FILOLOGIA E
COTIDIANO
Maria Antonia da
Costa
Lobo
(UFRJ, UCB, UniverCidade).
Introdução
O
homem é
integrante de uma
sociedade e faz
parte desta,
porque se relaciona
por
intermédio da expressividade
resultante de
linguagens convencionalizadas e internalizadas ao
longo da
própria
existência.
Se a
linguagem é
um
meio de
comunicação, a
língua é
um
instrumento
que serve
para
transmissão de
idéias.
Essa
transmissão
passa
por
um
questionamento
psicológico centrado na
razão e no
modo de
comunicação,
através de
um
mecanismo
psíquico dessa
operação.
Passa
ele
ainda
por
um
outro
questionamento:
quais
são as
relações de
um
signo
lingüístico
com a
realidade?
Em
verdade,
em
que
condições será
um
signo aplicável a uma
situação
em
que
ele tem a
função de
significar?
Que
regras asseguram uma verdadeira significação?
Considerando-se
que
pesquisas filológicas investigam
aspectos
variáveis,
dentro de uma
determinada
perspectiva
que perpassa
por
um
contato
entre
terminologias, várias
questões surgem
em
conseqüência disso,
dentre
elas:
qual a
origem do
que é expressado?
Que
termos
são utilizados? Trata-se de
um
uso
consciente?
O
recurso
a
um
método
Segundo Guiraud (1989: 15), “a significação
é
um
processo
que associa
um
objeto,
um
ser, uma
noção
ou
um
acontecimento a
um
signo
capaz de os evocar: uma
nuvem é
sinal de
chuva,
um
franzir de
sobrancelhas
sinal de perplexidade !! (...)”– Essa significação
tem
um
sentido.
O
sentido,
tal
como é
comunicado no
discurso, depende de
relações de uma
palavra
com outras do
contexto, sofrendo
influências de motivações,
tais
como a morfológica, apoiada
nos
processos de
formação de
palavras (derivação/composição).
Mas de
onde vêm as
palavras? As
palavras
são
em
verdade,
criação
humana
com
finalidade de
nomear/designar
coisas, seja
porque estas
não tenham
ainda sido nomeadas, seja
porque os
nomes atribuídos a essas
coisas
não
mais exercem a
própria
função
com
eficácia.
Na
teoria de Wörten und Sachen, é
sabido
que as
coisas estão
estritamente
ligadas as
palavras
que as representam. A
etimologia de
um
nome
referente a
um
objeto pode
indicar a
referência deste no
instante da
origem desse
nome.
Da
mesma
forma
que uma
estrutura
sintática se refere a
um
acontecimento, uma
palavra diz
respeito a uma
coisa.
Dentro do
método
em
questão (palavras e
coisas),
pelo
conhecimento,
em
profundidade, da
coisa, é
possível
chegar à
etimologia da
palavra
por
ela designada.
A
respeito da
atribuição do
nome à
coisa, os referidos
processos de
formação de
palavras permitem a
produção das mesmas a
partir de
formas (pré) existentes:
achocolatado,
amanteigado (caso de
nominação
intencional), devendo
manter
com essa
produção uma
relação de
base
semântica.
Mas
nem
sempre essa
relação é respeitada.
No
caso,
por
exemplo, do
nome
biscoito, carreia
ele, na
origem, a
maneira de
como
era o
respectivo
preparo: bĭs cŏctus (cozido
duas
vezes).
Atualmente, a
representação
original sofreu
associações
dentro da
área da
culinária.
A nomeação desse
produto
alimentício,
em
conseqüência de
especificações a
ele atribuídas, sofre
acréscimo – o
termo
biscoito
não é
suficiente
para
satisfazer o
consumidor.
Com o
advento de
avanços
tecnológicos ligados à
industrialização de
alimentos, constata-se
que à nomeação do
produto chamado
biscoito é acrescido
um
termo, transformando-se
em uma
segmentação
tal
como
biscoito
amanteigado,
impressa
em uma
embalagem
que envolve o
produto. Essa alteração
leva, a priori, o
consumidor a
acreditar
que estará comprando
um
produto
em
cuja
composição entra
um
laticínio – a
manteiga. Ao
verificar a
composição
expressa na
embalagem do
produto, o
consumidor constata
que o
mesmo
não contém
manteiga,
mas
sim
gordura
vegetal.
Logo o designador
não condiz
com a nomeação, devendo esta
ser alterada
para
biscoito engordurado
vegetal.
Outras
constatações podem
ser
feitas
ainda na
área da
produção
alimentícia:
produto
achocolatado. Neste
caso, trata-se de
um
alimento
que contém
até 32% de
cacau
em
um
universo de 100%.
Outro
produto, denominado ‘chá
sete ervas”,
na
realidade,
não contém
sete
ervas. A priori, se a
proposição (sete
ervas) correspondeu a uma captação
disponível, a posteriori, a
associação e a
crença de
sete
ervas na
composição do
produto é
naturalmente excluída,
mediante a
constatação de se
estar
diante de u’a
marca e
não da
composição do
produto.
Tem-se
aí o
que se
chama de
negação
meta lingüística (HORN, 1989)
em
que uma
asserção é negada
para de
fato se
negar
um de
seus pressupostos (sete
ervas).
Fato
semelhante é verificado
também
em
leite
em
pó modificado.
Ora, modificado pode se
relacionar
tanto a
leite,
quanto a
pó. Entenda o
consumidor tratar-se de
modificação centrada no
leite
resultante de
um
processo de
extração da
água nele contida. A
segmentação
leite
em
pó passou a
leite
em
pó modificado. Estaria o
consumidor
diante do
leite
ou de
outro
produto?
Logo, é
necessário
que a
relação
entre
palavras e
coisas seja
testada a
cada
produto consumido.
Na
área
alimentar, múltiplas
são as
segmentações:
creme de
leite
que
passa a
creme de
leite UHT homogeneizado. A decodificação deve
passar
pela
análise da siglimização (UHT) e
ainda
por
um
adjetivo
especificador
ou
caracterizador de
um
produto.
Qual a
relação
entre
especificação,
caracterização e
informação? Deverá o
consumidor
ingerir
um
produto, desconhecendo a
composição (química)
do
mesmo?
Comparando-se duas
embalagens de
creme de
leite (marcas leitbom
e
batavo), os
seguintes
registros
verbais
são encontrados:
Creme de leitbom (1) |
Creme
de
leite
batavo
(2) |
Ingredientes:
Creme
de
leite,
Leite
em
pó
integral,
Soro
de
leite
em
pó,
Espessante
goma
alfarroba,
Carragena e
Estabilizante citrato de
sódio |
Ingredientes:
Creme
de
leite,
Leite
em
pó,
Estabilizante carragena e
Espessante carboximetilcelulose de
sódio |
Ora, na
coluna da
esquerda (1) (leitbom), há uma
especificação representada
pelo
termo “integral” –
além de
ser
leite
em
pó, é
também
integral.
Em
um, carragena é espessante;
em
outro, é estabilizante.
Na
coluna da
direita (2) (batavo), o espessante
é representado
pela
goma
alfarroba.
Para
que o
consumidor tenha
consciência do
que está ingerindo, faz-se
necessário
consultar
um
dicionário.
Logo, deverá
proceder a uma consulta lexicológica
em:
Alfarroba – “fruto
da
alfarrobeira; farroba” (Houaiss,
2004: s. v.).
Ainda nessa consulta, passa ele à
alfarrobeira.
Árvore frondosa da família das leguminosas,
subfam. Cesalpinioidea, de caule tortuoso, folhas paripenadas, flores apétalas,
avermelhadas ou esverdeadas, e grandes vagens cilíndricas, castanho-escuras;
alfarroba, ervilhaça-parda, fava-rica, figueira de Pitágoras, figueira do Egito,
pão-de-são-joão. [Nativa do Mediterrâneo, é cultivada pela madeira e esp. pelo
fruto, adstringente e tanífero, depois com polpa adocicada e comestível, tb
muito us. como forragem].(...) (Idem, ibidem).
O que é um espessante? Que o consumidor
faça mais uma consulta lexicológica e encontrará:
“Espessante 1. Que ou aquilo que tem a
facilidade de espessar (algo). 2. Substância us. em culinária para espessar
sorvetes, molhos, geléias, etc. Etimologia: ver espess-.” (Idem, ibidem).
“Espess-. Elemento de composição
antepositivo, do latim spĭssus,-a,-um espesso, denso, compacto, consistente,
sólido, donde que corre lentamente” (Idem, ibidem).
Enfim, chega o consumidor a entender o que
é espessante.
Caso o consumidor analise ainda o creme de
leite de nome leitbom, poderá concluir que há outra possibilidade: o
leite não bom.
Outra informação importante também está em:
Não contém glúten.
Qual a finalidade dessa informação
explícita?
Nova incursão lexicológica:
Glúten
– substância azotada, viscosa, extraída de cereais, depois de eliminado o amido;
glute. GRAMÁTICA: plural glutens e glútenes. ETIMOLOGIA: Latim Glūten, īnis,
toda substância conglutinante.” (Idem, ibidem).
A consulta ao dicionário não esclarece a
dúvida: o ato de não registrar informação referente à ausência de glúten deve
ser entendido como a presença de glúten no produto alimentício?
Conclusão
Se para um grupo social essa relação não
constitui uma informação importante ou relevante, para outro sim – é uma questão
de semântica, uma questão de língua portuguesa e acima de tudo uma questão
filológica.
Na perspectiva de uma psicologia social da linguagem, a ação humana, em especial
a discursiva, é considerada uma atividade social, uma vez que é (sempre)
orientada para uma significação socialmente relevante. Em toda ação há um
comportamento significante, mutuamente orientado e socialmente integrado.
É importante ressaltar as formas através
das quais uma informação é reproduzida na semântica do discurso.
A noção de relevância pode mesmo ser
definida de forma mais específica em termos contextuais: a informação é
relevante para o discurso registrado em um enunciado, para o contexto de
interação (produtor/consumidor) e para as necessidades que dela têm os
consumidores/ receptores de um produto.
O que aparece registrado em um rótulo
(informativo/ referencial) não deve colocar jamais em jogo a credibilidade. Um
rótulo apresenta um valor argumentativo.
O valor argumentativo de um enunciado é
determinado, pelo menos parcialmente, pela respectiva estrutura lingüística.
Esse valor argumentativo é determinado ainda por um número de traços que devem
conter um valor de verdade – a produção do sentido passa pela argumentação.
E a Filologia busca a origem, razão maior
para o entendimento e aceitação de um valor de verdade na relação entre palavras
e coisas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Guiraud, Pierre. A semântica.
Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
HORN, L A natural history of
negation. Chicago: Chicago University Press, 1989.
HOUAISS, Antonio; SALLES, Mauro
Villar de. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão
1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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