PERFIS DE GREGÓRIO DE MATTOS E GUERRA

Ruy Magalhães de Araujo (UERJ)

O licenciado Manuel Pereira Rabelo, entusiasta incondicional de Gregório de Mattos e Guerra, pincelou-lhe o retrato da seguinte forma, de acordo com uma das versões de que recolhemos os fragmentos abaixo:

Foi o doutor Gregório de Mattos de boa estatura, seco de corpo, membros delicados, poucos cabelos, e crespos, testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, olhos garços, nariz aguilenho, boca pequena, e engraçada: barba em demasia, claro, e no trato cortesão. Trajava comumente seu colete de pelica âmbar, volta de fina renda, e era finalmente um composto de perfeições, como poeta Português, que são Esopos os de outras nações.

Tinha fantesia (sic) natural no passeio, e quando algumas vezes por recreação surcava os quietos mares da Bahia a remo compasso com tão bizarra confiança, interpunha os óculos, examinando as janelas de sua cidade, que muitos curiosos iam de propósito a vê-lo. Trajava cabeleira, suposto naquele tempo era pouco versado.

Era o Doutor Gregório de Mattos acérrimo inimigo de toda a hipocrisia, virtude, que se pudera, devia moderar, atendendo aos costumes dos presentes séculos, em que o mais retirado Anacoreta se enfastia da verdade crua. Mas seguindo os ditames de sua natural impertinência habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude.

Como poeta, a contribuição de Gregório de Matos à língua e à literatura brasileiras de maneira transparente espelha-se através do seu plurifacetado discurso poético. Pertencente ao Barroco, chegado aqui tardiamente, o nosso poeta recebeu muitas influências de autores espanhóis (mormente Gôngora e Quevedo), bem assim de outros escritores portugueses. Entrementes, essas influências não se configuraram plágio grosseiro mas uma imitação reelaborada e melhorada, tudo isso dentro dos postulados da intertextualidade. O seu vocabulário mostrou o contexto social, étnico, econômico, jurídico, político, religioso, moral, ideológico daquele Brasil do século XVII.

A carreira literária de Gregório de Mattos foi descontínua e fragmentada. Por isso se torna difícil dar-se a ela uma exata reconstituição cronológica. À luz da teoria literária, contudo, podemos dizer que o bardo baiano atuou em vários ramos da poesia: foi satírico, profano, gracioso, lírico e religioso, dentro do movimento barroco em que teve participação de vulto.

O SATÍRICO

Sua sátira, à guisa de um jornal maldizente, registrava a denunciava os escândalos, – miúdos e graúdos, – de toda uma sociedade de época: os desmandos dos reinóis, a deterioração do caráter nacional, a corrupção altiva e passiva dos governantes, o comprometimento da justiça. Açoitou os prelados pervertidos pela sodomia, useiros e vezeiros na arte de galantear as damas da alta sociedade, contaminados pela simonia, atingidos pela subserviência aos ricos e poderosos. Censurou a violência e os abusos cometidos pelos militares e civis no exercício de suas funções. Atacou, reprovou, condenou a ganância dos portugueses (a quem chamava de “maganos” e “unhates”, que aqui chegavam muitas vezes maltrapilhos e quase famintos e, não ramo, regressavam à terra natal endinheirados e possuindo até mesmo navios. Criticou a hipocrisia dos falsos pregadores de regras morais, a fanfarronice dos covardes, a pretensão, a audácia, a pose e a debilidade de caráter de certos filhos da terra. Não poupou a peseudonobreza de algumas famílias, o capadocismo político de determinados governadores. Lançou, enfim, verrinas concretas para a “canalha infernal”, que era indesejável à pátria brasileira.

Era “O Boca do Inferno” inebriado pelo seu êxtase causticante.

À BAHIA

Tristes sucessos, casos lastimosos,

Desgraças nunca vistas, nem faladas,

São, ó Bahia! vésperas choradas

De outros que estão porvir mais estranhosos:

Sentimo-nos confusos, e teimosos,

Pois não damos remédios às já passadas,

Nem prevemos tampouco as esperadas,

Como que estamos delas desejosos.

Levou-nos o dinheiro a má fortuna,

Ficamos sem tostão, real nem banca,

Macutas, correão, novelos, molhos:

Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,

E é que, quem o dinheiro nos arranca,

Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.

O PROFANO

Aqui se manifestou o poeta fescenino e erótico. Dirigia-se a exaltar a sensualidade das suas musas de ébano que inspiraram o famoso hinário crioulo, mormente as amantes que conquistou no Recôncavo baiano. Citam-se como exemplos: a Bartola, a Brites, a Joana Gafeira, a Filena, a Custódia, a Francisca, que o encantaram até à volúpia. Igualmente, poetava com relação aos escândalos sensuais dos conventos, onde campeava a sodomia, a homossexualidade, o pecado.

NECESSIDADES FORÇOSAS DA NATUREZA HUMANA

Descarto-me da tronga, que me chupa,

Corro por um conchego todo o mapa,

O ar da feia me arrebata a capa,

O gadanho da limpa até a garupa.

Busco uma freira, que me desemtupa

A via, que o desuso às vezes tapa,

Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,

Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.

Que hei de fazer, se sou de boa cepa,

E na hora de ver repleta a tripa,

Darei por quem mo vase toda Europa?

Amigo, quem se alimpa da carepa,

Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,

Ou faz da mão sua cachopa.

O LAUDATÓRIO

Na poesia graciosa, não poupou elogios àqueles que de fato mereciam recebê-los, como foi o caso de dom Antônio Luís de Sousa Teles de Meneses, o marquês de Minas, que governou de 1684 a 1687:

SONETO-CAUDÁTICO

O Apolo, de ouro fino coroado:

O Marte, em um Adônis desmentido;

O Fênix, entre aromas renascido;

O cisne, em doces cláusulas banhando:

O abril, de mil galas matizado;

O maio, de mil cores guarnecido;

O Parnaso, de plectros aplaudido;

E o Sol, de ambos os mundos venerado:

O prodígio maior, que tudo o clama,

O assunto melhor da fama digno;

Do tronco mais ilustre a melhor rama:

O herói celestial, quase divino,

O maior que o seu nome, e a sua fama;

É esse que estás vendo, oh peregrino.

Prossegue pois agora o teu destino;

E a qualquer de que fores perguntado,

Dirás que o bom governo é já chegado.

O LÍRICO

A mulher surgia-lhe sem aquele amor concupiscente, peculiar às amantes que exaltou em seu hinário crioulo. Agora, a amada revestia-se daquela aura imaculada que faz lembrar o amor platônico, isto é, onde a posse física deprime e enfeia o sentimento de amor. Tomemos para exemplo: Ângela, de raríssima formosura; Catarina, a quem dedilhou ternamente as cordas da lira; Custódia, ainda sua parenta. Esse lirismo também foi dedicado a outras musas: Maria dos Povos, sua futura esposa, e Floralva constituem nomes bem significativos. Mas o poeta também se revelou um apaixonado, preso às cadeias emocionais produzidas pelo arrebatamento amoroso.

Discreta e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora

Em tuas faces a rosada Aurora,

Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia

O ar, que fresco Adônis te namora,

Te espalha a rica trança voadora,

Quanto vem passear-te pela fria:

Goza, goza, da flor da mocidade,

Que o tempo trota a toda ligeireza,

E imprime em toda a flor sua pisada.

 

Oh não aguardes, que a madura idade

Te converta em flor, essa beleza

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

O RELIGIOSO

Na poesia sacra, foi o pecador arrependido, recongraçado com o Criador. Conversava com Deus, implorando-lhe perdão. Considerava um bem supremo a benevolência de Deus.

Meu amado Redentor,

Jesus Cristo soberano,

Divino homem, Deus Humano,

da terra e céus criador:

por serdes quem sois, Senhor,

e porque muito vos quero,

me pesa com rigor fero

de vos haver ofendido,

de que agora, arrependido,

meu Deus, o perdão espero.

Bem sei, meu Pai soberano,

Que na obstinação sobejo

Corri, sem temor nem pejo,

Pelos caminhos do engano:

Bem sei também que o meu dano

muito vos tem agravado,

porém venho confiado

em vossa graça e amor,

que também sei, é maior,

Senhor, do que o meu pecado.

Bem não vos amo, confesso,

várias juras cometi,

missa inteira nunca ouvi,

a meus pais não obedeço,

matar alguns apeteço,

luxurioso pequei,

bens do próximo furtei,

falsos levantei às claras,

desejei mulheres raras,

coisas de outrem cobicei.

Para lavar culpas tantas

e ofensas, Senhor, tão feias

são fontes de graças cheias

essas chagas sacrossantas;

sobre mim venham as santas

correntes do vosso lado;

para que fique lavado

e limpo nessas correntes,

comunicai-me as enchentes

da graça, meu Deus amado.

Assim, meu Pai, há de ser,

e proponho, meu Senhor,

com vossa graça e amor,

nunca mais vos ofender.

Prometo permanecer

em vosso amor firmemente,

para que nunca mais intente

ofensas contra meu Deus,

a quem os sentidos meus

ofereço humildemente.

Humilhado desta sorte,

Meu Deus do meu coração.

vos peço ansioso o perdão

por vossa paixão e morte:

à minha alma em ânsia forte

perdão vossas chagas dêem,

e com perdão também

espero o prêmio dos céus,

não pelos méritos meus,

mas por vosso sangue. Amém.

A título de ilustração, daremos a seguir algumas epígrafes de Gregório de Mattos e Guerra, relativas, respectivamente, às cinco variantes de sua produção poética:

O Satírico, também com a poesia satírico-maldizente:

De dous ff se compõe esta cidade a meu ver

um furtar outro foder.

O Profano, também com a poesia fescenino-erótica:

O cono é fortaleza,

o caralho é capitão,

os culhões são

bombardeiros,

o pentelho é o murão”.

O Laudatório, também com a poesia encomiástica.:

Pois o Silva Arião da

nossa foz

Dessas sereias

músicas do mar,

Suspende os cantos e

emudece a voz”.

O Lírico, com uma esmerada estilística:

Quando a vida me falta

para a pena.

O Religioso, numa contrição profunda:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queiras, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

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