A
Formação
de
Palavras
na
Gramática
Histórica
da
Língua
Portuguesa
de Manuel Said
Ali
Maria do
Céu Caetano
(Universidade
Nova de Lisboa)
Introdução
A
minha participação tem
como
objetivos
discutir o
conceito de
gramática
histórica,
evidenciar a
relação
entre a
estrutura da
Gramática
Histórica de Said
Ali ([1931] 19643) e os
princípios
teóricos defendidos
pelo
autor, dando
especial
ênfase à
área da
Formação de
Palavras e,
dentro desta, às
descrições dos
sufixos e da
estrutura
interna das
palavras complexas sufixadas.
Num
trabalho
mais
vasto apresentado
em 2003 (cf. Ref. Bibliog.), explico detalhadamente
os
critérios de delimitação do
corpus das
Gramáticas Históricas do
Português (GHP),
que
me serviu de
análise,
pelo
que,
antes de
passar às
questões colocadas
pela
própria
definição de "gramática
histórica", referirei
brevemente
como foi constituído
esse
corpus.
Desse
corpus fazem
parte as GHP
em
que é
tratada a
formação de
palavras (cf.
Anexo 1), tratando-se de
um
corpus à
partida
seletivo e delimitado cronológica e
quantitativamente. A delimitação cronológica
prende-se
com o
período de publicação das
gramáticas históricas, o
qual se situa
entre os
fins do
século XIX e a
primeira
metade do
século XX,
mais
concretamente,
entre 1876 (cf. Grammatica Portugueza
Elementar, Teophilo Braga) e 1946 (cf.
Lições de
Filologia Portuguesa, Carolina
Michaëlis Vasconcellos), à
exceção de
História e
Estrutura da
Língua Portuguesa, de Joaquim Mattoso
Câmara Jr., publicada
em 1975.
Os
princípios
que autorizaram a
inclusão das
obras no
corpus
não se ficaram a
dever à designação
que ostentam, a
qual,
por
si
só,
não é
elucidativa da
natureza das mesmas. No
trabalho
atrás referido demonstrei
que as
chamadas
gramáticas históricas 'didáticas'
são,
também
elas, uma
fonte
preciosa no
que
toca a
dados e a
descrições
conducentes ao
estudo da
morfologia derivacional numa
perspectiva
diacrônica.
Conceito de
Gramática
Histórica
No
artigo "A Tentative Typology of
Romance Historical Grammars", Malkiel ([1960] 1968)
discorre
longa e
profundamente
sobre as
gramáticas históricas românicas
mais
marcantes: define o
conceito e apresenta os
vários
tipos de
gramática
histórica, a
sua
estrutura e
conteúdo, a
apresentação, as
relações
com
outros
domínios
lingüísticos, etc.
Embora ressalvando
que a
definição fornecida é uma das
possíveis, Malkiel ([1960] 1968: 72-73) afirma
que
gramática
histórica é "uma
organização
formal de
dados
estritamente
lingüísticos
que dizem
respeito
mais à
estrutura do
que ao
léxico e
que
são interpretados numa
perspectiva
diacrônica;
ou seja, pressupõe-se
pelo
menos a
existência de
dois
conjuntos de
formas
paralelas separadas
por
um
período de
tempo
suficientemente
extenso (...).
Toda a
gramática
histórica é,
por
definição,
comparativa e a comparação requerida consiste numa
confrontação
ponto
por
ponto de
dois
estádios
sucessivos razoavelmente
distantes da
mesma
língua". Foi,
pois,
este o
conceito de
gramática
histórica
que retive,
por se
tratar de uma
definição
que
precisa
vários
aspectos: a
análise
diacrônica incide
sobre
dados
estritamente
lingüísticos, excluindo a
descrição de
fatos
históricos,
mesmo
que
eles tenham exercido
influências a
nível da
língua (por
exemplo, a
introdução no
léxico de
certos
vocábulos
ou
expressões,
resultantes de contacto); a
descrição dos
dados deve
estar
criteriosamente organizada, obedecendo,
portanto, a uma
estrutura
bem
definida, o
que
leva à
exclusão de
muitos
estudos
diacrônicos (monografias,
lições,
antologias,
edições
críticas,
volumes de
homenagens,
por
exemplo), os
quais
não se inserem
dentro da categoria de
gramática
histórica
devido à
sua "inerente
dispersão e seletividade",
casos
em
que os
aspectos
formais estão submetidos ao
léxico e
não o inverso; a
gramática
histórica é
sempre
comparativa, ao
passo
que uma
gramática
comparativa pode
ou
não
ser
histórica, e essa comparação é
feita de
forma
sistemática
entre
dois
estádios, razoavelmente
distantes, de uma
mesma
língua. Na
grande
maioria das
gramáticas históricas das
línguas românicas,
embora
não sendo uma
condição
estritamente
necessária, a comparação consiste na confrontação
entre o
Latim e o
estado
atual de uma
língua e pode
seguir duas
direções: prospectiva,
quando o
ponto de
partida é o
mais
antigo de
dois
estádios de
língua
ou o
mais
antigo das várias
fases consecutivas
que se estão a
comparar, e
retrospectiva, se a
análise de uma
língua
românica
moderna for pontuada
com a
invocação dos
antecedentes
latinos
ou
medievais.
A
amplitude e a
dimensão
temporal das
gramáticas históricas estão inter-relacionadas e
determinam,
em
parte,
quer a
estrutura das mesmas,
quer o
método seguido.
Não é o
número de
disciplinas contempladas
por
cada
um dos
autores
que,
só
por
si, serve de
indicador da
maior
ou
menor
relevância de uma
gramática
histórica,
mas
antes o
tipo de
análise (ampla e
profunda)
que é efetuado.
É
objetivo
comum aos
vários
gramáticos
históricos considerados a
descrição da
evolução da
língua portuguesa,
desde a
origem
até ao
período
que se pretende
estudar,
ou seja,
em todas as
obras
em
análise, assiste-se a uma
extrapolação do
passado
para o
presente, sendo o
latim o
ponto de
partida e o
português da
época
contemporânea o
ponto de
chegada. Daí
que,
como seria de
esperar, os
vários
autores elejam o
método (histórico‑)comparativo,
quer
para
estabelecer a comparação
entre
estádios
diferentes do
português,
quer se trate de
comparar o
português
com outras
línguas românicas.
Mas o
fato de a
diacronia
ser
sempre privilegiada, tendo
em
conta o
seu
poder
explicativo,
não significa
que se despreze a
sincronia (ou as várias
sincronias),
pois,
por
vezes, é a
descrição da
língua
contemporânea
que se assume
como
objetivo
central e, nestes
casos, a
extrapolação é
feita do
presente
para o
passado, se
bem
que o
presente seja
sempre tido
como o
resultado da
evolução verificada ao
longo dos
tempos.
No "Prólogo
da
Gramática
Histórica", Manuel Said
Ali ([1931] 19643: 11) declara
que se tratava de "uma
gramática
histórica
que,
sem
desprezar a
evolução do
latim
para o
português, estudava
particularmente as alterações do
idioma nas diversas
fases do
português
histórico,
isto é, no
largo
período
decorrido
desde o
tempo
que se conhece o
português
como
língua formada e usada
em
documentos". No "Prólogo
da Lexeologia do
Português
Histórico",
o
gramático afirma
que encontrou a
solução de
certos
problemas recorrendo
diretamente às
fontes, tendo averiguado
que "certas
teses sabidas
em
parte se confirmavam,
em
parte
porém se tornavam
insustentáveis.
Além disso, o
estudo comparado do
ponto de
vista
evolutivo
veio revelando,
com
grande
surpresa
minha,
fatos
lingüísticos
cuja
existência a
princípio
nem suspeitava. (...) Adotado
semelhante
método de
pesquisa, adquiriu o
livro
certo
aspecto de lexeologia
semântica,
ou, se preferirem, de
semântica lexeológica, destoando
assim de
vetusto
sistema de classificação", advertindo
que "deixará de
ser
histórico o
estudo de
vocábulos
que
desprezar as alterações
semânticas" (ALI
[1931] 19643: 7).
Assim, Said
Ali considera
que é
mais
importante o
confronto do
português da
época
com o
português
arcaico e
não a comparação
com o
latim,
posição
que contribui
para uma
diferenciação
relativamente aos
gramáticos
seus
contemporâneos e
que irá
determinar a
organização e o
conteúdo da
sua
obra.
Estrutura
da
Gramática
Histórica
de Said
Ali
Antes de
descrever a
estrutura da
Gramática
Histórica de Said
Ali e,
por inerência, das restantes GHP, relembro
que a
Fonética, a
Fonologia e a
Morfologia Flexional têm, de
longe, uma
maior representatividade nessas
obras,
enquanto a
Formação de
Palavras, a
Sintaxe e a
Semântica se vêem relegadas,
freqüentemente,
para
um
plano
secundário.
Todavia,
isso
não significa
que,
por
um
lado, estas
três últimas
áreas
não forneçam
dados e
análises
relevantes e,
por
outro,
que os
aspectos
tratados e as
abordagens empreendidas nas
três primeiras
áreas sejam
uniformes.
Uma
vez
que o
objetivo
principal deste
ponto é
analisar o enquadramento da
Formação de
Palavras na
Gramática
Histórica de Said
Ali, darei
especial
ênfase à
secção,
capítulo
ou
ponto e respectivas designações
em
que está inserida essa
área,
bem
como às
partes
em
que a
mesma se subdivide.
Alguns
gramáticos consideram
que a
Formação de
Palavras deve
ser estudada
dentro da
Morfologia (Teófilo Braga
(1876), Manuel P. Silva Jr. e
Lameira de Andrade ([1887] 19134),
António G.
Ribeiro Vasconcellos (1900), José J. Nunes ([1919]
19899), Brandt
Horta ([1930?] s.d.3), Jaime S. Martins
([s.d.] 19372), Francisco J. Martins Sequeira ([1938a] 19593)
e Francisco J. Martins Sequeira (1938b)),
enquanto
outros a estudam
dentro do
Léxico (Eduardo C.
Pereira ([1916] 19359), Ismael Coutinho
(1938) e Mattoso
Câmara Jr. (1975)) e
outros,
ainda,
lhe conferem
um
tratamento
independente (Carl von Reinhardstoettner
(1878), J.
Leite Vasconcellos ([1911] 19593),
Othoniel
Mota ([1916] 19378), Manuel Said
Ali ([1931] 19643), Joseph Huber ([1933]
1986) e Carolina Michaëlis de Vasconcellos ([1946] s.d.)). Os
primeiros interessam-se
sobretudo pelas alterações
semânticas,
resultantes da
junção de
prefixos e
sufixos
ou
desinências,
como muitas
vezes
são chamados;
para os
segundos, o
mais
importante é
demonstrar
que o
alargamento do
léxico se faz
através da
prefixação,
sufixação e
composição,
entre
outros
processos; o
objetivo dos
terceiros consiste
em
descrever e
explicar os
processos de
prefixação,
sufixação e
composição
em
si
mesmos e
não
somente o
seu
resultado,
isto é, o
fato de contribuírem
para o enriquecimento
lexical.
Para
que se possa
avaliar
melhor a
representação das várias
Áreas
Disciplinares consignadas nas
Gramáticas Históricas do
Português e a
importância atribuída à
Formação de
Palavras, observe-se o
Anexo 2[2].
Independentemente do
seu
grau de
autonomia e do
maior
ou
menor
desenvolvimento
que
lhe é dedicado,
aquilo
que se pode
deduzir é
que a
Formação de
Palavras ocupa, na
realidade,
um
lugar
bastante
central, sendo estudada
em todas as
gramáticas
em
análise.
Nestas
gramáticas
nem
sempre há uma
ligação
estreita
entre a
terminologia utilizada
pelos
vários
autores e a
estrutura dessas
obras.
Por
exemplo, o
título
História e
Estrutura da
Língua Portuguesa, de Mattoso
Câmara Jr. (1975) denuncia a
forte
influência estruturalista,
mas esta é uma
gramática
que,
em
muitos
aspectos, segue o
modelo instituído
pelos neogramáticos,
enquanto a
gramática de Manuel Said
Ali ([1931] 19643),
embora tendo sido
escrita
durante a
vigência do
modelo neogramático, se distingue pelas
suas
inovações a
nível
teórico, metodológico e
terminológico, sendo,
por
isso, das
gramáticas
que constituem o
corpus aquela
que
mais se diferencia das outras. Deste
modo, facilmente se concorda
com Martins (1995: 63),
quando a
mesma declara
que,
apesar de "realizada
em
plena
época neogramática, a
gramática
histórica de Said
Ali destaca-se
por
não se
enquadrar
em
tal
modelo", o
que faz
com
que, alicerçando-se
em Malkiel (1960), a apelide de "modernista".
A
primeira
edição da
Gramática
Histórica da
Língua Portuguesa de Manuel Said
Ali ([1931] 19643) fez-se,
como é
sabido,
em
dois
volumes e
em
datas
diferentes: A Lexeologia do
Português
Histórico, dividida
em "Os
sons e
sua
representação" e "Os
vocábulos" surgiu
em 1921, A
Formação de
Palavras e
Sintaxe do
Português
Histórico, constituída
por "Formação de
Palavras", "Sintaxe" e "Apêndices",
foi publicada
em 1923. Numa
segunda
edição, estas duas
obras foram reunidas no
volume intitulado
Gramática
Histórica,
com
data de 1931. Esta
gramática apresenta,
então, uma
estrutura
dupla.
Sob a "1ª Parte – Estudo dos
sons e Lexeologia", o
autor descreve
vários
aspectos fonético-fonológicos e flexionais, optando
por
estudar os
diminutivos e
aumentativos
quando se refere ao
grau dos
substantivos (cf. o subponto "Nomes"
(p. 54-75),
em "Os
vocábulos:
espécies,
formas e significação" (p. 53)). Na "2ª Parte –
Formação de
palavras e
Sintaxe do
Português
Histórico", o
autor
começa
por
tratar a "Derivação
em
geral" (p. 229), a
qual se subdivide
em "Derivação sufixal"
(p. 232-248), "Derivação prefixal" (p. 249-253), "Derivação
parassintética" (p. 254-255) e "Derivação
regressiva" (p. 256-257).
Seguidamente é estudada a "Composição"
(p. 258-264),
que,
conjuntamente
com a "Derivação",
constitui a
área da "Formação de
Palavras".
Com
quase
cem
páginas, a
Sintaxe (p. 265-361) ocupa a
parte
final da
obra de
Ali ([1931] 19643), a
que se seguem
ainda
três
Índices.
Cabe
aqui
realçar
dois
aspectos
muito
importantes,
quer
em
termos da
estrutura da
obra,
quer
relativamente aos
princípios
teóricos:
em
primeiro
lugar, o
autor,
tal
como C. Reinhardstoettner (1878), M. P. da Silva
Jr. e L. de Andrade ([1887] 19134), O.
Mota ([1916] 19378) e J. J. Nunes
([1919] 19899)
antes e Joseph Huber ([1933] 1986) e I. Coutinho
(1938)
depois de
si, designa
por
Formação de
Palavras a
área
que
estuda a
derivação e a
composição,
mas a
descrição
exaustiva da
estrutura
interna das
palavras complexas, dos
elementos afixais e dos
mecanismos de
formação de
palavras
não
encontra
paralelo
nos
outros
trabalhos
que fazem
parte do
corpus.
Por
outro
lado,
não inclui a
prefixação
dentro da
composição
mas
sim na
derivação
própria, justificando essa
não
inclusão
por
achar
que os
prefixos,
tal
como os
sufixos,
são "elementos
formativos"
sem
autonomia (cf.
Ali
[1931] 19643: 229) , especificando
que o
sufixo "procede
também de
expressão
que a
princípio se usou
como
palavra
independente".
O
estudo
da
Sufixação
na
Gramática
Histórica
de Said
Ali
Todos os
gramáticos estudados apontam a
derivação e a
composição
como os
processos
que
mais contribuem
para o enriquecimento e
desenvolvimento do
léxico,
independentemente do
objetivo
que os move, i.e.,
quer se centrem na
procura das
formas primitivas a
partir das
quais se desenvolveram as
formas
atuais,
quer pretendam
descrever as
formas arcaicas
remanescentes, sendo
usuais as
oposições de "vivo"/"morto"
e "atual"/"arcaico",
quando se
trata de
assinalar a
vitalidade
ou produtividade de
determinados
afixos e a
disponibilidade de
alguns
processos,
relativamente a
outros
que deixaram de
dar
origem a
palavras morfologicamente complexas.
A
sufixação é tida,
em
muitos
casos,
como
sinônimo de
derivação
própria e a "fecundidade" deste
processo antevê-se nas largas
descrições e
análises efetuadas nas
obras
que fazem
parte do
corpus.
Com
efeito,
para
além da
questões da produtividade
ou improdutividade de
determinados
sufixos e das alomorfias
que os
mesmos sofrem e desencadeiam (aspectos
que
também
são considerados
por
alguns
gramáticos a
propósito da
prefixação), o
fato de uma
grande
parte dos
sufixos
desencadear alterações categoriais e as
idiossincrasias associadas a
certos derivados contribuem
para uma
maior complexidade desta área.
Para
além de
rejeitar a
inclusão da
prefixação na
composição, Said
Ali rejeita
igualmente o
fato de
alguns
gramáticos considerarem
que o
estudo da
derivação
imprópria faz
parte da
derivação,
pois,
segundo afirma, "a
mudança de
sentido e de
função
que sofrem as
palavras, examina‑se
em outras
partes da
gramática, e, a dedicar‑se uma
parte
especial a
tão interessante
assunto, deverá denominar‑se
semântica e
não
derivação" (ALI [1931]
19643: 230-231).
O
gramático
chama
oportunamente a
atenção
para a
dificuldade,
por
vezes, existente
em
estabelecer uma
relação
transparente
entre a
palavra derivada e a
palavra
primitiva,
sobretudo
quando, decorrente da "evolução
de
forma e
sentido, (...) surge
um
curioso
conflito
entre o
sentimento
geral do
vulgo e o
fato encarado à
luz da
pesquisa
científica" (ALI
[1931] 19643: 231), dando
como
exemplos
esquecer e
receber.
Apesar de
ambos serem tidos
como
verbos
primitivos
que estiveram na
base de
outros derivados (ex.:
esquecimento), o
primeiro é "alteração de escaecer e
palavra derivada,
em
última
análise, de caer,
forma
antiga de
cair (...) [o
segundo,]
para
quem
fala e
pensa
em
português, é
outro
verbo
primitivo; se
lhe lembrarem
que re– é
elemento formativo, objetará
que
não existe
nenhum
verbo ceber. O
lingüista analisa de
outro
modo e, deixando o
português,
remonta ao
latim
para
decompor o
dito
verbo
em re + cipere < re + capere" (ALI
[1931] 19643: 231).
Mas o
método de
ascender às
mais remotas
origens apresenta,
segundo
Ali ([1931] 19643: 231),
alguns
problemas, uma
vez
que "o
sentimento de
linguagem é
fator
essencial,
sem o
qual as
formas e creação de
palavras perderiam
sua significação. E
muito de
levar
em
conta é
esse
sentimento se, diversificado da língua‑mãe, aparece
desde a
constituição do
novo
idioma e
assim se
conserva
até os
nossos
dias".
Ali ([1931] 19643) reclama, deste
modo,
que,
quando
formas
como
esquecer e
receber, sincronicamente,
já
não
são decomponíveis, devem
ser consideradas
palavras
simples,
embora se
deva
indicar
que, numa
fase
mais
antiga, eram derivadas.
Na "Derivação
Sufixal", o
autor procede a
um
levantamento e
descrição de
grande
fôlego dos
sufixos
formadores de "Substantivo
e
Adjetivo" e de "Verbos": fornece
as
indicações etimológicas de
sufixos e de
alguns derivados,
estuda as
diferentes significações
que os
sufixos transmitem às
bases, aponta os
casos
em
que se verificam alomorfias e dá variadíssimos
exemplos, remetendo
para as
fontes de
onde foram retirados.
A
partir da
descrição da
derivação sufixal
levada a
cabo
por
Ali ([1931] 19643) e
pelos restantes
gramáticos
históricos pode,
assim, observar-se
que:
1.
em
certos
casos,
não fica
claro se o
principal
critério
para o
reconhecimento de
um
sufixo derivacional é de
ordem
formal
ou
semântica,
embora pareça
ser o
primeiro
aquele
que é escolhido,
dado
que, muitas
vezes, o
sufixo é tido
como uma seqüência
que ocorre
em
mais do
que
um
vocábulo,
mesmo
que o
conteúdo
semântico dessa seqüência seja dificilmente
assinalável (cf. a
definição de
sufixo
em Braga (1876: 32) e
Pereira ([1916] 19359: 202) e a
definição de
derivação
em
Câmara Jr. (1975: 213)). Daí a
confusão
que,
por
vezes, existe
entre
sufixo e "terminação",
i.e., seqüência de
fonemas
que ocorre
em
dois
ou
vários
vocábulos (por
exemplo, –ego,
em
borrego e
labrego,
não é
sufixo do
português,
dado
que estas
formas foram
tomadas de
empréstimo ao
castelhano);
2.
embora se considere
que o
sistema sufixal,
tal
como
outros
sistemas
lingüísticos, se caracteriza pelas
suas
mutações (certos
sufixos desapareceram
enquanto
outros foram surgindo; os
modos de
emprego alteraram-se e condicionaram-se mutuamente;
as
relações
entre
sufixos
tanto
são de
oposição
como de
paralelismo
com
outros
sufixos) e se
bem
que,
como
já referi, exista
quase
sempre a
preocupação de
definir "sufixos
vivos e
sufixos
mortos",
não há uma delimitação
evidente
entre,
por
um
lado, os derivados formados
com
sufixos
disponíveis
em
português e os
vocábulos herdados e,
por
outro,
entre
sufixos
que se usavam
em
latim e
grego e
que passaram
para o
português mantendo a
sua
vitalidade e os
que
não foram adotados[3],
como
por
exemplo –escer,
já
que os
verbos do
tipo de
florescer e remaescer
não foram formados
em
português, sendo
todos
eles
formas latinas;
3. a
principal
função
que se atribui ao
sufixo é a de
alterar
freqüentemente a
categoria
gramatical da
palavra a
que se
junta,
ou seja, contrariamente ao
prefixo,
que
não interfere na
categoria da
palavra
que é prefixada, o
sufixo é
por
excelência
um categorizador.
Contudo,
também se salienta a
modificação do "valor"
da
palavra "primitiva",
sobretudo no
caso dos
aumentativos e
diminutivos, os
quais,
apesar de
não desencadearem alterações categoriais, exprimem
a
grandeza
ou a
diminuição e têm uma
conotação
afetiva
ou
pejorativa.
Embora os
gramáticos
históricos
não o explicitem, poderíamos
encontrar
ainda uma
terceira
função dos
sufixos, i.e., a de remeterem
para
um
determinado
campo
lexical,
como é
por
exemplo o
caso de –ite, do
grego, o
qual é
sobretudo usado na
medicina
para
designar 'inflamação';
4.
são
normalmente duas as
condições apontadas
para a
disponibilidade de
determinado
sufixo:
que exista uma
relação
transparente
entre o
sufixo e a
base
ou,
como diz José J. Nunes ([1919] 19899:
362),
que
sufixo e
base sejam
perfeitamente isoláveis, apresentando
ambos "idéias
bem
claras,
bem nítidas e distintas", e
que o
sufixo tenha
capacidade
para
formar
novos derivados; inversamente,
quando
tal
deixa de
acontecer, o
sufixo perde produtividade. No
entanto, as possibilidades de
combinação dos
sufixos
com as
bases
são unicamente afloradas e
raramente
são dadas
indicações
acerca da
maior
ou
menor
independência das
bases. No caso das restrições impostas pelos
sufixos às bases, os gramáticos raramente lhes fazem referência: Manuel P. da
Lameira
() são os poucos gramáticos que assinalam explicitamente
"a", como é o caso do sufixo
–mento, que se solda unicamente a bases verbais);
5. o
conceito de
analogia,
um dos
mais
caros aos neogramáticos,
embora
nem
sempre seja
definido, é
amplamente utilizado
pelos
gramáticos
históricos ao
longo do
estudo da
derivação sufixal.
Quase
todos realçam o
papel da
analogia na
mudança
lingüística, neste
caso ao
nível da
morfologia derivacional, e, implicitamente, o
seu contributo,
como
bem
expressa Molino (1985: 37),
para
que a
morfologia e o
léxico constituam "o
domínio
onde interagem (...) o
sistema e a
história".
6.
alguns
exemplos tidos
como derivados do
português
são,
como
já mencionei,
formas eruditas,
enquanto
outros
são
empréstimos de outras
línguas,
sobretudo do
castelhano e do
francês. Neste
último
caso, trata-se de
empréstimos
lexicais e
não sufixais,
mas esta
distinção
quase
nunca é efetuada nas
gramáticas
em
análise: Mattoso
Câmara Jr. (1975: 218) é o
único
que salienta
expressamente
este
aspecto,
quando declara
que "a produtividade de
um
sufixo,
que
lhe dá
individualidade na
gramática da
língua portuguesa, decorre do
seu
destaque de
palavras derivadas
que vieram
tais do
latim
ou,
por
empréstimo, de
outra
língua".
Como
conseqüência dos
aspectos
anteriormente
assinalados (especialmente
nos
pontos 1 e 2),
não há, nas
gramáticas históricas do
português unanimidade
quanto ao
número de
sufixos e,
muito
menos,
quanto às
variantes de
determinados
sufixos.
Conclusões
Apesar de as
gramáticas históricas do
português serem
por
vezes criticadas
pela
falta de sistematicidade na inventariação e
classificação dos
dados
que apresentam e
pela
falta de
definição
clara dos
critérios seguidos nas
análises efetuadas, gostaria de
concluir esta
intervenção
com uma apreciação
positiva dessas
obras,
em
particular da
Gramática
Histórica de Said
Ali ([1931] 19643), cujas
descrições e
reflexões fazem
ainda
hoje
parte dos
debates
acerca da
formação de
palavras,
como sejam:
– a
distinção
entre
flexão e
derivação e
entre
derivação e
composição;
– a
noção de
alternância
entre
sufixos "eruditos" e "populares"
– os
conceitos de
produtivo e improdutivo.
A
fronteira
que
hoje estabelecemos
entre
derivação e
composição, baseando-nos
essencialmente no
fato de a
primeira
operar
com
afixos,
nem
sempre é
clara e nalgumas
gramáticas históricas é
ainda
menos
nítida, considerando-se,
por
vezes,
que o
termo "derivadas abrange
tanto as
palavras obtidas
por
derivação
como as obtidas
por
composição,
como as obtidas simultaneamente
por
derivação e
composição" (Sequeira,
1938b: 92)[4].
Mas,
apesar de
não
haver
concordância
quanto aos
limites da
derivação e da
composição,
todos os
gramáticos
são
unânimes
em
afirmar
que a
derivação e a
composição
são
processos
regulares de
formação de
palavras e
aqueles
que
mais contribuem
para o enriquecimento do
léxico, merecendo,
por essa
mesma
razão,
um
tratamento
mais
desenvolvido do
que
outro
tipo de
criações
lexicais.
Enquanto
outros
autores tentam
explicar as "irregularidades" e
"alomorfias"
que se manifestam a
nível sincrônico, os
gramáticos
históricos consideram
que o
sistema sufixal,
tal
como
outros
sistemas
lingüísticos, se caracteriza pelas
suas
mutações, sendo
resultante de
etapas
anteriores e
que o
português (assim
como as outras
línguas românicas) herdou do
latim
não
somente
palavras,
mas
também
mecanismos de
criação de
palavras.
Como a
noção de
relação
derivativa
que
hoje
amplamente empregamos
não é
em
tudo coincidente
com a dos
gramáticos
históricos, percebe-se
porque é
que
para
estes
alguns
sufixos "eruditos" (assim
chamados
por seguirem de
perto a
forma
latina) possuem
contrapartes "populares",
enquanto
para
nós o
fato de
determinados
elementos ocuparem uma
posição sufixal
não significa
que
eles façam
parte do
sistema derivacional do
português.
Se
para
alguns morfólogos,
como
por
exemplo Baayen (1992 e 1993), as
propriedades das
regras
para gerarem
novas
palavras estão relacionadas
com a
norma[5],
para
outros (cf.,
por
exemplo, Bauer (2001)), a produtividade faz
parte da
competência, é uma
propriedade estrutural, pertencendo,
por
isso, à
gramática. Deste
modo,
enquanto uns se baseiam numa
noção
quantitativa de produtividade,
outros privilegiam uma
noção
qualitativa.
Por
outro
lado,
não se deve
confundir improdutividade e
irregularidade: os
processos
que
hoje
já
não
são
produtivos, foram-no
outrora,
mas
tal
não autoriza a
que os consideremos
como
não
regulares.
Termino,
pois, acentuando
que,
tal
como antevisto
por
Ali ([1931] 19643), os
recursos derivacionais de
que dispomos
são previsíveis e
regulares,
tanto do
ponto de
vista
formal
como
semântico. O
sistema sufixal do
português
não se caracteriza
nem
pelo
seu
caráter anárquico,
nem
por
obedecer
em
todos os
casos ao
princípio de
economia (cf.
Mitterand, 19867: 47):
assim
como
não podemos
empregar
indiferentemente uma
dezena de
sufixos
que denotem o
mesmo
valor, a
um
determinado
valor
não corresponde
sempre uma
só
forma.
Referências Bibliográficas
BAAYEN, Harald. "Quantitative
Aspects of Morphological productivity". In: BOOIJ, Geert e Jaap
van MARLE (eds.) Yearbook of Morphology 1991,
Dordrecht, The Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 1992, p. 109-149.
BAAYEN, Harald. "Discussion
on frequency, transparency and productivity". In: BOOIJ, Geert e Jaap
van MARLE (eds.) Yearbook of Morphology 1992,
Dordrecht: The Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 1993, p. 181-208.
BAUER, Laurie.
Morphological Productivity, Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
CAETANO,
Maria do Céu. A
Formação de
Palavras
em
Gramáticas Históricas do
Português.
Análise de algumas
correlações sufixais,
dissertação de
Doutoramento apresentada à
Universidade
Nova de Lisboa,
Faculdade de
Ciências
Sociais e Humanas, 2003.
MALKIEL, Yakov. "A
Tentative Typology of
Romance Historical Grammars". In: Essays
in Linguistic Themes, Oxford, Blackwell, 1960, p. 71-164 (também
em Lingua IX-4, 1968)
MARTINS,
Ana Maria. "Gramáticas
Históricas do
Português" In: DUARTE, Inês e Maria MIGUEL (eds.)
Actas da
Associação Portuguesa de Linguística
(Lisboa, 1995). Lisboa:
Colibri, 1996, vol. III, p. 53-71.
MITTERAND, Henri.
Les Mots Français, Paris: PUF, 19867.(Que sais-je?, nº 270).
MOLINO, Jean. "Où
en est la morphologie?", Langages 78, 1985, p. 5-40.
Anexo 1
Gramáticas históricas do português
em que é estudada a formação de palavras
Ali, Manuel Said. Gramática
Histórica da
Língua Portuguesa,
São Paulo,
Edições Melhoramentos, [1931] 19643.
Braga, Teophilo. Grammatica
Portugueza
Elementar (Fundada
sobre o methodo historico-comparativo). Porto:
Livraria Portugueza e Estrangeira, 1876.
Câmara Jr., Joaquim
Mattoso.
História e
Estrutura da Língua Portuguesa,
Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
Coutinho, Ismael de Lima.
Pontos de
Gramática Histórica.
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1938.
Horta, Brandt.
Noções de
Gramática
Histórica da
Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: J. R. de Oliveira, ([1930?] s/d.3.
Huber, Joseph.
Gramática do
Português Antigo. (Trad. port. do
original
alemão Altportugiesisches Elementarbuch). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, [1933] 1986.
Martins, Jaime de Sousa.
Elementos de
Gramática
Histórica,
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, [s.d.] 19372.
Mota, Othoniel. O
meu idioma.
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, [1916] 19378.
Nunes, José Joaquim.
Compêndio de
Gramática
Histórica Portuguesa (Fonética
e
Morfologia). Lisboa: Clássica, [1919] 19899.
Pereira, Eduardo Carlos.
Gramática Histórica.
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, [1916] 19359.
Reinhardstoettner, Carl von.
Grammatik der Portugiesischen Sprache. Strassburg: Karl J. Trübner, 1878.
Sequeira, Francisco Júlio
Martins.
Gramática
Histórica da
Língua Portuguesa. Lisboa: Popular,
[1938a] 19593.
Sequeira, Francisco Júlio
Martins.
Gramática de Português. Lisboa: Popular, 1938b.
Silva Jr., Manuel Pacheco da.
Grammatica Historica da Lingua Portugueza.
Rio de Janeiro: Typ. A
Vapor de D. M. Hazlett, 1878.
Silva Jr., Manuel Pacheco da e
Lameira de Andrade. Grammatica da Lingua
Portugueza.
Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, [1887] 19134.
Vasconcellos, António Garcia
Ribeiro.
Gramática
Histórica da
Língua Portuguêsa. Paris/Lisboa:
Aillaud/Alves;
Rio de
Janeiro/São Paulo/Belo
Horizonte: Francisco Alves, 1900.
Vasconcellos,
Carolina Michaëlis de.
Lições de
Filologia Portuguesa. Lisboa: Revista
de Portugal / Dinalivro, [1946] s/d.
Vasconcellos,
José
Leite de.
Lições de
Filologia Portuguesa.
Rio de Janeiro:
Livros de Portugal, [1911] 19593.
Anexo 2
–
Áreas
Disciplinares consignadas nas
GHP
|
|
Fonol |
Morf
(Flex+ FP) |
|
|
Sint |
|
|
|
|
Fonol |
Flex |
|
FP |
Sint |
|
|
|
|
Fonol |
Morf
(Flex+ FP) |
|
|
Sint |
Sem |
Léx |
|
Fonét |
|
|
|
|
Sint |
|
|
|
|
Fonol |
|
|
FP |
Sint |
Sem |
Léx |
|
Fonét |
Fonol |
Morf |
|
|
Sint
(Flex) |
Sem |
Léx
(FP) |
O. Mota
([1916] 19378) |
Fonét |
Fonol |
Morf (Flex) |
|
FP |
|
|
|
J. J. Nunes
([1919] 19899) |
Fonét |
|
Morf
(Flex+ FP) |
|
|
|
|
|
B. Horta
([1930?] s.d.3) |
Fonét |
|
Morf
(Flex+ FP) |
|
|
|
|
|
|
Fonét |
|
|
|
FP |
Sint |
Sem |
Léx |
|
Fonét |
|
Morf (Flex.) |
|
FP |
Sint |
|
|
|
Fonét |
|
Morf
(Flex+ FP) |
|
|
|
|
|
|
Fonét |
|
|
|
|
Sint |
|
|
|
Fonét |
|
|
|
|
Sint |
|
|
|
Fonét |
|
Morf (Flex) |
|
|
|
|
Léx (FP) |
|
|
|
|
|
FP |
|
Sem |
Léx |
|
|
Fonol |
Morf (Flex) |
|
|
Sint |
Sem |
Léx (FP) |
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