Relações conceptus/designationes
VOCABULARES E terminológicas
no percurso gerativo de enunciação
de codificação

Maria Aparecida Barbosa (USP)

Introdução

Este trabalho propôs-se a examinar alguns aspectos relevantes do processo de constituição e permanente reconstituição das terminologias e metalinguagens técnico-científicas. De fato, o estudo dos processos de constituição do conjunto terminológico de áreas de conhecimento tem grande relevância, no âmbito das pesquisas terminológicas. Analisamos nesta pesquisa, de um lado, a natureza dos termos que integram os universos de discurso técnico-científicos, com vistas à proposição de uma taxionomia; de outro lado, a dinâmica dos processos de transposição de termos entre áreas científicas e tecnológicas, da transposição de vocábulos da língua geral para as metalinguagens técnico-científicas e de termos das linguagens especializadas para a língua geral.

Observaram-se certos fenômenos de variação sociolingüística nas linguagens de especialidade, assim como mecanismos de passagem da linguagem banal para as linguagens técnico-científicas e vice-versa. Foi possível construir um modelo que procura dar conta da dinâmica dessas transposições dos graus de cientificidade e/ou banalização dos termos técnico-científicos, ao longo de um eixo ou continuum entre esses parâmetros.

Sobre essas questões, acreditamos oportuno destacar os seguintes aspectos: 1) O discurso metalingüístico de uma ciência ou de uma tecnologia; 2) Tipologia dos processos de terminologização e de vocabularização; 3) Relações entre o conjunto termo e o conjunto vocábulo: graus de terminologização e de banalização.

O discurso metalingüístico de uma ciência
ou de uma tecnologia

O estudo dos processos de constituição do conjunto terminológico de áreas do conhecimento e de suas aplicações tem grande relevância, no âmbito das pesquisas terminológicas. Tal importância decorre, sobretudo, do fato de que a metalinguagem terminológica é um dos fatores determinantes da delimitação conceitual de áreas, domínios e subdomínios técnicos e científicos. Duas questões parecem-nos, aqui, particularmente pertinentes: a) a das relações entre interdisciplinaridade e especificidade epistemológica e metodológica das áreas científicas e técnicas; b) a dos tipos de subconjuntos terminológicos possíveis no espaço dessas áreas.

Quanto à primeira questão, cumpre assinalar que o universo de discurso metalingüístico de uma ciência – representação e síntese de suas descobertas e do saber construído – se preciso e bem elaborado, leva a aprimorar a prática profissional, em toda a sua abrangência, e conseqüentemente, essa mesma prática pode realimentar tal discurso com novos ´fatos´ e novas unidades lingüísticas, reafirmando o processo de alimentação e realimentação da ciência básica e da ciência aplicada e/ou tecnologia.

Com efeito, os modelos científicos e tecnológicos aperfeiçoam-se com a mudança dos ´fatos´ que constituem seu objeto de estudo, com os avanços da investigação, evoluem, concomitantemente, seus discursos lingüísticos, daí resultando a necessidade do rediscurso constante da ciência e da tecnologia, de sua definição e limites, do seu objeto, métodos e técnicas, da sua metalinguagem.

Como se sabe, toda ciência e tecnologia, seja do ponto de vista epistemológico, seja do metodológico, seja, ainda, daquele da construção do seu saber metalingüístico, estabelece relações de cooperação – interdisciplinares, no nível das ciências básicas, ou no nível das ciências aplicadas, e de alimentação e realimentação entre estas e aquelas – estreitas, com outras ciências básicas, ciências aplicadas e/ou tecnologias. Esse processo de contribuição recíproca, entre tais disciplinas, não lhes retira, contudo, a especificidade do objeto de estudo, campo, método, técnicas e, até mesmo, de modelos e de metalinguagem.

De fato, sustentando-se todas nesse relacionamento complexo e dinâmico de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, alimentação e realimentação, intra– e inter-áreas do conhecimento humano e de suas aplicações, perseguem, efetivamente, objetivos comuns: a busca da verdade, a análise e descrição do seu objeto, a redução dos fatos a modelos, a construção do saber, o aprimoramento da qualidade de vida, a construção de um discurso metalingüístico específico.

Considerando-se, apenas, o último aspecto apontado, o do discurso metalingüístico, é licito dizer-se que a prática de uma ciência básica ou aplicada, a sua produtividade e crescimento demonstram a imperiosa necessidade de construção e permanente reconstrução de um vocabulário próprio, preciso e consensual, instrumento de análise e descrição, que não somente permite defini-las e circunscrevê-las, como também lhes proporciona a aplicação mais rigorosa, produtiva, eficaz, dos princípios, métodos e técnicas. Uma ciência que não conseguisse autodefinir-se, não teria identidade, não poderia delimitar nem o seu objeto de estudo nem os seus processos de atuação. Dessa forma, uma ciência ou tecnologia vão constituindo-se e delimitando-se como tais, no processo histórico de acumulação e transformação do conhecimento, à medida que, simultaneamente, se vão delimitando o seu objeto formal, os métodos e técnicas de análise e descrição desse mesmo objeto e à medida que, igualmente, se vai consolidando a sua metalinguagem. Noutras palavras, com a precisa definição de seus termos, e somente assim, determinam-se claramente os fatos próprios ao seu universo, seu métodos e técnicas. É legítimo afirmar, pois, que a construção da ciência é indissociável da construção de sua metalinguagem. À proporção que esta se vai constituindo, consolida-se a ciência e sua identidade epistemológica.

Quanto aos tipos de subconjuntos terminológicos (questão b), se, de um lado, o campo conceitual e metalingüístico específicos constituem, como dissemos, uma das condições fundamentais, para delimitação de uma área, de outro, a construção desses universos é um processo delicado e complexo.

Assim, pois, examinando-se o universo terminológico de uma mesma ciência e/ou tecnologia, verifica-se que é constituído de subconjuntos terminológicos de natureza e funções bastante diversas. Alguns desses subconjuntos, por exemplo, contêm unidades terminológicos criadas especificamente para determinada área, exclusivas e caracterizadoras dessas áreas (a). É o que acontece com ecobioma ou ecossistema euhemeoróbio, na área de ecologia. Outros universos contêm unidades provenientes de outra área, como, por exemplo, virus, em informática (b). Outros, ainda, contêm unidades provenientes da língua geral (c). São exemplos desse conjunto cebolinha e macaco, na área de peças automobilísticas. Nesses dois últimos casos, as unidades recebem, quando de sua transposição, acepções próprias da área que passou a integrá-las em seu vocabulário, acepções diferentes das que possuíam na área de origem. Outros universos, por sua vez, contêm unidades com acepções parcialmente comuns às de outras áreas (d), como sucede com estrutura, em diferentes ciências e tecnologias, no âmbito do paradigma do estruturalismo. Há aqueles universos, enfim, que contêm termos complexos (e), em que um elemento é emprestado de outra área, combinando-se com elementos da própria área. Temos, por exemplo, metabolismo urbano, metabolismo industrial, patologia urbana, poluição visual, poluição sonora etc.

Esses diferentes subconjuntos podem ser assim esquematizados:

2. Tipologia de processos de terminologização
e de vocabularização

Dos termos terminologização e metaterminologização

Parece-nos oportuno fazer algumas reflexões sobre os termos terminologização e metaterminologização. Terminologização é um termo que integra a Terminology work – Vocabulary. ISO/DIS 1087-1 (E), página 11 e que aí é definido como: “Terminologization – process by wich a general language word or expression is transformed into a term”. Nesta acepção, terminologização stricto sensu refere-se à transposição de uma unidade lexical, da língua geral para uma linguagem de especialidade, ou seja, a transformação do vocábulo em termo. No percurso gerativo de enunciação de codificação, trata-se de uma relação entre normas de um sistema lingüístico, uma relação horizontal, intra-sistema de significação e inter-universos de discurso. O ponto de partida, nesse caso, é o nível lingüístico e ponto de chegada é, ainda, o nível lingüístico.

Entretanto, pode-se entender terminologização, também, como um processo que converte um conceito em termo, la mise en terme, expressão esta comparável à expressão (la mise en lexème), que subjaz ao processo de lexemização de Pottier. Aqui, pois, terminologização é equivalente a lexemização e tem como ponto de partida, no percurso gerativo da enunciação a própria realidade fenomênica, em que se tem uma informação virtual, amorfa, que, em outro nível, o do recorte observacional e cultural, se transforma no conceptus; este, por sua vez, será terminologizado. Logo, os fatos naturais são conceptus virtuais. Por outro lado, os conceptus construídos constituem termos virtuais, que, no nível metalingüístico da ciência, se tornam termos efetivos.

Nesse segundo sentido, terminologização lato sensu refere-se à relação entre o nível conceptual e o metalingüístico, diferente, pois, da primeira acepção aqui exposta – terminologização stricto sensu como transformação de um vocábulo em termo. Nesta concepção, há uma restrição muito grande no processo de criação de termos, já que prevê apenas o aproveitamento de vocábulos da língua geral – processo primário –, por meio de alterações semânticas – processo secundário –.

Ora, sabe-se que, dependendo da área técnica ou científica, os processos de terminologização lato sensu são muito mais amplos: o fonológico, o sintagmático, o semântico. O empréstimo (de uma língua para outra ou de uma área para outra) é apenas um dentre os vários processos de terminologização. Parece-nos, assim, que a definição dada pela norma ISO, anteriormente citada, contempla apenas um dos conceitos de terminologização, limitando, pois, a abrangência conceitual do termo.

Processos possíveis de terminologização e de vocabularização.
A dinâmica da relação inter-universos de discurso.
A semiose ilimitada.

No dinamismo da linguagem, mesmo na linguagem técnico-científica, as constantes de realizações possibilitam a delimitação de uma tipologia de processos.

(1) Consideremos, primeiramente, a passagem da terminologia para a língua comum. Podemos assim esquematizá-lo:

Esse processo transfere um termo do seu universo especializado para o da língua comum. A vocabularização é a transformação do termo em vocábulo (Muller). Conforme a concepção teórica, esse processo pode ser chamado de banalização, vulgarização e popularização. Temos, por exemplo, entrar em órbita, transposto da área técnico-científica para a língua geral, por um processo de metaforização. É o caso, ainda, de paradigma, desconstrução, sintonizar, dentre outros. A metaforização parece ser o mecanismo principal desse tipo.

(2) Consideremos, em seguida, o processo inverso, a passagem da língua comum para a terminologia. Esquematicamente, teremos:

Trata-se do mecanismo que converte o vocábulo em termo: processo de terminologização stricto sensu a que se refere a supracitada Norma Iso. Dentro outros, podemos lembrar o exemplo de sintagma, do gr. sintágma, através do latim sintagma. Na linguagem comum, significava “ reunião” (neste sentido, existe a praça Sintagma, em Atenas) e, nas ciências da linguagem, passa a significar “ combinatória intersignos ou inter-palavras”. É o caso, também, de peregrinismo, que, na língua comum, significava “ir em romaria” e, nas ciências da linguagem, passou a significar “emprego de vocábulo estranho à língua vernácula, estrangeirismo”. Observe-se, ainda, o vocábulo tópico, do grego topikós, “relativo a lugar”, através do latim topicu–, e que, em farmacologia, passa a designar o “remédio de uso externo aplicado sobre o lugar da afecção”. Enfim, temos o vocábulo navegar, “viajar pela água, com embarcação”, e os termos navegar, da aeronáutica, e, depois, navegar, da informática.

(3) Examinemos, agora, a passagem da terminologia para a terminologia, com a manutenção de um núcleo sêmico comum aos termos das diferentes áreas. Podemos esquematizá-la como se vê na fprimeira figura da página seguinte..

Temos, aqui, o processo de transposição de um termo de uma para outra área, sem a modificação total do significado, ou seja, com a manutenção de alguns traços semânticos na intersecção dos dois senemas. Nós o denominamos metaterminologização. Observem-se, por exemplo, os casos de estrutura e de função, em diferentes área. Este mecanismo decorre, freqüentemente, da existência de paradigmas epistemológicos, no processo histórico das ciências. Citemos, ainda, no século XIX, a transposição de termos da biologia, para as ciências humanas, que acompanhou a transferência do meta-modelo de “evolução e seleção natural das espécies”, da primeira para as segundas.

(4) Devemos considerar, por outro lado, a transposição da terminologia para a terminologia, sem que se conserve núcleo sêmico comum aos termos resultantes nas diferentes áreas envolvidas.

Esse processo é, também, de metaterminologização mas distingue-se do precedente, na medida em que o termo transposto perde os traços semânticos que possuía no universo de partida. É o caso, por exemplo, de arroba, “medida de peso” e arroba, como símbolo de endereço eletrônico(@).

Os dois últimos processos considerados são, como dissemos, de metaterminologização, já que instauram um termo a partir de um termo. Julgamos importante salientar que em todos os quatro tipos de processo acima examinados, a relação que se estabelece é horizontal, ou seja, de um universo de discurso para outro.

(5) Muito diferente é o processo de passagem do conceptual para o terminológico, em que temos:

Trata-se, aqui, da terminologização lato sensu, ou seja, uma criação ex-nihilo, que terá graus diferentes de motivação mas que não resulta da transposição de um universo de discurso para outro e, sim, da instauração de uma nova grandeza sígnica – numa combinatória inédita, no caso do processo fonológico e sintagmático – e de uma função metassemiótica – no caso do processo semântico. Diferentemente dos casos anteriores, a relação, aqui, é vertical. A rigor, este processo – o da terminologização lato sensu – subjaz a todos os anteriormente apresentados, visto que, em estrutura profunda, o ponto de partida é sempre o nível conceptual. Diferem quanto aos percursos realizados pela grandeza-termo e quanto ao modo como é engendrada: fonológico, semântico, sintagmático ou alogenético (Guilbert). Lembremos o exemplo do nome de marca Omo, designativo do sabão em pó. Foi criado pelo grupo inglês Unilever, na década de 30. É a primeira abreviatura de Old Mother Owl (“velha mãe coruja”). Na primeira embalagem havia, inclusive, uma coruja estilizada. As letras o o eram seus olhos, enquanto o m formava o nariz e o bico (Duarte). Percebe-se aí uma motivação, um referente e um signo que estão longe do processo de terminologização stricto sensu.

(6) O uso metafórico ou metonímico de um vocábulo na língua geral configura o processo de metavocabularização.

Algumas relações possíveis
entre os elementos do conjunto termo (CT)
e os elementos do conjunto vocábulo (CV)

A dinâmica de transposição/engendramento de termos/vocá-bulos exposta acima, de causas e motivações as mais diversas, estabelece diferentes tipos de relações entre os elementos do conjunto termo e os elementos do conjunto vocábulo e nos permite a seguinte formalização:

I – Nas relações entre terminologia(s) e língua geral.

a) A um termo pode corresponder um vocábulo:

osteosarcoma câncer do osso

acondroplasia nanismo

II – No confronto de terminologias

Quanto aos graus de terminologização e de banalização, diríamos que toda essa dinâmica anteriormente exposta nos autoriza a afirmar que uma unidade lexical não é termo ou vocábulo, em si mesma, mas, ao contrário, está em função ´termo´ ou em função ´vocábulo´, ou seja, o universo de discurso em que se insere determina o seu estatuto, em cada caso. Função, aqui, tem dupla acepção: a de ´desempenho´ (Martinet) e a de ´relação de dependência´ (Hjelmslev): “Adotamos aqui o termo função num sentido que se situa a meio caminho entre o seu sentido lógico-matemático e o seu sentido etimológico (...) o sentido em que o tomamos está formalmente mais próximo do primeiro, sem com isso ser-lhe idêntico (...). Poderemos dizer que uma grandeza no interior de um texto ou de um sistema tem determinadas funções e, com isso, aproximarmo-nos do emprego lógico-matemático desse termo, com ele exprimindo: primeiramente, que a grandeza considerada mantém dependências ou relações com outras grandezas, de modo que certas grandezas pressupõe outras e, segundo, que pondo em causa o sentido etimológico do termo, esta grandeza funciona de uma determinada maneira, representa um papel particular, ocupa um “lugar” na cadeia (...). Ao mesmo tempo em que adotamos o termo técnico função (...) propusemos o termo técnico funtivo e tentamos evitar dizer, como normalmente se faz, que um funtivo é “função” do outro, preferindo a seguinte formulação: um funtivo tem uma função com outro” (Hjelmslev, 1975: 39-40).

Logo, o vocábulo é um funtivo de outro vocábulo e/ou termo e o termo é um funtivo de outro termo e/ou vocábulo. Assim, não é possível estabelecer uma taxionomia paradigmática dos conjuntos termos e dos conjuntos vocábulos, pois toda a classificação resulta dos entornos discursivos e dos condicionamentos das normas discursivas, dependente, portanto, dos universos de discurso e das situações de discurso.

Concebemos um percurso possível de uma ´unidade lexical´, ao longo de um eixo continuum, do maior grau de banalização ao maior grau de cientificidade e vice-versa.

Por outro lado, se não é possível caracterizar tal ou qual ´unidade lexical´ como termo ou como vocábulo, no eixo paradigmático, podem-se distribuir co-hipônimos e, mais precisamente, parassinônimos – formas equivalentes – de um mesmo campo lexical no continuum, em seus diferentes graus de cientificidade/banalização. Teremos:

notando-se que Hálux valgo consta da nomina anatômica, e que joanete é uma forma de interface entre o científico e o banalizado.

Temos ainda:

em que gota consta, ainda, da CID (Classificação Internacional de Doenças).

Considerações finais

No eixo do continuum cientificidade/banalização, podemos detectar termos/vocábulos que se situam na interface entre o discurso científico e o discurso banal, como, por exemplo, o termo/vocábulo câncer. Esse tipo de termos garante a comunicação entre especialistas de uma área, entre leigos, entre os primeiros e os segundos. Por conseguinte, entre o mais alto grau de cientificidade e o mais alto grau de banalização, existe, sempre, um subconjunto que tem dupla natureza, a de termo e a de vocábulo.

Esses processos confirmam, uma vez mais, a tese da semiose ilimitada.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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RASTIER, F. Sémantique et recherches cognitives. Paris: PUF, 1991.

 

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