentos e qualidades associadas apenas à função de mãe de família.
d) De sua honradez, tomando por base a presença masculina duradoura a seu lado.
e) Da marca de vivência independente e desregrada, para as que não seguem os modelos aceitos.
De acordo com o dicionário, calcado na mentalidade geral, são traços femininos característicos o instinto maternal, o devotamento, o pudor, como também a leviandade, a inconstância, o capricho, a irracionalidade.
Já as qualidades reveladas pelo homem (e para o homem) nas formações sintagmáticas são exclusivamente positivas.
Maturidade, liderança, inteligência, integridade, poder de decisão, vitalidade, coragem, lealdade.
A frase “é um homem”, é um elogio. (Vide o poema IF (Se) de Rudyard Kipling. A seguir, compare-o com Amélia, a mulher de verdade de Ataulfo Alves.)
A expressão de homem para homem – dá conta da lealdade e da franqueza nos homens.
A presença formal ou oculta do homem no verbete mulher
A definição de mulher:
1) envolve a presença masculina para a mostrar a diferença;
2) mostra a relação desviada ou correta que se pode ver nas abonações: O rapaz deixava-se envolver por mulheres. Com mulher sabe apóia-los nos momentos certos. Papai ficava na igreja vigiando se entrava uma mulher à-toa, corria com ele.
3) mostra-se a repartição dos papeis: a mulher exemplar é a mãe; nos verbetes, as definições sempre remetem às funções reprodutoras.
4) aceita como papeis femininos o de filha, mãe, companheira, esposa, irmã, sendo exigidas as qualidades de fidelidade, discrição (ficar em 2º plano) submissão e honestidade.
5) faz o homem de vitima, quando no papel de impura (como se vê nas abonações acima) sendo acusada de nociva à sociedade
6) refere-se à mulher como objeto (não-pessoa) quando considerada apenas fonte de prazer, tornando-se coisa no processo de reificação.
A infidelidade feminina está presente nas “predicações” fútil e interesseira, no sentido de amante e nos inúmeros sentidos de prostituta. A parte positiva está contida no acepção 9, o único papel social aceito para ser desempenhado pela mulher: esposa.
A presença da mulher no verbete Homem
No verbete Homem, em nenhuma acepção ou exemplo, há alusões à infidelidade, ou traços depreciativos, sendo vários os papeis sociais designados (homem de negócios, homem público etc.).
O item 7, do verbete homem, confrontado com o item 5 do verbete mulher, ambos definidores das pretensas qualidades masculinas e femininas, demonstra esta superioridade, de acordo com o dicionário. Enquanto as qualidades femininas são dedicação, carinho, compreensão, as masculinas são coragem, força, vigor.
Através do discurso dicionarizado sobre as relações homem x mulher, são próprios do homem a ação, a criação, a ciência, a coragem, a força física e moral, enquanto a mulher se equilibra na dualidade esposa x prostituta, a primeira, fiel, apagada, obediente e submissa, com ênfase no papel biológico e a segunda fútil, perdida, volúvel, parceira sexual de todos (mulher pública) iniciadora nos mistérios do sexo para garotos (mulher-professora), a única liberta da submissão porém sedutora para o mal, como mostram as abonações já vistas. Seu nome é legião, pois várias denominações remetem a esse tipo de mulher..
No verbete (em Aurélio) a única promoção feminina, excetuando esposa, é mulher de negócios, que não corresponde em freqüência de uso aos empregos do termo.
Mulher–objeto implica alguém rebaixado ao estatuto de coisa. Difere do homem como agente e único actante
Mulher–macho, pelo contrário, é aquela que abdica de sua condição feminina e assume uma masculinidade que não lhe é própria seja apenas nas atitudes ou, indo mais longe, na opção sexual.
Tipos masculinos/ femininos
Se homem do povo, homem marginal e homem de rua são hipônimos de homem que revelam condição humilde de quase vítima social, salvo efeminado (um gol contra!) os demais hipônimos revelam o respeito e a reverência como o homem é visto e em nenhum momento atingem sua virilidade ou diminuem seu papel social. A culpabilidade feminina aparece nos conteúdos eufêmicos, mulher do mundo, da vida, da zona (debochada, dissoluta, degradada) e a série enorme de termos chulos que denominam este tipo de mulher (ver prostituta) Fêmea tem conotação negativa, diferente de macho
A representação social e os papeis econômicos se configuram numa série de termos substitutos. Mostram eles a importância do homem na vida pública e os limites do domínio privado para a mulher. Ainda hoje é difícil formar o feminino nos nomes de profissão (árbitro, professor-adjunto, presidente e muitos outros), ela que é dona-de-casa, esposa, mãe. No máximo para ela, é ser mulher de César, mulher de reputação intocável. Mulher-de-letras não consta nas definições enquanto homem de letras está presente, junto com homem de Estado, homem de bem, homem de ação, homem do mundo (posição.) A lista de profissões masculinas de prestígio é particularmente abundante desde as eclesiásticas que não existem para mulheres, papa, bispo, arcebispo, até poeta que não satisfez com o feminino poetisa considerado inferior e quase igual a poetastro.
As profissões femininas de prestigio são ambíguas, ligadas à beleza (modelo) à graça (miss), ao palco e à cena (atriz, artista, dançarina, estrela, vedete). Doméstica é hiperônimo muito freqüente nas referências à mulher e suas atividades.
O saber e a ciência não fazem parte das profissões de prestigio femininas, como também acontece em francês. Parece continuar valendo o ditado: Mula que faz him e mulher que sabe latim nunca tem bom fim.
CONCLUSÃO
O tratamento polissêmico dado aos itens não evita confusões. Em homem, confunde-se o ser viril com o ser humano.
Analisando o discurso dicionarizado sobre homem/ mulher, depreende-se pelas relações sintagmáticas dos dois vocábulos, que a mulher é nomeada como inconseqüente, medíocre e submissa por natureza e por comportamento e que o homem nasce corajoso, viril e forte, representando os verdadeiros valores morais da sociedade. Os elementos paradigmáticos de homem e mulher são signos em situação pertencendo à língua, porque já receberam a sanção social da comunidade, enfocando a confirmação dos estereótipos tradicionais.
As distorções podem ser observadas, usando alguns pares como exemplo:
Mulher pública - Homem público
Mulher do mundo - Homem do mundo
Mulher honesta - Homem honesto
Mulher da vida - Homem da vida
Mulher aventureira Homem aventureiro
Encontramos um desequilíbrio depreciativo para a mulher, em relação aos equivalentes masculinos.
A ideologia conservadora, o peso das tradições são dominantes e evidentes.
Os autores de dicionários, impregnados de subjetividade, mas também rendendo-se à visão de mundo circundante, ajudam a perpetuar modelos culturais.
O verbete de dicionário visto pela comunidade como locus acreditado de informações lingüísticas e extralingüísticas, como fonte fidedigna da língua e da cultura, produz sem neutralidade as definições do termo. A discriminação da mulher e a valorização do homem surgem de corpo inteiro, incontestáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENHAMOU, S. Analyse dictionnarique de femme et de homme. Cahiers de Lexicologie publiés par Bernard Quémada. Didier Nº 48. 1996.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário de língua portuguesa século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FROMILHAGE, Catherine. Sancier. Unne introduction à l’analyse Stylistique. Paris: Dunod, 1991.
KOOGAN, Houaiss. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Delta, 1999.
KRIEGER, Maria da Graça. Da prática significante lexicográfica. Revista Organon, 23. Porto Alegre: O Texto em Perspectiva. Vol. III, 23. 1995
MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.
MURARO, Rose Marie. A mulher na construção do mundo futuro. Petrópolis: Vozes. 1975
QUINTAS, Fátima. A mulher e a família no final do século XX. Recife: Massangana; Fundação Joaquim Nabuco, 2000.
VILELA, Mário. Dicionário do português básico. Porto: ASA. 1996.
YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes. Petite Bibliothéque Payot. Doc. 75. Paris, 1992.
ANEXOS
Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda
Verbete – homem
S. M. (HOMINE)
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
Ser dotado de
8)
9)
10)
11)
12)
13)
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De
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Novos
Verbete – mulher
S. F. (Muliere)
1-
2-
3-
Que atingiu a
4-
5-
6-
7-
Depreciativo:.
8-
9-
10-
11-
Concluída as
Mulher-à-toa |
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- Mulheraça Mulheraço
- MulherAda Mulherama
- Mulherio Mulherão
- Mulher – dama Mulher – de gamela
- Mulherengo – s. m. Mulher–macho
- Mulherico Mulherigo
- Mulherzinha/mulezinha Mulher–homem
- Mulherona Mulher–objeto
- Mulher–solteira
O
Dicionário Michaelis/Melhoramentos
Verbete– Homem
Sm (lat. homine)
1
2 indivíduo da
3
4 a humanidade. 5 pop.
6
7
8 pop.
9
H. às direitas:
H. –base. Mil: sargento,
H. da
H. da lei: magistrado, advogado.
H. da rua:
H. Das Arábias:
H. das botas: o
H. de ação:
H. de
H. de bem:
H. de botas:
H. de conta,
H. de cor:
H. de Deus: piedoso, santo.
H. de duas caras: de
H. de estado: estadista.
H. de fibra:
H. de letras:
H. de
H. de
H. de Neandertal:
H. de negócios:
H de palavra: o
H de palha:
H. de poucas palavras:
H. de pulso:
H. do mundo:
H. dos
H. elástico: pelotiqueiro
H. feito:
H. fera, Sociol:
Verbete –Mulher
sf (lat.
muliere) 1.
2. Esposa.
3
4
5
6
M. à-toa:
prostituta. M. bará: a
M. –dama:
o
M. da rótula: marafona. M. da rua: meretriz.
M. das onze letras, pop:
M. da vida:
meretriz. M. de armas: o
M. de casa:
a
M. de cores, Folc:
M. de ferreiro, gír: cadela.
M. de governo:
o
M. de má nota:
prostituta. M. de soldado:
M. de virtude:
adivinha, bruxa,
M. do fado: meretriz.
M. do fandango:
meretriz. M. do piolho, Folc:
M. durázia:
M. errada:
a desonesta,
M. fatal:
o
M. –homem: lésbica. Pl: mulheres-homens e mulheres-homem.
M. logrativa:
M. macho:
a)
M. –objeto:
M. perdida: prostituta.
M. pobre, Bot;
Aum: mulheraça, mulherão, mulherona.
Dicionário
Verbete – Homem
/
A
O
O
/ Indivíduo.
//
//
//
//
//
//
//
//
//
//
//
//
//
// Pobre homem,
//
// O
//
//
Os
Verbete Mulher
s. f.
/ aquela
/ Esposa. / Amásia, concubina.
//
Mulherada s. f. V. Mulherio.
Mulherame s. f. V. Mulherio.
Mulher-dama
s. f. Bras. (NE) Pop. O
Dicionário do
Verbete– Homem
(1)
A
l
(2)
l
(4) _
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