Márcia Regina Teixeira da Encarnação (USP)
Considerações iniciais
Segundo Vilela (1994: 6), o léxico é a parte da língua que primeiramente configura a realidade extralingüística e arquiva o saber lingüístico duma comunidade. Avanços e recuos civilizacionais, descobertas e inventos, encontros entre povos e culturas, mitos e crenças, afinal, quase tudo, antes de passar para a língua e para a cultura dos povos, tem um nome e esse nome faz parte do léxico. O léxico é o repositório do saber lingüístico e é ainda a janela através da qual um povo vê o mundo. Um saber partilhado que apenas existe na consciência dos falantes duma comunidade.
O método de pesquisa geolingüístico
O método geolingüístico torna os estudos dialetológicos mais precisos, pois nos permite penetrar no domínio dos falares vivos e interpretá-los com maior segurança. Visa à descrição de uma realidade dialetal que posteriormente poderá se tornar instrumento de análise para conclusões sobre a realidade lingüística em foco. ou ainda constituir-se em um subsídio para a compreensão da história de determinada região, abordada não só por lingüistas, mas também por estudiosos que se interessem em documentar fatores que explicam e documentam o passado com rigor científico. Serve para coletar, com bases geográficas, importante material de pesquisa para a interpretação histórica de fatos da língua.
Nas etapas anteriores à aplicação do método, ao definirmos a pesquisa, fazemos as seguintes indagações: a quem perguntar – os sujeitos, onde perguntar – os pontos, o que perguntar – o questionário, quem irá perguntar – o pesquisador, como serão coletadas as respostas – gravador e onde essas serão documentadas – as cartas temáticas.
Abordaremos brevemente cada um desses tópicos, a fim de mostrar cada etapa de elaboração da pesquisa geolingüística.
Sujeitos
Na orientação estabelecida pela Geolingüística, chamamos sujeito o indivíduo que responde o questionário e que fornece os dados que constituirão o corpus da pesquisa. Os dados sobre os sujeitos são recolhidos em uma ficha em que consta: o ponto, designando o local em que ele mora; as iniciais do nome completo do sujeito; o sexo: M para masculino e F para feminino; a idade expressa em algarismos arábicos; o estado civil; a profissão e o rendimento salarial mensal, expresso em salários mínimos. O sujeito deve ser natural da localidade ou lá ter residido três quartos de sua vida, quando procedente de outra região. E ainda, a fim de evitar interferências lingüísticas, que poderiam resultar do contato pessoal do sujeito com outras regiões e, de acordo com o AliB – Atlas Lingüístico do Brasil – evitaremos sujeitos cujas profissões os obriguem a grandes mobilidades.
Os pontos lingüísticos
Numa pesquisa dialetológica, denominamos ponto lingüístico a cada uma das localidades em que se recolhem os dados de natureza lingüística. Na fase de planejamento, se faz o levantamento da área a ser pesquisada, a fim de se conhecer os aspectos geográficos, históricos e socioeconômicos e alguns fatores que abranjam as peculiaridades do local em que vivem os sujeitos.
O questionário
Dá-se o nome de questionário ao instrumento utilizado para recolher os dados lingüísticos nas pesquisas de campo. Para a sua elaboração, segundo o texto de apresentação do ALiB, foram considerados estudos de diferente natureza existentes sobre o português regional do Brasil, os questionários dos atlas já publicados e aqueles disponíveis dos atlas em andamento, e também os questionários de AliR– Atlas Linguistique Roman e do Atlas Lingüístico-Etnográfico de Portugal e Galiza. Foram também examinados os resultados cartografados nos atlas nacionais.
Para o estudo de natureza lexical é aplicado o Questionário Semântico-Lexical (QSL), que tem como objetivo documentar o registro coloquial do falante, procurando retratar as formas de emprego mais gerais da comunidade pesquisada. Recortado em campos semânticos, os lexemas obtidos como respostas dos sujeitos constituirão o material de análise para a pesquisa.
Entrevista e coleta de dados
Seguindo o roteiro do questionário supracitado, as entrevistas induzidas serão feitas no habitat do sujeito. Acredita-se ainda que, para se assegurar uma melhor qualificação ao trabalho pretendido é conveniente o contato direto entre sujeito e pesquisador, para que, dessa forma, possam ser dirimidas dúvidas existentes nas perguntas ou nas respostas dadas e ainda, poderá perceber melhor alguns fatores que poderão ocorrer durante a entrevista e posteriormente relatar ocorrências que poderão ser consideradas pertinentes para a elaboração do corpus do trabalho.
As cartas
Elaborar as cartas é retratar a distribuição das lexias nos determinados pontos estudados, é dar forma física ao conteúdo das entrevistas, é retratar, espelhar as diferentes realidades diatópicas lingüísticas encontradas, enfim, é documentar o falar do sujeito. Coseriu (1982:83) utiliza a palavra ‘mapa’ para referir-se à carta lingüística e esclarece que os mapas lingüísticos servem para mostrar a variedade de estudo que a pesquisa da fala pode proporcionar.
Uma abordagem de aspecto semântico-lexical
Aplicamos o método de pesquisa geolingüístico na região do litoral norte do Estado de São Paulo, Brasil, mais especificamente em comunidades isoladas do município de Ilhabela, e mostraremos aqui uma breve análise semântico-lexical feita em uma amostra.
No QSL, a questão 3 do Campo Semântico 2, intitulado Fenômenos Atmosféricos traz a seguinte indagação: (Como se chama) “...uma luz forte e rápida que sai das nuvens, podendo queimar uma árvore, em dias de mau tempo?”. O Comitê Nacional do Projeto ALiB aponta raio como provável resposta a essa questão. Entretanto, em nossa pesquisa, obtivemos fuzil com o menor número de variações e como resposta para todos os sujeitos entrevistados, ou seja, 100%, sendo 50% do sexo masculino e 50% do sexo feminino. Por isso, escolhemos a lexia fuzil para a apresentação dessa análise semântico-lexical. O termo lexia deve-se ao lingüista francês Bernard Pottier, sendo o nome geral para qualquer unidade lexemática. À menor unidade lexemática, Pottier denomina lexia simples.
Fuzil é uma lexia simples que nos remete a uma série de significados, quando não está manifestada no discurso-ocorrência do sujeito de nossa pesquisa.
Nossa intenção nessa análise é buscar a relação parassinonímica que existe entre a variável fuzil e outras de significação afim que apareçam em dicionários específicos, em dicionários gerais e em citações de cunho literário. Consiste em buscar o sema de relação de sentido entre dois vocábulos de significação muito próxima que permite muitas vezes que um seja escolhido pelo outro em alguns contextos, sem alterar o sentido literal da sentença como um todo. Começamos, então, a examinar o verbete fuzil em alguns dicionários.
O Dicionário Houaiss explica que etimologicamente fuzil é proveniente do latim vulgar focile, derivado do latim focus,i 'fogo', provavelmente abreviatura de focilis petra – 'pedra de fogo'. Por analogia, mesmo que relâmpago ('clarão repentino'). O mesmo se dá no Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, século XXI, versão 3.0, em que encontramos: Fuzil-substantivo masculino, proveniente do francês fusil. Relâmpago.
Tomemos então o sentido de analogia como relação ou semelhança entre coisas ou fatos: Se fuzil e relâmpago possuem uma relação análoga de significados, podemos buscar o sentido da lexia “relâmpago” para procurarmos definir fuzil na acepção proferida pelos sujeitos.
No Dicionário de Términos Geográficos (1978:391) temos a seguinte definição para relâmpago: “iluminação difusa, semelhante a um manto de luz, produzida por uma descarga elétrica em uma nuvem ou entre duas nuvens”. Além do significado apresentado anteriormente, encontramos, ainda, no dicionário Aurélio Buarque de Holanda, século XXI, versão 3.0, a etimologia, “De re-+ o radical latino de lampare, 'fulgir', 'brilhar' e depois a explicação do verbete: “luz intensa e rápida produzida pela descarga elétrica entre duas nuvens, e que, geralmente precede o ruído do trovão. [Cf. raio (4).]”.
Examinemos também o Dicionário Caldas Aulete (1958: 4336) que traz a seguinte definição: “s.m. luz rápida e brilhantíssima proveniente da descarga elétrica entre duas nuvens ou entre uma nuvem e o solo; clarão que precede ou acompanha o trovão”.
Vemos, então, que se trata de uma relação de parassinonímia definida em função da implicação recíproca, ou seja, em função da equivalência: Se uma frase, F1, implica a frase F2 e se F2 implica F1, podemos dizer que são frases equivalentes:
F1
É F2 e se, F2 É F1, então F1 º F2,Em que É significa “implica” e º significa “equivalente a”.
Se as duas frases equivalentes diferem uma da outra apenas pelo fato de uma ter a unidade lexical x, e a outra tem y, então podemos dizer que x e y são parassinônimas.
Nas citações:
Por momentos um cúmulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas planícies. (Euclides da Cunha: 1929)
Os aguaceiros continuavam furiosos. O vento, os fuzis, os trovões não tinham a menor intermitência (Virgílio Várzea, Nas Ondas, 1910: 30).
Podemos perceber que nos textos, as lexias “relâmpagos” e “fuzil” estão empregadas com o mesmo valor semântico e que ambas remetem ao mesmo significado que se encontra no campo semântico 2 –fenômeno atmosférico.
No texto de Euclides da Cunha aparece ‘Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas”, em que fulgurar quer dizer emitir ou refletir luz, brilho intenso; luzir, brilhar, resplandecer, e esse precede a lexia trovoadas; ou seja, primeiro o clarão, depois o estrondo.
No texto de Várzea aparece “o vento, os fuzis, os trovões”, uma gradação que mostra as seqüências idênticas à anterior, primeiro os fuzis, refletindo luz, e depois os trovões, trazendo o estrondo.
Além desses, podemos incluir a lexia raio, na nossa análise por ser sugerida como resposta pelo ALiB e que mantém a mesma relação de parassinonímia com as lexias fuzil e relâmpago quando empregada num mesmo contexto. No Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, século XXI, versão 3.0 temos: Raio. Do latim radiu, por via popular. Descarga elétrica entre uma nuvem e o solo, acompanhada de relâmpago e trovão. Encontramos a seguinte citação:
Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz (G.Dias, Obras Poéticas, II, p. 229)
O autor Virgílio Várzea (1862-1941) que utiliza o verbete fuzil, assim como os sujeitos da nossa pesquisa estabelecem uma relação entre a escolha da lexia fuzil e a proximidade com a vida no mar. Ao estudarmos a temática de sua obra, vimos que está relacionada predominantemente ao mar, com o qual teve afinidade desde a infância. O escritor foi o primeiro na América Latina a se ocupar atentamente do mar, personagem central de toda sua obra. A vida no mar, as aventuras marítimas, a perícia no navegar, a atividade pesqueira, mas também os perigos do mar traiçoeiro são os temas fundamentais da maior parte de suas narrativas. Em função de sua experiência como marinheiro, tornou-se capaz de falar sobre o mar com muita autoridade e riqueza de detalhes. A dependência quase determinista de muitas personagens a seu meio ambiente revela a afinidade do autor com o modo de vida caiçara.
Concluímos que essa proximidade da temática do autor com o modo de vida dos sujeitos da nossa pesquisa faz com que ocorra homogeneidade na escolha da lexia fuzil.
A equivalência a que nos referimos quando tratamos da parassinonímia estende-se à equivalência diatópica: as isoglossas, nesse caso, apontam semelhanças em espaços geográficos, e aqui temos isoglossas diatópicas.
Ou seja:
Espaço geográfico Determinada lexia
↓ ↓
Proximidade com o mar Fuzil
Considerações finais
Ressaltamos que é no léxico de uma língua natural que está retratada a herança dos signos recebidos. Ao nos debruçar sobre os fenômenos mais diretamente ligados ao uso que os falantes fazem da língua e nas determinadas regiões em que eles ocorrem, surgem novos campos de reflexão e de pesquisa. Segundo Bakhtin (1997), todo símbolo é ideológico e a ideologia é um reflexo das estruturas sociais de uma determinada sociedade e toda modificação da ideologia acarreta uma modificação da língua. E ainda, a língua não existe fora de um contexto social, pois o falante pensa e se expressa para um público definido num determinado contexto e é nessa maneira peculiar de expressão que se espelha o saber lingüístico, os costumes, os valores, enfim, a cultura de um povo.
Referências bibliográficas
ALIB –Atlas lingüístico do Brasil – Questionário, 2001.
AULETE, Francisco Caldas de. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa em 5 volumes. 5ª ed. brasileira. Rio de Janeiro: Dele, 1958.
BAKTHIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução: LAHUD, Michel et al. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
CARDOSO, C. e S. F. A dialetologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
COSERIU, E. Sincronia, diacronia e história. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979a.
––––––. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário eletrônico novo Aurélio século XXI. Versão 3.0-PC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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POTTIER, B. Lingüística geral: teoria e descrição. Tradução de W. Macedo. Rio de Janeiro: Presença, 1978.
VILELA, M. Estruturas léxicas do português. Coimbra: Almedina, 1979.
––––––. Estudos de lexicologia do português. Coimbra: Almedina, 1994
www.coltec.ufmg.br/alunos/210/raios/boca.html. Disponível em 05/08/04.
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