O CONSONANTISMO GALEGO
NO
CONTEXTO DA ROMÂNIA
IBÉRICA
Valéria Gil Condé (USP)
O
galego herdou o
sistema consonântico do
latim
vulgar,
por
isso, possui
pontos de
convergência
com as
línguas românicas,
particularmente
com o
ramo
ocidental e uma
grande
unidade
com as
línguas ibéricas.
Do
ponto de
vista
comparativo, as oclusivas galegas igualam-se às
línguas iberorromânicas. A
oclusiva
sonora
bilabial [b]
somente
em
princípio de
palavra mantém-se;
entre
vogais, representa-se
por uma fricativa
[B],
fenômeno
recorrente nas
línguas ibéricas. Nota-se
ainda, uma
vacilação na
pronúncia
entre [b]
e [v] as
quais se neutralizaram
em
favor de [B],
contudo,
conservou-se a
grafia
etimológica de <v>,
como ilustraremos no
quadro
abaixo.
Esta
tendência é
comum
também nas
línguas ibéricas,
devido à
influência do
substrato
ibérico; o
castelhano resolve
como o
galego, mantém a
grafia
etimológica do <v>; o asturiano e o mirandês
não a mantêm; à
semelhança do
português, existe no
catalão a
oposição
entre a
oclusiva
bilabial e a fricativa labiodental, ambas sonoras.
Essa
vacilação na
pronúncia,
entretanto, está
presente no
português da
zona
setentrional (entre o Douro e o
Minho). Dessa
forma, compõem-se os
fonemas
oclusivos do
galego:
|
Oclusiva |
Oclusiva
|
Alofonefricativo |
Exemplo |
Exemplo
ortográ-fico |
Exemplo
alofone |
Exemplo
ortográ-fico |
|
surda |
sonora |
sonoro |
|
|
|
|
bilabial |
[p] |
[b] |
[B] |
[Èpola]
[Èbulto]
[Èbiko] |
pola
vulto
bico |
[ÈaBe]
[aÈBiDa]
[ÈkowBo] |
ave
a
vida
coubo |
Linguo
dental |
[t] |
[d] |
[D] |
[tiÈtoR]
[ÈdaR] |
titor
dar |
[ÈpRaDo] |
prado |
Velar |
[k] |
[g] |
[å] |
[Èkaldo]
[Ègoro]
|
caldo
gorro |
[Èalåo] |
algo |
Nas fricativas ocorre a
ausência da
palatal
sonora [Z]
presente nas
línguas românicas.
Até o
período
medieval, registrou-se a
palatal
sonora
que se ensurdeceu no
galego
moderno evoluindo
para [S],
como observaremos no
próximo
quadro. O
ensurdecimento das fricativas é
um
fenômeno
ibérico, comprovado a
partir do
século XIII,
que tem
suas raízes num
substrato
comum,
podemos observá-lo no asturiano, no mirandês, no
castelhano e
em algumas
variantes do
catalão. O
galego
moderno
não manteve a
grafia
etimológica <j>
ou <g>
diante das vogais –e– ou –i–
para
grafar a
palatal
sonora [Z],
por
desconhecer
esse
fonema.
A prepalatal [tS] corresponde
à
antiga
pronúncia galego-portuguesa e provém dos
grupos consonânticos latinos –PL–, –CL– e –FL-. No
português
moderno, palatalizou-se
para [S], no
entanto,
ainda se
conserva a
grafia
etimológica <ch>. No
português
falado nas
regiões do Minho, Trás-os-Montes e na
Beira
Interior
ainda se
registra a
pronúncia galego-portuguesa.
Esses
grupos consonânticos
latinos tiveram
diferentes
soluções
dentro da Ibéria; no mirandês evoluiu
para [tS],
como no
galego-português; no
castelhano e no asturiano evoluíram
para [´] e no
catalão,
em
geral, manteve-se.
A labiodental
latina
surda [f]
mantém-se nas
línguas românicas e possui na Ibéria,
por
influência do
substrato
ibérico
ou do adstrato basco (BASSETTO, 2001: 155), uma
solução
diferente
somente
para o
castelhano e o asturiano
oriental,
pois, passou à
pronúncia
muda [h].
Segundo Bassetto (2001:155), a
aspiração do
fonema [f]
é proveniente dos
Montes Cantábricos e da Gasconha.
A
aspiração persistiu no
castelhano
até o
século XVI,
quando se tornou
mudo.
Um
fenômeno
moderno
muito difundido
em
grande
parte do
território
galego,
que
afeta consideravelmente os
fonemas fricativos, é a
oposição
entre o
fonema interdental
surdo
[T] e as
diferentes
realizações de <s>,
que
ora se realiza
como
um
fonema apicoalveolar
surdo
[s°] ,
ou
ainda
como
um predorsoalveolar
surdo
[s].
Dessa
forma, as
pronúncias
possíveis
para facer, caza e zapato,
além das exemplificadas no
quadro
subseqüente, seriam [faÈs°eR],
[Èkas°a], [s°aÈpato],
ou
ainda[faÈseR],
[Èkasa], [saÈpato].
O
fonema predorsoalveolar surdo é
comum
também
em Portugal, na
zona
intermédia do noroeste-centro-leste.
|
Fricativa |
Exemplo
|
Exemplo
ortográfico |
|
Surdo |
|
|
labiodental |
[f] |
[Èfame] |
Fame |
prepalatal |
[tS] |
[ÈbitSo] |
Bicho |
interdental |
[T] |
[faÈTeR]
[ÈkaTa]
[TaÈpato] |
Facer
caza
zapato |
Apicoalveolar |
[s°] |
[Èas°a] |
Asa |
palatal |
[S] |
[ÈoSe] |
Hoxe |
O
quadro
abaixo apresentará as oclusivas
nasais galegas
que seguem o
modelo das oclusivas
nasais latinas,
com algumas
soluções românicas. As oclusivas
nasais
bilabiais e alveolares
são a
continuação das latinas
que
em
posição
inicial se conservam,
fato
comum às
línguas românicas
em
geral. A palatalização da
nasal alveolar intervocálica latina –N– é
um
fenômeno
recorrente nas
línguas românicas. No
português e no
galego
ou
ela desaparece lat. LUNA> lúa (gal.
lua)
lua (port.)
ou se palataliza.
Até o
período
medieval, ambas as
línguas partilharam da palatalização,
com a
conseqüente nasalização da
vogal
anterior;
modernamente, o
galego desnasalizou as
suas
vogais,
como se verá
nos
exemplos
abaixo; o
português, ao
contrário, as mantiveram. Na Ibéria, a
palatalização da
nasal
latina ocorre
ainda no
catalão e no
castelhano a
exemplo do
galego.
Já o asturiano,
além de
palatalizar o –N– intervocálico, palataliza
também o –N–
inicial lat. NOVACŬLAM> ñavaya. No mirandês,
houve a
manutenção do –N– intervocálico
latino: cheno (cheio),
rana (rã).
Para
elucidar o
fenômeno da
desnasalização,
em
galego, seguem-se
abaixo,
exemplos de
palavras provenientes das
terminações latinas –ĀNǓ, –ĀNĂ, ĀNĂS, –ĀNŌS, –ĀNĀS,
– ĀNES, –ĔNES, –ŌNES e –ŪNES,
que resultaram
em diversas
soluções,
dentre
elas, duas
são as
mais
recorrentes. A
primeira
solução corresponde à palatalização da
nasal
palatal,
posteriormente, vigorando
até a
atualidade, a
desnasalização da
vogal
anterior encontrada na
zona de
maior
extensão
geográfica da Galiza, a do gal.
ocidental: lat. VERĀNǓ> verán, lat. GERMĀNĂ>
irmãa> irmán, lat. GERMĀNĂS> irmãas> irmáns, lat. MĀNŌS> mãos>
mans, lat. MĀNǓ> mão> man, lat. CANES> cans, lat. BĔNES> be)es>bens,
lat. LATRŌNES> ladrões>ladróns, lat. COMŪNES> comu)es>
comúns.
A
segunda
solução é a palatalização do –N– intervocálico
latino, e
modernamente, a
desnasalização das
suas
vogais;
esse
fenômeno ocorre na
zona do
galego centro-oriental: lat. VERĀNǓ> verão>
verao, lat. GERMĀNĂ> irmãa> irmá, lat. GERMĀNĂS> irmãas> irmás,
lat. MĀNŌS> mãos> maos, lat. MĀNǓ> mão> mao, lat. CANES> cas,
lat. BĔNES> be)es> bes,
lat. LATRŌNES> ladrões>ladrós, lat. COMŪNES> comu)es>
comús.
Sobre a
consoante
dupla intervocálica latina –NN– reduziu-se a –N–
em
português e
em
galego. Nas outras
línguas da Ibéria palatalizou-se.
A
nasal
velar
galega desenvolveu-se,
segundo
estudiosos,
no
período
medieval e é o
resultado da
necessidade de
oposição
fonológica do
sistema de
evolução das
nasais latinas –nn-:-n–,
que,
como foi explicitado no
parágrafo
anterior, –nn– reduziu-se para –n-;
já a
consoante intervocálica
simples latina –n–
ou desapareceu
ou se palatalizou;
ou
ainda, sofreu
um
terceiro
processo: velarizou-se.
Maia (1986: 612-613)
registra a
nasal
velar na
linguagem
popular portuguesa no
norte de Portugal,
resultado do
passado
comum galaico-português. Do
que foi
exposto, compõe-se desta
forma o
sistema das
nasais
em
galego:
|
Oclusiva
nasal |
exemplo |
Exemplo
ortográfico |
|
Sonora |
|
|
bilabial |
[m] |
[ÈmaR] |
Mar |
alveolar |
[n] |
[Èneno] |
Neno |
palatal |
[ø] |
[Èuøa],
[veÈraø] |
uña, verán |
velar |
[N] |
[ÈuNa] |
Unha |
Do
sistema das
consoantes
simples e
duplas
em
latim, –r– e rr–
que faziam
oposição de
quantidade, no
galego
como nas outras
línguas ibéricas fizeram
oposição
entre
simples e
múltipla.
Já
em
português, registra-se a vibrante
simples e a
velar [R]
em
posições
inicial e intervocálica. O
quadro das vibrantes galegas
assim se apresenta:
|
Vibrante |
Exemplo |
Exemplo
ortográfico |
|
Sonora |
|
|
simples |
[R] |
[ÈfaRo]
[ÈpREto]
[ÈpRta] |
Faro
preto
porta |
múltipla |
[r] |
[Èrato]
[Èforo]
[kaÈraSe] |
Rato
forro
carraxe |
As
laterais, a
exemplo da
consoante
latina,
em
posição
inicial, mantêm-se nas
línguas românicas, e apresentam-se
como
um
divisor de
águas na
região
noroeste da Ibéria,
pois, marcam uma isoglossa: nas
línguas provenientes do
primitivo
galego-português conservam-se;
em asturo-leonês, palatalizam-se.
Assim: lat. LUNA> lúa
em
galego;
em asturo-leonês llua.
No
galego,
em
posição intervocálica
desaparece
como no
português,
devido à
antiga
pronúncia galego-portuguesa, contrariamente ao
que ocorre às outras
línguas da Ibéria,
como
também a outras
línguas românicas. A
consoante
dupla simplifica-se
tanto
em
galego
quanto
em
português; nas outras
línguas ibéricas palataliza-se. O
fonema [´]
é o
resultado da "palatalização de L
nos
grupos LI +
vogal: lat. FILIUM> fillo, LLI +
vogal: lat. ALLIUM> allo, LLE +
vogal: lat. MALLEUM> mallo, –LL– + ī
em
final de
palavra: MARCELLI> Marcelle, e
também dos
grupos
romances C'L, G'L, T'L e B'L (OCULUM>
oclu> ollo, TEGULAM> tegla> tella, SITULA> sitla> sella, TRIBULUM> triblu>
trillo).".
É
corrente
entre os
jovens, substituir-se [´]
por [y]
,
fenômeno
comum a outras
línguas românicas. O –L– tornou-se
final
por
apócope da vogal: lat. ANĬMĀLE>
animal,
fato compartilhado
com as
línguas da Ibéria.
|
Laterais |
Exemplo |
Exemplo
ortográfico |
|
Sonoras |
|
|
alveolar |
[l] |
[Èlua] |
Lua |
palatal |
[´] |
[Èfi´o] |
Fillo |
Uma
particularidade
lingüística e distendida
por
quase
todo o
território
galego é
fenômeno da gheada. Consiste na
realização da
oclusiva
velar
sonora [g]
como fricativo faringal
surdo[ð],
ou
ainda
como fric. faringal
sonoro [À],
fric. laringal
ou glotal
surdo [h],
fric. laringal
ou glotal
sonoro[ú],
fric.
velar
surdo [x],
fric. uvular
surdo[X],
fric. uvular
sonoro [Ò] e
aproximante uvular sonora [Ò4].
A
realização
mais difundida e
que foi acolhida
pelo
registro
formal é a fricativa faringal
surda. Essa
inovação
fonética é
um
fenômeno
recente,
data do
século XVII,
segundo
registros e
testemunhos
escritos. Na
atualidade,
lingüistas e filólogos têm-se
ocupado de
explicar a
sua
existência.
REI (1991:181-189) apresenta-nos
três
teorias defendidas
por
estudiosos
para
explicar
tal
fenômeno. A
primeira baseia-se na
tese substratística e consiste
em
vincular o
surgimento da gheada à
mesma
região
geográfica
onde vivia uma
população pré-romana
que habitava os castros..
Defendida
inicialmente
por Zamora Vicente
depois
por Rabanal e Fernández González é considerada
como
herança do
substrato dos
povos
que
ali viveram.
A
segunda
tese defendida
inicialmente Pensado Tomé,
em 1970 e corroborada
por Pensado Ruíz,
em 1983, denomina-se adstratística e
vê na
influência do
castelhano a
sua
origem. Baseia-se na
dificuldade
que tiveram os
galegos de
pronunciar a fricativa
velar
surda [x]
presente no
castelhano.
Assim, pronunciavam
como
oclusiva
velar
sonora joven, hijo, Ángel; num
segundo
momento, ao aprenderem a
pronúncia da fricativa
velar
surda,
por hipercorreção, estenderam a
mesma
pronúncia
para a
consoante
oclusiva
velar [ g ] ,
assim, luego [Èlwego]>
[Èlwexo].
Finalmente,
esse
fonema [x]
contaminou o
sistema
fonético do
galego: [g]
>[x], proporcionando as
diferentes
realizações
fonéticas da gheada.
A
terceira
tese denominada
mecânica
ou estruturalista foram defendidas
por Schroten, Prieto, Santamarina e
Rei.
Cada
um,
com alguma
particularidade tem
como aceito
que a gheada originou-se no
próprio
sistema do consonantismo
galego. A
oclusiva
velar manteve-se
somente
em
posição
inicial e
depois da
nasal
palatal; nas
demais
posições passou à fricativa.
Ainda
assim, Schroten admite a
influência do
castelhano (superstrato) na
sua
formação. Santamarina refuta a
influência reclamada
por Schroten, demonstrando
que na
região
geográfica
onde se realiza a gheada registra-se
a
não
manutenção desse
fenômeno no
grupo <ng>:
assim,
em
domingo, pronuncia-se [doÈmiNko],
o
autor
argumenta
que se fosse influenciado
pelo
castelhano, nesse
contexto, haveria a
pronúncia
com gheada.
Rei concorda
com essa
teoria e vai
além, considera pan-românico a
produção desse
fonema
que o compara ao
fenômeno denominado gorja toscana, na
região da Toscana, Itália. Consiste na
aspiração das
consoantes latinas –C-,
-T– e –P-: [kh], [th], [ph], chega-se
também a fricatizá-los como [x], [Ө] e [ç],
respectivamente. Comparem-se os
exemplos
com a gheada
galega:
|
Fricativo
surdo
(gheada) |
Exemplo |
Exemplo
ortográfico |
|
Surdo |
|
|
faringal |
[ð] |
[Èðato]
[foÈðejRa]
[ÈðRilo]
[ÈðlRia] |
Gato
fogueira
grilo
gloria |
Como vimos, as
questões específicas apontadas nesse
artigo podem
ser
assim concluídas:
O
galego,
sob o
ponto de
vista
fonético demonstrou
estar
em
consonância
com a
sua
primitiva
origem galego-portuguesa,
ora ao
conservar
arcaísmos,
ora ao
apresentar
soluções
que o
português
moderno
também apresenta.
Assegurou
também a
sua
inserção no continuum
lingüístico no
noroeste
peninsular, ao
apresentar
aspectos
comuns
com o asturiano, denunciando a
antiga
divisão
romana da Gallaecia.
A
presença do adstrato
castelhano
não interferiu na
sua
estrutura
fonética,
apesar do
contato
lingüístico,
cuja
interferência seria uma
ameaça à
sua
conservação. As
semelhanças
que ambas apresentaram
são
fruto da
presença
ora do
substrato
ibérico,
comum a outras
línguas da Ibéria.
O
galego
moderno apresentou
inovações
frente o
galego
arcaico, o
que demonstra a
sua
vitalidade
lingüística, as
quais figuram num
fenômeno
mais
amplo o da România
Ocidental.
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Normas ortográficas e morfolóxicas do
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REI, Francisco Fernández. Dialectoloxía da
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1991.
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