SELEÇÃO PARA O MAGISTÉRIO PÚBLICO
O QUE SE ESPERA DO PROFESSOR
Fabio Sampaio de Almeida (UERJ)
Maria Cristina Giorgi (UERJ)
Del Carmen Daher (UERJ)
Introdução
No âmbito da educação nacional, a avaliação vem sendo objeto de estudo em várias pesquisas, voltadas ora para a avaliação da aprendizagem, ora para avaliação das políticas públicas e sua implementação no cotidiano escolar. Contudo, ainda que outras investigações realizadas em programas na mesma área apontem para uma série de problemas que se reproduzem nas últimas décadas – “evasão de alunos”, “fracasso escolar”, “má qualidade do ensino”, – em sua maioria, atribuídos a “docentes mal preparados”, encontramos poucas pesquisas relacionadas à prova que seleciona o professor e o habilita para a sala de aula. Encaminhando nosso olhar para a rede pública de ensino, perguntamos como esse professor pode ser “despreparado” se atravessa um processo seletivo que o autoriza a dar aulas?
Neste artigo buscamos relacionar os saberes privilegiados nas provas das disciplinas de língua espanhola e língua inglesa de concursos para professores realizados pelo Estado e pelo Município do Rio de Janeiro, aos perfis de professor encontrados por Vivoni, (2003), Almeida, (2005) e Giorgi (2005). Nosso corpus é composto dos itens Conhecimentos Específicos de Língua Espanhola e Língua Inglesa, que constam do Manual de Candidato do concurso para a seleção de Professor Docente I, distribuído aos candidatos no ato da inscrição, realizado pela Secretaria do Estado do Rio de Janeiro (SEE-RJ), em novembro e dezembro de 2004.
Com relação à linguagem, seguimos as propostas da Análise de discurso (AD) de base enunciativa (Maingueneau, 2001) e as noções de gênero de discurso e de polifonia (Bakhtin, 2000/2004).
Contextualizando nossa pesquisa
Seja na mídia, seja em pesquisas acadêmicas, muito se fala sobre educação, ensino, alunos e professores. Direcionando nosso olhar especificamente para o ensino público, por um lado, temos as reclamações dos docentes sobre problemas em sala de aula – alunos desmotivados, instalações ruins, falta de material e de recursos didáticos. Outrossim, circulam discursos sobre o despreparo dos professores e sua responsabilidade com relação ao fracasso escolar de seus alunos.
No âmbito da rede pública de ensino, torna-se mais incongruente essa contradição, uma vez que esse “professor despreparado”, passa por um processo de escolha que o torna apto a dar aulas: a prova de seleção para o magistério público. Como em nossa visão as provas refletem saberes que são acumulados ao longo do tempo, além de prescrever visões de ensino prestigiadas por determinados grupos, perguntamos como é possível que um professor aprovado por esse instrumento, esteja despreparado. Ou seja, a relevância das pesquisas nas quais baseia-se essa reflexão, emerge a partir do questionamento: se as provas refletem saberes, registram o que vem sendo valorizado na formação de profissionais no contexto atual de nossa realidade educacional, por que se verifica a contradição entre o professor “esperado” e o professor “real”, aquele que está em sala de aula?
Com base na análise destes processos de seleção, buscamos verificar que perfil de professor se constrói discursivamente, que competências / saberes são privilegiados e como / se é permitido ao professor-candidato demonstrar seu conhecimento sobre seu trabalho.
Base teórica
Ressaltamos que no presente artigo a base teórica seguida no que se refere aos estudos linguagem relaciona-se diretamente com a compreensão de língua em seu uso, na prática social, e não como uma estrutura isolada. Estes estudos não dissociam o lingüístico e o extralingüístico como construtores de sentido no discurso. Por isso, recorreremos à AD de base enunciativa, tendo como pressupostos fundamentais as noções de Bakhtin (1979/1992) sobre dialogismo nas quais o autor considera que todo enunciado institui um EU que se dirige a um TU, ao mesmo tempo em que um discurso dialoga com outro discurso.
Gênero discursivo (Bakhtin, 1979/1992) é outra noção importante em nosso trabalho. Segundo o autor, é o gênero que garante a comunicação aos falantes de uma língua, pois permite uma economia cognitiva entre os interlocutores por meio da qual o reconhecimento de características particulares que distinguem um gênero de outro, ou seja, estabelece as bases do entendimento com o leitor.
Verificamos que estes gêneros discursivos estão submetidos a algumas coerções, que vão sendo modificadas pelas sociedades ao longo do tempo, de acordo com suas necessidades, sendo todo dito determinado em grande parte pelo lugar onde é enunciado. Para compreender esse movimento, aliamos aos conceitos bakhtinianos, alguns conceitos teóricos de Maingueneau (2001), para quem a perspectiva enunciativa estabelece alguns parâmetros específicos a fim de que haja interação. Conforme o teórico, a situação de enunciação não está dentro do âmbito das circunstâncias empíricas de produção de enunciado, mas sim no campo das coordenadas que servem como referência direta ou não à enunciação, onde os personagens principais são enunciador e co-enunciador e as âncoras espaciais e temporais, eu/você e aqui/agora.
Continuando na perspectiva enunciativa, em que o leitor deve apreender os sentidos do texto a partir do enunciado fazendo uso de competências distintas, recorremos às noções propostas por Maingueneau de competências genérica e enciclopédica, em que a primeira compreende o domínio das leis e gêneros de discurso, e a segunda, os conhecimentos sobre mundo que acumulamos ao longo da vida, sendo ambas responsáveis por nossa capacidade de interpretar e produzir enunciados adequados às múltiplas situações sociais que nos são impostas.
Uma breve análise
Considerando as reflexões propostas por Vivoni (2003), a partir da analise de provas para docente de Língua Inglesa da SEE/RJ, realizadas nos anos de 1997 e 2001, pode-se perceber, como demonstra a autora, uma mudança no perfil de professor que se constrói discursivamente pelos enunciados em ambos exames. Segundo a autora (2003):
·
a prova de 2001 define-se por um caráter textual, onde questões de compreensão leitora são mais numerosas que no concurso anterior e demonstram uma "preocupação em fazer com que o co-enunciador-candidato realmente retorne ao texto com o objetivo de selecionar a melhor alternativa" (Vivoni, 2003, p. 61).·
as questões sobre semântica, principalmente no que se refere ao reconhecimento de sinônimos, não contribuem para a idéia de sinonímia perfeita, tão difundida no ensino tradicional, mas buscam a compreensão dos significados a partir de contextos específicos.·
as questões de morfossintaxe e morfologia são destinadas a um segundo plano e valoriza-se o trabalho instrumental, o que indica um perfil de professor atualizado e ancorado no trabalho com a língua em uso, capaz de lidar com leitura e interpretação de textos.Diferentemente, na pesquisa desenvolvida por Almeida (PIBIC/CNPq 2003-2005), com corpus formado por provas de seleção para docentes de Espanhol da SME/RJ:
·
obtém-se um perfil discursivo de professor que seja capaz de identificar, a partir de uma concepção descritivo-normativa, as noções de "certo" e o "errado" na língua.·
o texto é visto como mero elemento de legitimação das questões de caráter gramatical. São reproduzidos diversos fragmentos no comando das questões produzindo uma falsa idéia de contextualização.·
nas questões de compreensão leitora, observa-se bem mais uma interpretação, que não se sustenta no texto, do que uma verdadeira compreensão de seus elementos e dos sentidos produzidos por ele.·
constrói-se uma imagem de professor que aparentemente está "atualizado" com o ensino instrumental de línguas estrangeiras, visto que ambas provas apresentam textos veiculados na mídia pertencentes a gêneros variados, mas que não passa de uma forma limitada e encobridora dos mesmos modelos de gramática descontextualizada.Observa-se que há uma grande diferença entre os perfis de docentes construídos pelos exames para professor de língua inglesa e espanhola respectivamente apresentados nos tópicos anteriores. Ainda que realizados por órgãos distintos servem ao mesmo propósito em períodos semelhantes: selecionar servidores públicos para o mesmo cargo.
Nas provas de 2004, por meio de uma primeira análise dos conteúdos específicos propostos para professores de língua espanhola e inglesa, já é possível apontar algumas diferenças básicas, que a nosso ver, representam concepções de ensino de língua bastante distintas. Basta uma primeira leitura para que identifiquemos uma visão de língua como estrutura desvinculada de um sentido maior, e outra que, ao contrário, busca lidar com um sentido dentro do âmbito do texto. Para facilitar nosso entendimento, reproduzimos tais conteúdos nos quadros 1 e 2.
Quadro 1
Professor Docente I (Espanhol) Conhecimentos Específicos O substantivo e o adjetivo:gênero número e grau. O uso de determinantes do substantivo: o artigo, o demonstrativo e o possessivo. Os pronomes. Os numerais. O emprego do verbo: tempos e modos. Os advérbios e as locuções adverbiais. O uso das preposições e conjunções. O léxico espanhol: as dificuldades específicas dos lusofalantes (heterogenéricos, heterotônicos e heterosemânticos). A unidade e a diversidade da língua espanhola (“dichos, refranes y frases hechas”). Acentuação gráfica. Numerais. Sintaxe da frase. |
Quadro 2
Professor Docente I (Inglês) Conhecimentos Específicos O ensino de leitura em língua inglesa: textos, exercícios e avaliação. O ensino de vocabulário e gramática de língua inglesa. Métodos e abordagens de ensino de língua inglesa e os PCN’s. Conteúdo gramatical – Verbos: tempos verbais (simples e compostos), modo, voz (ativa e passiva), “Phrasal verbs”. Organizando mensagens: substantivos, pronomes, artigos, adjetivos, possessivos, numerais. Expressando tempo, maneira e lugar: os advérbios e preposições. Combinando as mensagens e fazendo textos: subordinação e coordenação. Coesão. Inglês escrito e falado: contrastes principais. |
No primeiro quadro percebemos uma concepção de língua vista como uma estrutura, preocupada e transmitir conceitos gramaticais e nomenclatura. Além disso, considera-se que conhecer frases e ditos populares são saberes necessários aos futuros docentes, uma vez que este saber estaria relacionado à diversidade da língua espanhola.
Por sua vez, no segundo percebemos uma visão de língua mais contextualizada, ou seja, mas relacionada à construção de textos. Outrossim, existe uma preocupação com conteúdos diretamente ligados à prática do professor e ao ensino de língua. Diferentemente do que se pode perceber no 1º quadro – onde os conhecimentos específicos não estão relacionados de nenhuma forma à prática docente, o 2º não seria o mesmo na seleção de um outro tipo de profissional.
As Sugestões Bibliográficas apresentadas nos manuais também apontam diferenças fundamentais, que corroboram o que percebemos durante a análise dos Conteúdos Programáticos.
O docente de espanhol recebe como propostas de leitura nove publicações:
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Os PCN’s de Ensino médio·
5 dicionários·
3 gramáticasÀ exceção dos Parâmetros, todos os outros representam, a nosso ver, que a banca não está preocupada nem com questões relacionadas ao ensino da língua – uma vez que não há nada relacionado a métodos ou abordagens do ensino de LE – nem com questões que relacionem língua e contexto.
Por sua vez, coerente com os Conhecimentos Específicos apresentados, as Sugestões Bibliográficas para o docente de inglês (8 publicações), relaciona temas como prática e teoria, habilidades para leitura, abordagens e métodos de no ensino de língua, o como ensinar, além de duas gramáticas. Tais opções denotam uma preocupação maior com o ser professor que como o saber a língua.
Considerações finais
Nossas análises nos permitem fazer algumas afirmações. Primeiramente, verifica-se que nos exames de língua espanhola, pouco ou quase nada se alterou ao longo do período de 1998 a 2004. Seja nas provas de 1998, seja nos conteúdos do concurso realizado em 2004, percebe-se a língua é tratada como estrutura, fora de um contexto geral. Dessa forma, não se valoriza o estudo do texto.
Outrossim, o professor não é visto como um educador e sim como um conhecedor do léxico e da gramática da língua a ser ensinada, que sabe identificar o certo e o errado a partir da observação de fragmentos descontextualizados.
A opção pelo uso dos dicionários comprova o dito anteriormente, visto que denota uma idéia de que as palavras têm um significado já pronto, não havendo a necessidade de vinculação ao contexto.
Por outro lado, nos processos seletivos para docentes de língua inglesa, nota-se mudança que apontam para o previsto nos PCN’s: uma maior preocupação com a compreensão textual. O texto, e não a palavra, é a unidade mínima considerada. Questões ligadas a estratégias de compreensão leitora substituem as de morfossintaxe. Constrói-se um perfil de professor capaz de identificar sentidos distintos a partir de uma visão dialógica da língua.
Pensamos que esse tratamento diferente dispensado aos professores de língua inglesa e espanhola mais do que refletir duas visões de ensino de língua bastante diversas, não procede, pois consideramos que os saberes necessários a um professor de língua, quer estrangeira, quer materna, não se excluem. Além disso, por onde passam as questões de interdisciplinaridade, se nem mesmo dentro de língua estrangeira, há uma correlação?
Cabe ressaltar também que se são cobrados conteúdos diferentes nas provas, não estaria sendo desrespeitado o princípio da igualdade ou isonomia segundo o qual a Administração tem que dispensar o mesmo tratamento a todos os administrados que estejam em uma mesma situação jurídica?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
––––––. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.
CARVALHO FILHO, J. Manual do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.
CELANI, Maria Alba (Org.). Professores formadores em mudança. São Paulo: Mercado de Letras, 2003.
CRETELLA JÚNIOR, J. Dicionário de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
DAHER, M.; SANT’ANNA. Reflexiones acerca de la noción de competencia lectora: aportes enunciativos e interculturales”. 20 años de APEERJ– El español: un idioma universal – 1981-2001, Rio de Janeiro: APEERJ. p. 54-67, 2002.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1996.
Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília. Secretaria de Educação Média e Tecnológica/MEC, 1999.
VIVONI, Renata L. Moutinho. Interlocução seletiva: análise de provas para seleção de docentes – A construção do perfil do profissional professor. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.
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