PROBLEMAS NA TRADUÇÃO DE TEXTOS BÍBLICOS
E LITÚRGICOS
Nestor Dockhorn (UNIG e UGB)
Introdução
A obra intitulada Bíblia é obra produzida em épocas diferenciadas e por múltiplos autores. Além disso, tendo sido redigida em três línguas diversas, hebraico antigo, aramaico e grego antigo, carrega consigo características dessas línguas e da diversidade estilos de autores diferentes.
Traduzir a Bíblia para idiomas modernos é tarefa bastante difícil, porquanto, além dos problemas comuns a qualquer tradução, ainda já a necessidade de adaptação aos vários tipos de leitor. Com efeito, se o tradutor quiser se ajustar à cultura de pessoas que utilizam uma linguagem socialmente considerada mais culta, a tradução será de um tipo. Se a tradução se dirigir a pessoas muito simples, a tradução será outra. Assim se o público alvo forem jovens do tipo que poderíamos chamar preconceituosamente grossos e que não têm tabus na linguagem, a linguagem da tradução poderia teoricamente adaptar-se a seu modo de falar. Poderíamos até dizer que Adão traçou Eva, se houvesse bastante coragem do tradutor. O tradutor até poderia empregar palavrões, como algo muito natural para esse tipo de jovens.
Poderemos considerar dois aspectos: o léxico e a sintaxe.
O léxico nas traduções bíblicas.
Na transposição do léxico dos originais para o léxico da língua para a qual se quer traduzir, é necessário que, devido a implicações da doutrina envolvida, o termo empregado, por exemplo, em português tenha um conteúdo semântico exato, que não deturpe o pensamento. Mas não basta isso. Com efeito, como o intelectivo está necessariamente envelopado por halos afetivos, é preciso que o termo evoque esses halos e provoque as mesmas reações que o termo produzia no leitor primitivo.
Além disso, há termos que deturpariam o pensamento original, ou que hoje não são mais empregados. Tiramos alguns exemplos de uma tradução atribuída a João Pereira de Almeida. Veja-se abaixo:
(1) “... uma virgem desposada com um varão”
Que quer dizer, para o povo simples, um varão? Uma vara grande?
Não seria melhor dizer:... uma moça que era noiva de um homem (bem no popular poderia ser um cara).
(2) “... assisto diante de Deus...
O povo entende assistir (a)um programa, mas não assistir diante de Deus.
(3) “... a virtude do Altíssimo...”
Que é virtude para o povo? Seria melhor dizer força.
(4) “... achaste graça diante de Deus...”
Que é achar graça?Dar risada?
(5) “Alegrai-vos e exultai...”
Alguém está consciente de que exultar é dar pulos de alegria?
(6) “Bem-aventurados os misericordiosos...”
Que é que o povo entende com essa palavra?
(7) “... e se descerrarão os ouvidos...”
Quem entende isso?
Casos especiais são aqueles que envolvem expressões relativas ao sexo ou poderiam ser chamados de palavrões. É o caso de conhecer, usado constantemente para dizer ter relações sexuais. A sua tradução poderia variar muito conforme os leitores a que se destina a tradução. Para alguns leitores as expressões transar com, ficar com, fazer amor com não causariam trauma. Alguns, mesmo que fossem usadas expressões como comer, f..., traçar não ficariam chocados.
São Paulo, em determinada epístola, emprega o termo grego KOPROS [´kopros], que corresponde à celebre palavra que começa por m... e significa excremento. Algum tradutor teria coragem de usar o termo bem adequado?
Problemas de sintaxe
Apontamos abaixo alguns problemas e sintaxe.
a) Problema muito simples é a colocação do vocativo. Na língua portuguesa atual, o vocativo costuma ser o primeiro elemento; na língua grega e na latina, o vocativo é inserido no meio da sentença.
b) Muitas vezes se vê um servilismo exagerado, por exemplo, na sintaxe de orações aditivas que se sucedem; em fornulações que não se usam em português, tais como falou e disse.
c) Um trecho muito bom para se tomar o pulso da tradução é o início do Evangelho de São Lucas, que apresenta uma série de orações subordinadas. O tradutor deve ser corajoso e cortar em períodos tudo aquilo que é complexo para o leitor de hoje. Mas não deve fazer como o tradutor da Bíblia, tradução ecumênica, que tornou a sintaxe do texto do início de Lucas mais complexo que a do original. No original, aparecem uma oração principal e cinco subordinadas. Na mencionada tradução, aparecem uma principal e oito subordinadas.
d) Outro problema a ser pensado pelo tradutor é a pessoa de tratamento (você, tu, o senhor, a senhora?).
e) A língua grega é rica em particípios, que não eram tão abundantes na língua latina, nem o são na língua portuguesa. O latim, por exemplo, para traduzir o particípio perfeito passivo, usado em relação à Virgem Maria, lançou mão da expressão gratia plena. Qual deveria ser a tradução exata disso?
Conclusão
O problema da tradução de textos bíblicos ou litúrgicos (os litúrgicos em geral derivam dos bíblicos) não é fácil. Para se conseguirem resultados, deveriam ser feitas pequenas tentativas, conjugando esforços de teólogos e lingüistas.
O próprio autor destas linhas está fazendo uma tentativa de traduzir o Evangelho de São Lucas.
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