Quando apalavra reduz o
homem
a
coisa
a
coesão
lexical
em
Sargento
Getúlio
Denise Salim
Santos (UNIG)
Elemento
importante
que garante a
coesão e a
coerência de
um
texto é o
léxico
empregado nas
formações enunciativas. A
relação
semântica
entre os
itens
lexicais e a co-presença de
traços
semânticos
total
ou
parcialmente
idênticos sinalizam
dois
mecanismos de
coesão lexical,
segundo Elisa Guimarães (1995: 29): a
simples iteração
ou
repetição e a
substituição léxica. Fávero (1997: 18) afirma
que “há
certos
itens da
língua
que têm a
função de
estabelecer referência,
isto é,
não
são interpretados semanticamente
por
seu
sentido próprio,
mas fazem
referência a alguma
coisa
necessária à
sua
interpretação”, constituindo-se num
primeiro
grau de abstração,
pois o
interlocutor/leitor
estabelece uma
relação sígnica
para
um
objeto
tal
como
ele o percebe
dentro do
contexto cultural
que o envolve. Estamos falando, então, de
um
tipo de
coesão: a
coesão referencial
que pode
ser realizada a
partir de
mecanismos de
substituição e de reiteração.
É
também a
parte da
língua
que
em
primeiro
lugar
arquiva o
saber
lingüístico de uma
determinada comunidade, representando
simbolicamente o
mundo extralingüístico e partilhado
pelos
falantes dessa comunidade. Sendo a
lexicologia a
ciência
que
estuda o
léxico de uma
determinada língua, uma de
suas
funções é
apresentar
informações
acerca das
unidades
lexicais necessárias à
produção do discurso.
Nesta
pesquisa pretendemos
levantar as
ocorrências
lexicais
empregadas
por João Ubaldo
Ribeiro na
construção do
discurso da
personagem Getúlio dos
Santos Bezerra, o
sargento Getúlio,
que empresta
seu
nome ao
romance publicado
em 1971,
com o recorte
específico da
coesão
em
relação às
formas de se
referir a
outra
personagem do
romance: o
preso político.
Nesse percurso buscaremos
criar
interseções
entre léxico, discurso, e textualidade na
construção do
texto literário, abrindo
espaço
para a
observação de
novas
unidades
lexicais
que possam
ocorrer e
suas
implicações semânticas,
bem
como
a
natureza
de
suas
formações.
A
aplicação da
repetição e da
sinonímia
como
estratégias de
coesão
textual e
sua
eficiência na
concatenação das
partes do
discurso narrativo
serão avaliadas aqui. Nessa
etapa
também
nos interessará
verificar as
relações de hiponímia e hiperonímia
entre as
palavras
ou
grupos de palavras,
isto
porque Getúlio estará fazendo
referência ao
preso
durante a narrativa,
sem
nunca dizer-lhe o
nome:
Então
eu
lhe
digo:
lhe
faço as
piores
coisa
[...].
Nem
acredita mais,
eu
acho.
Ou
então
acredita,
nem
está
aí
nem
vai chegando
mas
talvez
nem
se lembre
mais
do
nome
dele.
Ninguém
se lembra
mais
nem
do
nome
da
gente
e
me
lembro do
nome
do Amaro e se quisesse
me
lembrava do
nome
do peste,
mas
não
quero e esqueci (SG: 103).
Esse
fato demandará
um
trabalho de
garimpagem
lexical
em
busca das
formas
nominais
que atendam à
necessidade
expressiva do escritor, às
características e à
visão de
mundo de Getúlio,
sua ideologia, os
sentimentos provocados
pela
frustração
diante dos
desmandos do
coronel Acrísio Nunes e extravasadas na
agressividade verbal,
explicável
pela
possível
interpretação de
incompetência
profissional do
sargento
que
sempre cumpriu o
que
lhe foi
ordenado; às
variantes
lingüísticas de
natureza diatópicas, diastráticas e diafásicas
adequadas
para
não
incorrer na
armadilha
textual das iterações
cansativas, desnecessárias
ou
inadequadas ao
contexto
discursivo.
Coesão
e
léxico
O
recurso à
substituição atém-se ao
emprego de pró-formas,
elementos
gramaticais representantes de uma categoria. Assim,
são encontradas as pró-formas
pronominais; pró-formas
numerais; pró-formas
verbais; pró-formas adverbiais.
Quanto à reiteração, os
recursos
são
mais amplos. Vejamos:
·
repetição do
mesmo
item
lexical;
·
sinonímia,
sem
perder de
vista
que a
sinonímia
perfeita
não existe. O
contexto possibilita a
expansão da
característica polissêmica do signo, dependendo do
contexto
em
que
ele é
empregado a
partir da
essência
semântica da palavra.
Assim a
questão
semântica da
sinonímia desloca-se do
plano
lexical
para o
textual e contextual.
·
hiperonímia,
quando se estabelecem
relações
entre
primeiro
termo
para o
segundo do
tipo todo-parte; classe-elemento – do
geral
para o
mais específico.
·
hiponímia,
quando o
processo é inverso à hiperonímia,
ou seja, a
relação do
primeiro
termo
para o
segundo é a
mesma de elemento-classe; parte– todo, do
específico
para o geral.
·
expressões
nominais definidas,
ou seja,
repetição do
mesmo
fenômeno
por
formas diversas, baseadas no
conhecimento de
mundo e
não
somente
nos
conhecimentos lingüísticos.
·
Nomes
genéricos (gente, pessoa, coisa, negócio etc.)
que funcionam
como
itens de
referência anafórica.
·
elipse
A reiteração
vazia de
intenções coesivas pode
ser avaliada
pelo
leitor
como
incompetência do
produtor do
texto que,
por
algum motivo,
não sabe
como
utilizar os
mecanismos de reiteração,
ou seja,
substituir
um lexema
por
outro
ou outros,
formalmente distintos,
mas
que semanticamente
lhe
são próximos,
assim considerados
por apresentarem semas afins, o
que possibilita a
substituição
léxica sinonímica.
Talvez o
desconhecimento de
que
não há
sinônimos
perfeitos e
que a
busca de uma
acepção no
dicionário
não deve
ser aleatória,
mas
sim contextualizada, seja uma das
causas do
emprego de
itens
lexicais inadequados
que acabam
por
gerar
incoerência num texto.
Para afastar-se de uma
falha
textual – a
repetição
pura e simples,
sem
implicações semântico-estilísticas– incorre-se
em outra: a
substituição inadequada de
determinados
itens
lexicais descontextualizados.
Uma das
característica da
literatura
contemporânea
brasileira é a de
trazer
para o
seu
interior os
traços de
oralidade
que marcam a
fala do
usuário da
língua nas
suas variações diatópicas, diastráticas e
diafásicas na
tentativa de
dar à
personagem
ou narrador
em
primeira
pessoa
um
tom discursivo
mais
próximo da realidade.
Ainda
que
esse
tipo de
texto
pertença ao
universo da
modalidade
escrita e
por
isso tenha
como pressuposto
um
projeto de elaboração, de escolhas, de
organização (o
que à
primeira
vista o colocaria
em
oposição à fala, ao
processo
imprevisível da
interação face-a-face
próprio do
uso oral) é
comum observar-se o
esforço empreendido
pelos
escritores no
sentido de se apropriarem das
variantes
lingüísticas
como
estratégia de
construção das
personagens e da
conseqüente delimitação do
contexto
em
que a
situação
narrativa ocorre.
No
texto literário,
em
que a expressividade é
convidada a construir,
desviar
ou
acentuar significados, a
simples
repetição de uma
palavra
ou
expressão pode
produzir
efeitos de
sentido
inusitados de
grande
relevância
para a significação
geral do
texto ao
mesmo
tempo em que,
além de
assumir
força articulatória dos
elementos
significativos
ali presentes,
trabalha a
sua coerência. (Guimarães,
1995: 29)
Assim acontece no
romance de João Ubaldo Ribeiro,
Sargento Getúlio, publicado
em 1971, ao
qual pretendemos
aplicar os
princípios de
coesão
em
relação à
maneira
como o
escritor
trabalha o
léxico de
referência a uma das
personagens do livro, o
preso político,
que deverá
ser conduzido de Paulo Afonso a Aracaju
por Getúlio dos
Santos Bezerra,
homem de
confiança do
coronel Acrísio Nunes,
mandante da captura. Portanto, a
narrativa vai
ocorrer no
agreste nordestino,
feita
por
um narrador
em
primeira pessoa,
com
pouca
ou nenhuma instrução,
cuja
origem e
infância foram
passadas miseravelmente
em Sergipe.
Ele
mesmo
conta:
Mas se
eu
não sou
um
homem
despachado
ainda estava
lá no
sertão
sem nome, mastigando
semente de mucunã,
magro
como
filho do cão,
dois
trastes
como possuídos, uma
ruma de filhos,
um
tico de
comida
por semana,
um
cavalo
mofino
para
buscar sa tresmalhadas de
qualquer dono. (SG:
14)
... e
eu sendo eu,
quando
eu
era
menino comi
barro e entrei
por
dentro do chão, comendo barro, cagando
barro e comendo de novo,
oi coisa,... (SG: 155)
Saído de lá, foi
para Aracaju onde,
depois de
sobreviver
algum
tempo
como engraxate, ocupa o
posto de
sargento da
Polícia Militar, vislumbrando a
oportunidade de afastar-se da
miséria
até
então
vivida:
Em
Aracaju tenho as
costas
quentes
e
não
é
assim
que
Getúlio vai se
ver
de uma
hora
para
outra.
Principalmente
depois
que
levar
vosmecê. Tem
ambientes
em
Aracaju,
gente
a
seu
favor. Coisas.
Não
gosto
desse serviço,
não
gosto
de
levar
preso. Avexame.
Depois
de
levar
vosmecê lá,
assento
os
quartos
num
lugar
e
largo
essa
vida
de cigano. (SG: 13)
A
partir daí, a
intuição artística, a
vivência do escritor,
seu
conhecimento do
meio
ambiente e dos
tipos
que povoam os
contextos narrativos (Preti,
2004: 121) aproximam a
linguagem
literária da
realidade falada.
Um das
áreas
em
que
mais se verifica a infiltração da
oralidade na
literatura é o
campo lexical. As
variantes regionais, a gíria, o
repertório comum, o
palavrão
ou
expressões de
insulto e
ironia estão
presentes
como
manifestação da
variante oral,
além das
inovações lexicais,
frutos da
necessidade
expressiva do
produtor do texto, os neologismos,
que podem
ser fonológicos, sintáticos,
semânticos e
neologismos
por empréstimo,
segundo a classificação de Ieda Maria Alves (1994).
Em
Sargento Getúlio, foram encontrados
muitos
trechos
que servirão de
exemplos
para os pressupostos
teóricos apresentados
até aqui.
Mas
antes julgamos
pertinente
apresentar o
quadro de
ocorrência das lexias
simples
que estabelecem
coesão referencial e a
freqüência
com
que aparecem
Ocorrência |
Função
adj /subst |
Freqüência. |
Homem |
substantiva |
21 |
Paciente |
Substantiva |
14 |
Infeliz |
Substantiva |
2 |
Cristão |
Substantiva |
1 |
Vivente |
Substantiva |
1 |
Sacrista |
Substantiva |
1 |
Capadócio |
Substantiva |
1 |
Preso |
Substantiva |
2 |
Cabrunco |
Substantiva |
1 |
Cabrunquento |
Substantiva |
2 |
Pirobo |
Substantiva |
1 |
Pirobão |
Substantiva |
2 |
Ordinário |
Adj/subst |
2 |
Capadócio |
Substantiva |
1 |
Ordinário |
Adj/Subst |
1 |
Criaturo |
Substantivo |
1 |
Espécie |
Substantiva |
1 |
Peste |
Substantiva |
25 |
Bexiguento |
Subst/adjetiva |
2 |
Apustemado |
Adjetivo |
1 |
Cão |
Substantiva |
3 |
pustema |
substantiva |
2 |
Coisa |
Substantiva |
13 |
Traste |
Substantiva |
14 |
Trem |
Substantiva |
2 |
Lixo |
Substantiva |
1 |
Troço |
Substantiva |
2 |
Trempe |
Substantiva |
6 |
Mala |
Substantiva |
1 |
Arreio |
Substantiva |
2 |
Carga |
Substantiva |
1 |
Bosta |
Substantiva |
4 |
Presente |
Substantiva |
3 |
Encomenda |
Substantiva |
1 |
Pacote |
Substantiva |
1 |
À
exceção das duas
unidades
lexicais –
homem e
preso – todas as
demais
formas de referenciação estão carregadas de
pejoratividade,
ironia
ou agressividade. Comparativamente, a
condição
humana é recuperada no
texto
pela
repetição
muito
freqüente do
substantivo homem. Essa
escolha
não
nos parece aleatória,
porquanto o
aumento de
freqüência se dá
em
três
momentos narrativos
específicos:
a)
logo no
início da narrativa,
quando Getúlio refere-se ao preso, deixando
ainda
transparecer
respeito e
certa
consideração
pelo
preso
político
1) Tomando uma chuvinha está se vendo
que é
um
homem distinto, um
homem
muito asseado,
com
suas
costeletas trevessadas e tomando
um banhozinho essas horas. (SG: 37)
2) Botamos o
homem
em
marcha
até a casa,
atrás do hudso... (SG: 47)
b)
quando está
diante de outras
pessoas discutindo o
destino do
preso
3)
Seu Nestor,
melhor o
homem
ficar inteiro.
Minha
obrigação é
entregar o
preso inteiro. (SG: 59)
4) Digo
que o
homem bateu
com a
cara no vrido,
depois de
dar
dois
tombos na estrada. (SG: 60)
5) Vosmecês
vão e
eu fico e converso
com o
padre e
depois solto o homem. (SG: 98)
6¨) Vosmecês
me contaram
que o
chefe
não
quer
mais
saber disso, creio, creio.
Assim sendo,
eu posso
soltar o homem,
mas
com vosmecês
aqui
não solto, de
formas
que espero vosmecês
ir saindo na
mesma
paz
que entraram e
depois
que vosmecês
sair
eu solto o
homem e vou embora. (SG: 98)
Observe-se
que
em (3) aparece uma
relação de hiperonímia
entre
homem e
preso sendo a
primeira
palavra a de
sentido
mais
geral e a segunda, a de
sentido
mais delimitado, deixando o
texto
menos vago.
Nos
demais excertos, a
ocorrência dessa
palavra cumpre a
função de
reiterar ao
longo do
texto
um
elemento
importante
para a
interpretação dos
fatos narrados.
Em
torno do
traço sêmico [+humano]
vai
girar uma
série de
formas nominais,
que contribui
para a
construção de
um
universo referencial
com
relação ao preso, a
partir do
discurso de Getúlio que, aos poucos, vai pincelando
toda
sua
ira
em
relação à
possível “causa” da desconstrução
de
seu
mundo interior. Os
objetos
ou
seres
são percebidos
por
seus
atributos e, de
atributo
em atributo, o
escritor vai tecendo
redes de
sentido
com as
quais caracteriza
seus personagens. No
quadro 1
são encontradas lexias
simples
empregadas
fora de
sua
função primeira. Ali estão relacionadas
formas nominais,
quer adjetivas
quer substantivas. Constata-se
que a
ocorrência de
substantivos é
enormemente superior, tornando
mais
concreto o
objeto referido. Consultando-se
dicionários
gerais,
verifica-se
que as
entradas paciente,
infeliz cristão, vivente,
ordinário,
cristão têm
como
categoria
gramatical
primeira a de adjetivo,
como mostramos a seguir,
embora apresentem
também a
acepção
com
função substantiva, o
que contempla a nuança de
sentido
empregada no
texto:
paciente adj. 2g. (sXIV cf. FichIVPM)
1
que tem
paciência ('virtude');
sereno, conformado 2
que aguarda tranqüilamente,
que sabe
esperar;
calmo <passageiro
p. > <ouvinte p. > 3
que persiste na
realização de
um
trabalho; perseverante <pesquisador
p. > 4
que revela
ou exige
paciência <descobertas
científicas exigem
observação p. > s. 2g. (sXV)
5
pessoa
que
espera calmamente,
que persiste
com
serenidade 6
indivíduo
doente 7
indivíduo
que está
sob
cuidados
médicos 8
réu
que vai
ser submetido à
pena de
morte[...];
infeliz adj. 2g. s. 2g. 1 que ou aquele que não é feliz 2
que ou aquele que não foi favorecido pelas circunstâncias, pelo destino ou pela
natureza; desgraçado, fracassado, miserável <candidato i. > <as i.
vítimas da catástrofe> <os i. saíram do campo sob estrondosa vaia> <socorrer
os i. > 3 B que ou aquele cuja presença não é desejada,
bem-vinda 4 B N. E. infrm. que ou aquele que é marcado pela
excepcionalidade; danado, desgraçado <cabra i. para ganhar no jogo> <o
i. jamais perdia uma partida> adj. 2g. 5 que tem desfecho
desfavorável; infausto <experiência i. > <expedição i. > <destino
i. > 6 que exprime infortúnio, desdita, infelicidade <olhar i.
> <uma notícia i. > 7 não apropriado; inadequado, inconveniente,
lamentável <palpite i. >
cristão adj. s. m. (sXIII cf. IVPM) 1 diz-se de ou aquele que
professa ou freqüenta igreja de uma das modalidades do cristianismo <a
doutrina c. > <os filósofos c. > <o c. das catacumbas> 2
diz-se de ou o que é conforme ou compatível com os princípios do cristianismo <teve
uma vida c. > <embora sem o hábito, continua um c. na ética> adj.
3 que recebeu influência do cristianismo ou de seus princípios <a
poesia c. de Jorge de Lima> <o existencialismo c. > 4 infrm.
apropriado, claro, razoável <desenvolveu uma explanação c. > s.
m. 5 SC em Santa Catarina, entre 1847 e 1860, alcunha dada
pelos liberais, ditos judeus, aos conservadores 6 infrm.
qualquer pessoa, criatura humana <assaltava com impropérios qualquer c. que
passasse> 6. 1 infrm. us. como indeterminador de pessoa <–
Sem trabalho, como pode um c. sustentar a família?> 7 SC
infrm. m. q. cresto não há c. que agüente B infrm.
diz-se de situação, fato ou pessoa, de aceitação insuportável
gram a) fem
vivente adj. 2g. (sXIV cf. FichIVPM) 1 que vive, tem vida; vivo <dizem
que o ancião ainda é v. > <os seres v. > s. 2g. 2
qualquer criatura viva; ser vivo <não sabemos que futuro nosso planeta
reserva aos seus v. > 3 RS indivíduo, pessoa
etim lat. vivens, éntis
part. pres. de vivère 'viver, estar em vida'; ver viv-; f. hist.
sXIV vivente, sXIV viuete, sXIV uyuete, sXV vyuentes
Nas
ocorrências citadas
acima registra-se a
presença do
artigo
que funciona
como translativo, na
terminologia de Tesnière, e
que
anteriormente foi citada
por Guimarães (1994) e Fávero (1997)
como
expressões
nominais definidas, fazendo a transposição do
adjetivo a
substantivo no
processo de
conversão
que resulta, também,
em alguma alteração de
sentido explorada
expressivamente
pelo escritor. Vejamos, então, a
ocorrência dessas lexias na exemplificação a
seguir, chamando a
atenção
para o
alto
valor de pejoratividade e de
desprezo
já comentado:
7)...
sargento, pegue o paciente.
Como é,
seu
padre? Pegue o paciente. E foi
aí
que
eu ri
porque achei
mesmo o
bicho
com
cara de paciente... vamos,
seu paciente,
doutor paciente, ôi, ô i. Apois
não tem
cara de
paciente
mesmo? Fico
com
vontade de
fazer
como se fosse
um animal, sui aí, paciente,
cada gaitada, mestre,
cada gaitada, ui. O
paciente
já se viu, é
um
paciente escrito. (SG: 66-67)
8)Padre,
que foi
que teve o
infeliz? (SG: 65)
9)...
botamos
água e
sal na
boca do infeliz. (SG: 66)
10)...
ou dá
um
fim
direto nesse cristão. (SG:82)
11) O
padre
também vem
ensinar umas rezas e
eu e Amaro ficamos aprendendo as rezas e
o
vivente
quer se
meter
por vezes. (SG: 90)
12)...
lhe faço uma desgraça, pirobo
semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do
cão dagota do
estupor balaio. (SG:27)
13)
Dois
gritos o
ordinário
não deu. (SG: 130)
Esgotam-se
nos
exemplos apresentados as reiterações
que atendem ao
traço
semântico [+
humano]. Passamos
agora a
outro
conjunto de lexias exploradas
por João Ubaldo Ribeiro, configurando a
referência [– humano, + animal]
que formaliza o
processo de
degradação do preso, a
partir do
uso dos
vocábulos
animal e bicho.
14)...
para
mim
esse
peste é
bicho; está virando bicho.
(SG: 44)
15) É
bicho pode crer. (SG:58)
16)
Pra
mim
ele é bicho,
não faz diferença. (SG:59)
17) O
bicho, acho
que
não vai
poder
falar
mesmo
nem
para rezar... (SG: 64)
18) É
preciso
entregar
esse bicho. (SG: 84)
19)
Vez
por outra,
pego o
animal e espio nas gengivas. (SG:
107)
20)
Isso é
boi de
matadouro é
animal
cheio de idéias.
Não pode
morrer no mato. (SG:56
21)...
não tá
bom
pendurar
esse
animal pelum
pé? (SG: 135)
22) É
por
isso
que
eu vou
levar
esse animal. (SG: 136)
Cabe
ainda
acrescentar a
ocorrência de lexias complexas
que fazem
referência ao
prisioneiro
através de
expressões metafóricas relacionadas a animais,
tais
como
cachorro bexiguento,
capão da peste,
capão do
rabo entortado, viado
corredor (SG: 27)
ou às lexias
composta a
partir da aglutinação das
bases
constituintes
como fidumaégua, fidumavaca, fidumajega (SG: 27)
Dando continuidade ao
processo de
degradação da
condição humana,
um
outro
vocábulo é
empregado
com de altíssima freqüência,
conforme é apresentado no
quadro 1. É o
signo
peste
que carrega uma
carga
semântica
negativa na
maioria das
acepções dicionarizadas
ligadas ao
seu
sentido de base,
conforme verificamos no
fragmento do
verbete
abaixo
Peste s. f. (sXV cf. FichIVPM) 1
infect
doença
infectocontagiosa
que se
manifesta
sob a
forma bubônica,
pulmonar
ou septicêmica, provocada
por Bacillus pestis,
que é transmitido ao
homem
pela
pulga do
rato 2
mal
contagioso;
pestilência 3
epidemia
que acarreta
grande
mortandade 4
tudo
que corrompe
física e
moralmente 5
coisa
funesta 6
excesso de
qualquer
coisa
prejudicial
ou danosa 7
mau cheiro,
fedor 8 P infrm.
coisa malfeita,
ordinária s. 2g. 9 B
infrm.
pessoa de
maus bofes, mal-humorada, criadora de
problemas <aquele
p. voltou a
incomodar
minha
família (...)
Eis algumas
ocorrências
retiradas do
romance:
23)...
atar
esse
peste num
lugar (SG: 42)
24)...
dar uns
benefícios nesse peste. (SG:
37)
25) Foi
ou
não foi,
peste?(SG: 49)
26) E o
peste nisso
todo descomposto e arreado... (SG:
66)
27)
Olhe, peste, se gritar,
eu
mando
tocar o
sino
para
não se
ouvir o barulho. (SG: 91)
28)...
até parece
que
esse
peste está indo indo a locé às vezes...
(SG: 107)
29) O
chão é
como
minha mãe,
seu peste. (SG: 138)
30)...
seu
peste, puto, peste, peste, peste, peste, ,
seu
pirobão. (SG: 138)
Outras lexias estarão gravitando
em
torno das
acepções “doença,
mal”
com a
função
básica
adjetiva dicionarizada,
mas
que no
texto aparecem exercendo
função
substantiva
como ocorre
com a lexia bexiguento:
31)
Fugir
para
Paulo Afonso,
fugir
para
Paulo Afonso
feito
uma vaca, bexiguento! (SG: 27)
32) E
quem
vai
levar
esse
bexiguento
para
Aracaju?(SG: 135)
É interessante
observar
que algumas das
palavras
simples apresentadas
até
aqui podem
ser encontradas
em
formações sintagmáticas complexas, mantendo o
valor
expressivo no
discurso e a
acepção de
base memorizada
que permitem ao
leitor
apreender a
intenção do
discurso
ofensivo do narrador:
33)...
lhe
faço uma desgraça,
seu
pirobão sacano xibungo bexigueno chuparino do
cão
da
gota
do
estupor
balaio. (SG: 27)
34)...
capão
da peste,
tiro
um
cunhão
seu
fora
nesse
minuto
(SG: 27)
35)...
cachorro
bexiguento, está pensando o
quê,
agora?
(SG: 27)
36)
Você
sabe
que
esse
apustemado é de Muribeca... (SG:
12)
37)...
cão
da pustema apustemado,
lhe
faço uma
desgraça
(SG:27).
38)... e de
hoje
em
diante
todo
mundo
vai
xingar
esses
nomes. Crazento da pustema...
(SG:138)
As
formas pustema e apustemado
não foram encontradas
nos
dicionários consultados,
mas a
base
pus
lá está, o
que significa
dizer
que os
formadores acrescentados a ela,
conhecidos
que
são do
usuário da língua, permitem
chegar ao
sentido
que
escritor atribuiu a
esses vocábulos,
ou seja
um
substantivo e
um
adjetivo semanticamente ligados à
idéia de asco,
repulsa e ainda, doença.
A
associação do
conceito de
coisa
ruim ao de
algo esteticamente desagradável deve
ter motivado o
emprego de
vocábulos cabrunco e cabrunquento
como lexias
simples e
como
elemento
constituinte de lexias complexas:
cabrunco s. 2g.
(1913 cf. CF2)
RJ (Campos)
1
pessoa
ou
coisa
muito
feia
<que
c. !>
interj. RJ (Campos)
2 exprime
espanto
por
coisa
boa
ou
bela,
ou
asco
por
coisa
muito
feia
ou
desagradável etim orig. obsc.
39) Tire a
mão
daí, cabrunquento.
Não
queria
mostrar?Pois
pode mostrar. (SG:55)
A
rede
semântica fortalece a
trama de
seus
fios
como
uso do
vocábulo cão,
que no
texto ubaldiano funciona
como
sinonímia
lexical de
diabo:
40)...
magro
como
o
filho
do cão. (SG:14)
41)...
cão
da pustema apustemado,
lhe
faço uma
desgraça
(SG:27).
Caminhando
para a
derrocada
final da
degradação humana, o
referente perde o
status de
ser
vivo
animado e estaciona na
classe dos
seres inanimados. A lexia
que funciona
como
hiperônimo nesse
universo
semântico é coisa, repetida ao
longo de
toda a narrativa, num
processo de reiteração lexical,
devidamente flexionada no
gênero
masculino e exercendo
sua
função de
item de
referência e de coesão. O sema [-animado],
presente
em uma das
acepções dicionarizadas está contido na
série de hipônimos a
ela
subordinados:
coisa
s. f. (1352
cf. IVPM) 1
tudo
quanto
existe
ou
possa existir, de
natureza
corpórea
ou
incorpórea
<as c. do
mundo>
2
qualquer
ser
inanimado
<os
viventes
e as c. >
3 realidade,
fato
concreto,
em
relação
ao
que
é
abstrato
ou
assim
considerado <importam
mais
as c.
que
as
palavras>
4
algo
que
não
se
quer
ou
não
se pode
nomear
<uma
porção
de c.
>(...)
Os
excertos a
seguir apresentam algumas das
palavras encontradas no
discurso
literário de
Sargento Getúlio
que constroem a
rede sinonímica de
referência:
34) Queria
que
o
coisa
ouvisse tudo. (SG: 48)
35) Acho
que
vai
estrompar
as
sua
gengivas, coisa. (SG: 60)
36)... dei
um
arrasto
no coisa... (SG: 62)
37) Amaro foi tirando e o
trem
chiando, chiando. (SG:64)
38)
Também
espiei o
coisa
com
os
beiços
inchados (SG:66)
39)... e
até
alisei a
cabeça
do traste. (SG:66)
40)0
Eu
levo
esse
lixo
de
qualquer
jeito... (SG: 84)
41)... é
isso
mesmo
e
esse
troço
está
me
dando uma ingrizilha
que
eu
não
agüento... (SG: 91)
42)... encarca as
esporas
nos
quartos
do traste. (SG:103)
43)Teiú
sem
sal. melhor
que
nada
e
até
o trempe comeu uns pedaços. (SG:
107)
44)
Esse
agora
é deputado,
eu
acho,
me
mandou
buscar
esse
traste
em
Paulo Afonso (SG: 123)
45)...
ou
então
nem
ouviu
porque
o
traste
grita
fraco
mesmo. (SG: 131)
46)
Aí
chego
por
água
na
Barra
dos
Coqueiros
para
ver
como
é
que
está
tudo
e de
lá
atravesso a
carga
(SG: 150).
47)... estou
com
um
pouco
de
vontade
de
chorar
agora,
seu
coisa,
seu
traste,
seu
trempe, possa
ser
que
eu
chore agora... (SG: 173)
Em duas
passagens do
texto encontramos
formas
nominais de
caráter neológico:
espécie e criaturo, ambas
devidamente acompanhadas do
determinante (o), definindo o
gênero
masculino de
seu referente.
Em criaturo, o
escritor
não
satisfeito
com a
determinação do
gênero
através do
uso de
artigo sugere a
flexão na
própria palavra, o
que
já ocorrera
em (28)
com a
forma sacano. Classificadas
com
substantivos
femininos
nos
verbetes dicionarizados, os
vocábulos funcionam
como
substantivos concretos,
como exige o contexto,
quando
lhes é atribuído o
traço [+
masculino]:
47)Essa altura, o
espécie
parou de
mostrar
os
dentes
sentado na
raiz
do imbuzeiro. (SG: 48)
48)...
ver
pajeú do
velho
retinindo de amolada, coriscando na
mão
para
separa
um
ovo
do criaturo... (SG: 58)
49)...
quem
o
senhor
mandou
para
Paulo Afonso
para
buscar
esse
criaturo... (SG: 151)
Sabemos
que as
palavras
que constroem
um
enunciado
são
cúmplices umas das outras, acrescentando
ou modificando, ampliando
ou restringindo
sentidos
entre si. Assim, ao
fim da narrativa,
através da
coesão
lexical o
produtor
reata as
pontas dos
fios de
referência e retoma a
figura do
preso
através das lexias presente,
pacote e
encomenda
que remetem
sem
dúvida a outras
passagens da
narrativa
em
que Getúlio relata os
ordens de Acrísio Nunes: “pedir
para
levar”, “buscar”, “levar”
em
relação ao
objeto “preso”. O
sargento Getúlio se imagina cumprindo
sua missão:
50)
Olha
aqui
esse
presente
e sabe o
que
é
que
vou
fazer
com
esse
presente?
Vou
enforcar
esse
presente
para
todo
mundo
ver
(SG: 123)
51)... vosmecê
não
vai
assim
não. Vai
até
a
casa
do chefe,
que
eu
quero
levar
e quero
olhar
a
cara
dele e
dizer:
olha
aí
sua
encomenda. (SG: 151)
52) Hum, seja homem, sustente o seu,
que
eu
sustentei o meu, tome
seu
pacote. (SG: 152).
Neologismo:
algumas
considerações
Outras
palavras e
expressões
são encontradas no percurso da
narrativa
que
também servem
como
elementos de
coesão lexical, constituindo lexias simples,
complexas
ou compostas.
São
formações neológicas
que
segundo a
própria personagem, suprem uma
grande
necessidade de expressividade,
posto
que aquelas
que
já foram usadas perde(sic) a
força os
nomes
quando
eu
lhe xingo e
por
isso vou
inventar uma
porção de
nomes
para
lhe
xingar e de
hoje
em
diante
todo
mundo vai
xingar
esses nomes. (SG: 138)
Tais
formações distribuem-se
em
neologismos
fonológicos
como disfricumbado firigufico do
azeite
ou retrelequento do estrulambique, carniculado
da isbirriguela (SG: 27)
em
que a
camada
sonora
repleta de
sons fechados, vibrantes e
nasais predominam, sugerindo
um
termo forte,
agressivo
pela
camada
sonora
própria a “palavrões”
e
expressões injuriosas, numa
ênfase
obsessiva de
seu
estado interior.
Outras lexias complexas neológicas foram encontradas,
mas nestas houve o
recurso a
combinações de lexias
já existentes no
repertório
lingüístico dicionarizado,
embora o
resultado
semântico seja novo,
como ocorre
em
cabeça de bosta,
coração de toloco,
filho de
um cabrunco, maricão estrumado,
cara de caceta, cafetino desterrado (SG: 28),
todas carregadas de pejoratividade,
depreciação
Como
exemplo de
neologismo formado
por
composição registramos mija-na-vareta.
Segundo Alves (1994: 11)
não
basta
que
um
significante esteja de
acordo
com o
sistema da
língua
para
que
ele se torne
um
elemento
integrante do
léxico desse idioma.. A
aceitação da
inovação
lexical vai
depender de
vários fatores,
dentre os
quais destacamos a
divulgação
pelo
uso
nos
meios de comunicação, da boa
vontade do lexicógrafo
em aceitá-la
com
efetiva
unidade
lexical da
língua e registrá-la
nos
dicionários e
obras dessa natureza,
além do
prestígio de
seu criador.
As
formações apresentadas
são
bons
exemplos desse pensamento,
ainda
mais
por estarem restritas ao
contexto da literatura, no caso, especificamente ao
romance de João Ubaldo Ribeiro,
campo
propício aos
grandes
desvios do
estilo e da expressividade.
Como diz Guilbert (apud
Martins, 2004: 53)
Ela (criação
neológica
estilística) é
própria a
todos
aqueles
que têm
algo a dizer,
que se sentem à
vontade e querem
dizer
com
suas palavras,
seus
arranjos de palavra.,
Ela é
própria dos escritores.
Considerações
finais
Apresentamos
aqui a
diversidade vocabular
com
que João Ubaldo
Ribeiro municia
sua personagem,
sargento Getúlio,
para
ocultar intencionalmente,
como foi apresentado
em
etapa
anterior deste trabalho, o
nome de
seu prisioneiro. Foram encontradas 35 lexias
simples, 11 lexias complexas e 4 lexias compostas. Nesse
repertório estão incluídas
unidades neológicas, de
função
expressiva
dentro do
contexto
literário
em
que se encontram.
Tal
variedade facilita o
trabalho de
entrelaçamento das
partes do texto, estabelecendo a
coesão a
partir dos
elementos
que permitem
não
só a
progressão textual,
mas
também a recuperação,
durante a narrativa, de
referentes
importantes
para a
interpretação e
compreensão dessa
obra
literária
por
parte do leitor. A
utilização da
repetição de
termos
não prejudica a
dinâmica textual. Ela tem
ali
função expressiva. A sinonímia, girando
em
torno de
eixos semânticos, retrai e distende
sentidos a
partir do
emprego de hipônimos e hiperônimos.
No
trabalho de consulta aos dicionários, verificou-se
que à
exceção de (o)
espécie e (o) criaturo, as
demais lexias
simples tinham dicionarizadas
acepções
que se enquadravam semanticamente às
intenções do escritor. E esta é uma
característica nas
composições literárias de João Ubaldo: a
falsa
ilusão de neologia. Muitas vezes, no
papel de
leitores pensamos
estar
diante de
novas lexias,
mas na
maioria dos casos, as
ocorrências
não o são.
Apenas o
domínio de
um
repertório
exuberante
por
parte de
nosso escritor,
que viaja
com
competência
pelos
diversos
níveis de variação lingüística, recupera
termos
fora do
uso comum,
emprega habilmente os regionalismos,
brinca
com as
propriedades fônicas das palavras,
sempre
em
nome de
um
estilo
muito
peculiar e competente. Neologismos, porém,
são proporcionalmente poucos.
E assim,
através do
léxico empregado, o
escritor
deixa
sua
personagem
ser construída
pela exteriorização de
seus sentimentos.
Seu
temperamento rude, agressivo,
suas
angústias existenciais e a
necessidade de
cumprir
seu dever. Afinal,
ele é
Getúlio dos
Santos
Bezerra
e
meu
nome
é
um
verso
que
vai
ser
sempre
versado
e se tem
lua
alumia e se tem
sol
queima
a
cara
e se tem
frio
desaquece, ai
dois
bois
de
barro
e uma
caixa
de
fósforos
e
um
garajau
cheio
de barro,
aboio
eu
aboia
tu,
hem
Amaro, ecô, ecô,
nós
semos
marinheiros
larguemos a
grande
vela,
por
isso
larguemos a
grande
vela, olhe aí, Amaro,
eu
sou
maior
do
que
o
reis
da Hungria.. (SG:155).
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