Inês de Castro na
epopéia
camoniana
Maria Paula
Lamas (LISBOA)
N’Os
Lusíadas, Luís de Camões apresenta o
trágico
romance de D. Pedro e D. Inês de Castro, inserido
no relato
feito
por
Vasco da
Gama ao
rei de Melinde. O
poeta segue
parcialmente a
História de Portugal,
quando refere a
paixão do
príncipe
herdeiro
pela
aia da
sua
mulher. D. Pedro,
depois de
enviuvar de D. Constança, vai recusar-se a
casar, de
novo, o
que preocupa o
povo
português,
pois
só havia
um
legítimo
sucessor, D. Fernando.
Os
conselheiros do
rei D. Afonso IV, Álvaro Gonçalves, Pêro
Coelho e Diogo Lopes Pacheco,
vão pressioná-lo, no
sentido de
adotar uma
atitude
radical,
com
vista à
execução de Inês. Temia-se
pela
perca da
independência,
pois os Castros pertenciam a uma
poderosa
família
galega
que
tudo faria
para
ver no
trono
um
seu
familiar.
Ora D. Inês
já
tinha
filhos de D. Pedro, o
que
poderia
ser
prejudicial
para D. Fernando, e,
inclusivamente, seria
um
risco
para a
própria
vida.
Face aos
argumentos utilizados
pelos
conselheiros,
que exprimiam,
junto do
rei, a
vontade
popular, D. Afonso IV autorizou a degolação de D.
Inês de Castro,
em 7 de
Janeiro de 1355,
conforme o
testemunho documental Chronicon Conimbrigense.
Rui de
Pina e Cristóvão Acenheiro
narram, nas
suas
crônicas,
que D. Afonso IV e
alguns dos
seus
homens se dirigiram ao
paço da
rainha D. Isabel, situado ao
lado do
Mosteiro de
Santa
Clara,
em Coimbra,
onde D. Pedro instalara D. Inês. Esta
dama, tentando
comover o
rei, alegava a
orfandade dos
filhos,
netos de D. Afonso IV,
que
ainda eram
muito
novos e ficariam desamparados. Considerando
inadmissível
que o
próprio
rei se prestasse a
um
diálogo deste
teor
com D. Inês,
alguns historiadores põem
em
causa a veracidade deste
aspecto, defendendo
que
aqueles relatos
já se encontram imbuídos de
ornamentos
lendários.
Apesar das
súplicas de D. Inês, as
pressões dos
conselheiros foram
mais
fortes, sobrepondo-se as
razões de
Estado ao
direito à
própria
vida. Esta
morte vai
originar uma
discórdia
entre o
príncipe e o
rei, a
quem responsabiliza
pela
execução da
amada.
Durante
muito
tempo, as
relações
entre
ambos
vão
permanecer
em
conflito,
até à
celebração do
Instrumento do
pacto de amnistia e
concórdia, (...)
entre D. Afonso IV e
seu
filho o
infante D. Pedro,
após o
desvairo,
que
entre os
dois houve,
por
causa da
morte de D. Inês,
que se realizou
em
Agosto de 1355.
Depois da
morte de D. Afonso IV, D. Pedro vai
subir ao
trono e
vingar Inês,
apesar de
anteriormente
ter
jurado
perdoar aos
conselheiros de
seu
pai. Álvaro Gonçalves e Pêro
Coelho,
que se encontravam resguardados no
reino
vizinho, foram devolvidos a Portugal,
pelo
rei de
Castela,
que fizera
um
pacto neste
sentido
com o
rei
português. D. Pedro vai
assistir ao
massacre destes
dois
responsáveis
pela
execução de D. Inês, sujeitando-os a uma
cruel
morte,
em
que
lhes foi arrancado o
coração.
Diferente
destino teve Diogo Lopes Pacheco,
que escapou à
terrível
vingança,
por
não se
encontrar
em
casa nessa
ocasião e
ter fugido,
logo
que o avisaram do sucedido.
D. Pedro pretendeu,
ainda,
demonstrar
que casara
com D. Inês,
clandestinamente,
por
temer o
pai.
Em
Julho de 1360, prestou
juramento e apresentou
como
testemunhas do
acontecimento D. Gil,
Bispo da
Guarda e Estêvão Lobato,
um
empregado do
rei. No
entanto, esta
tardia
declaração levantou muitas
dúvidas
relativamente à
sua veracidade. Sérgio da Silva
Pinto fez
um
estudo
sobre o
assunto, e,
baseado no cânon 1014 do
Direito Canónico vigente, concluiu
que «(...) deve considerar-se
válido o
casamento de D. Inês
porque
não há a
certeza
moral da
sua nulidade (bem ao
contrário); é a
doutrina do
favor juris
que vem do
tempo de Inocêncio III, coevo do 4º
avô de D. Pedro, D. Sancho II.» (Pinto:
1963, 14).
A
partir dos relatos dos cronistas, Luís de Camões vai
apresentar o
romance
entre Inês e Pedro,
mas mesclando-o
com
aspectos românticos
próprios da
sua
imaginação
poética.
Inicialmente apresenta a
linda
donzela inserida num
cenário
idílico,
onde há uma
tranqüilidade e
beleza concordantes
com o
amor
que transparece no
casal,
como se verifica
pelos
seguintes
versos:
Estavas,
linda
Inês,
posta
em
sossego,
De
teus
anos
colhendo
doce
fruito,
Naquele
engano
da
alma,
ledo
e
cego,
Que
a
Fortuna
não
deixa
durar
muito,
Nos
saudosos
campos
do Mondego,
De
teus
fermosos
olhos
nunca
enxuito,
Aos
montes
insinando e às ervinhas
O
nome
que
no
peito
escrito
tinhas.
(Canto
III, est. 120)
Apesar da
paz
aparente, o
poeta introduz, de
imediato,
vocábulos
que denotam
que
algo
tenebroso se avizinha, preparando o
leitor
para o
trágico
desenlace.
Tal verifica-se,
por
exemplo,
quando Luís de Camões descreve o
romance correspondido
entre os
dois apaixonados, utilizando
sutilmente
expressões reveladoras de
mau
presságio,
como é o
caso do
verso De
noite,
em
sonhos
que mentiam (Canto
III, est. 121, v. 5),
em
que o
verbo
mentir é
esclarecedor
relativamente à
infelicidade
que
lhe está
subjacente e
que está
prestes a
submergir.
Logo no
início do
episódio,
para
realçar a
fragilidade e a
impotência de Inês
perante os
carrascos
que a iriam
vitimar, o
poeta referencia a
Batalha do Salado,
em
que D. Afonso IV participou,
aliado a Afonso
XI de
Castela, derrotando,
em
conjunto, o
inimigo
comum da
Península
Ibérica. Luís de Camões pretende
caracterizar o
rei
português
que,
por
um
lado,
toma uma
atitude
corajosa e
solidária, no
combate ao
mouro,
por
outro
lado, autoriza a
morte de uma
dama
indefesa,
comportamentos
antagônicos
que,
em
certa
medida, aparentam
não se
coadunar
com a
mesma
personalidade. No
entanto, há uma
certa
coerência nestas duas
tomadas de
posição,
pois ambas denotam a
prioridade
relativamente à
independência
lusitana,
que, a
todo o
custo,
era
forçoso
preservar. Os
adjetivos utilizados
pelo
poeta,
para
caracterizar as duas
personagens e as
situações
em
que se encontram envolvidas
também servem
para
realçar a
indignidade do
ato cometido, opondo a
intranqüilidade e o sofrimento proporcionados
pela
infeliz
história de Inês, à
paz e à
glória alcançadas
por D. Afonso IV, na
Batalha do Salado.
Partilhando os
mesmos
momentos de Inês, a
natureza vai
surgir personificada, alegrando-se
nos
momentos
felizes e entristecendo-se
com
toda a amargura
resultante do
trágico
romance.
Igualmente humanizado, o
Amor é responsabilizado
pelo
cruel
sacrifício a
que foi submetida uma
donzela
bela e
jovem,
abrupta e
precocemente arrancada à
vida. Confrontada
com a
hipótese de
ser executada, D. Inês vai
dirigir
emotivamente
um
apelo ao
rei, colocando-lhe
alternativas à
sua
morte.
Para
acabar
com
este envolvimento
amoroso
com D. Pedro, D. Afonso IV
poderia desterrá-la,
para a Líbia
ou
para a Sibéria,
locais
tão
longínquos
que impossibilitariam
definitivamente o relacionamento
em
causa.
Aí D. Inês
poderia
educar os
filhos, os
quais seriam
um
testemunho
vivo e
permanente do
grande
amor
que a uniria
para
sempre ao
príncipe,
independentemente do
lugar
onde se encontrasse e da
distância
que
tal
sítio implicasse. Ouçamos as
palavras de Inês, recriadas
pelo
poeta:
(...). / Põe-me
onde
se use
toda
a feridade,
Entre
leões
e
tigres,
e verei
Se neles
achar
posso a
piedade
Que
entre
peitos
humanos
não
achei.
Ali,
co
amor
intrínseco
e
vontade
Naquele
por
quem
mouro,
criarei
Estas
relíquias
suas
que
aqui
viste,
Que
refrigério
sejam da
mãe
triste.»
(Canto
III, est. 129)
Estas
súplicas
evidenciam a
atrocidade
cometida
contra
Inês. Luís de Camões recorre a
referências
clássicas,
para
melhor
ilustrar
o
que
sente
relativamente
a esta
morte.
Com
a
intenção
de
demover
D. Afonso IV, D. Inês refere os
casos
de Semíramis e dos
irmãos
Rômulo e
Remo.
A
rainha
Assíria
fora
abandonada
pela
própria
mãe,
com
o
intuito
de a
deixar
morrer,
pois
envergonhava-se dela,
por
ser
o
fruto
da
ligação
que
tivera
com
um
rapaz
assírio.
(Cf. Barreto: 1982, 703). No
entanto,
ao
contrário
do
que
estava projetado, algumas pombas alimentaram-na, salvando-lhe a
vida.
Idêntica
sorte
tiveram Rômulo e
Remo,
que
eram
filhos
de Silvia Réa,
que
quebrara o
voto
de
castidade
a
que
estava obedecida, e,
por
esse
motivo,
fora
aprisionada e os
seus
filhos
lançados ao
rio
Tibre,
para
que
sucumbissem.
Estes
casos
opõem a
humanidade
dos
animais,
inclusivamente
os
selvagens,
à
desumanidade
patente
em
muitos
homens,
como
D. Afonso, a
quem
Inês
tenta
sensibilizar:
Se
já
nas brutas
feras,
cuja
mente
Natura
fez
cruel
de nascimento,
E nas
aves
agrestes,
que
somente
Nas
rapinas
aéreas tem o
intento,
Com
pequenas
crianças
viu a
gente
Terem
tão
piadoso
sentimento
Como
co a
mãe
de Nino
já
mostraram,
E cos
irmãos
que
Roma edificaram: / (...).
(Canto
III, est. 126)
De
nada
resultaram as
súplicas
de Inês,
pois
acabou
por
ser
cruelmente
assassinada,
por
motivos
de
ordem
política.
Luís de Camões considera
que
foi uma
atrocidade
idêntica
ao
desenlace
de Policena.
De
acordo
com
as
Metamorfoses
de Ovídio, esta
personagem
teria sido sacrificada
por
Pirro,
sob
o
túmulo
do
pai,
Aquiles,
por
imposição
deste
que
exigia a
morte
da
que
fora
sua
mulher.
Inês e Policena assemelham-se,
por
terem sido
injustamente
mortas,
devido
a
interesses
alheios
às próprias.
Igualmente,
Luís de Camões apresenta uma comparação
entre
o maquiavélico
desfecho
de Inês e o
hediondo
caso
de Tiestes e Atreu.
Este
último
fora
ludibriado
pela
mulher
e
pelo
irmão
que
mantiveram
um
relacionamento
amoroso.
Atreu, fingindo
desculpar
a Tiestes, convidou-o
para
um
banquete,
dando-lhe a
comer
a
carne
dos
filhos,
fruto
da
ligação
ilícita,
como
vingança
da
traição
cometida. Nesse
dia,
o
sol,
como
repulsa
pelo
ocorrido, recusou-se a
iluminar
a
terra
com
os
seus
raios.
(Cf. Sêneca, 1996: 9)
O
fato
de Inês
ter
sido executada
perto
da
Quinta
do
Pombal,
atualmente,
Quinta
das
Lágrimas,
na
qual
havia uma
fonte
designada
por
Fonte
dos
Amores,
originou o
aparecimento
de variadas
lendas
a
seu
respeito
e relacionadas
com
este
local.
Entre
elas,
conta-se
que
o
sangue
derramado na
ocasião
da
sua
morte
provocou umas
manchas
avermelhadas
que,
ainda
hoje,
são
visíveis
no
tanque
que
liga
a
fonte
ao
lago.
Igualmente
surgiu uma
outra
lenda
que
referia
que
os
canais
de
água
existentes na
Quinta
do
Pombal
serviam de
meio
de
correspondência
entre
os apaixonados,
através
de
bilhetes
de
amor
que
deslizavam pelas
águas.
Em
1360, realizou-se a trasladação do
corpo
de Inês, da
Igreja
do
Mosteiro
de
Santa
Clara
para
o
Mosteiro
de Alcobaça,
onde
D. Pedro mandara
construir
dois
magníficos
túmulos,
destinados a
ambos,
para
que
pudessem
permanecer
para
sempre
juntos,
contrariamente ao
que
lhes
sucedera
em
vida.
A
cerimônia,
durante
a
qual
foi proferido o
Sermão
das
Exéquias
de D. Inês de Castro,
pelo
Arcebispo
de Braga, D. João de Cardaillac, foi
muito
pomposa
e revestiu-se de
particular
interesse,
servindo,
principalmente,
para
glorificar
Inês,
como
verdadeira
rainha.
É
precisamente
por
este
fato
que
Luís de Camões se refere a D. Inês,
como
aquela
que
despois de
morta
foi
rainha,
não
estando estas afirmações relacionadas
com
a
lenda
que
terá aparecido
posteriormente
à
época
do
poeta,
sobre
a
coroação
do
cadáver,
seguida
do
beija-mão
à
rainha
morta.
Os
túmulos
do
Mosteiro
de Alcobaça narram,
em
pedra
esculpida,
toda
a
história
de Inês e Pedro,
desde
a
chegada
de D. Constança à
corte
portuguesa, passando pelas
contrariedades
provocadas
pelo
romance,
até
ao
desenlace
trágico
e à
conseqüente
vingança
de D. Pedro.
Como
conclusão,
surge a
apresentação
do
Juízo
Final,
em
que
os
dois
apaixonados se encontram
juntos,
no
Céu,
para
toda
a
Eternidade,
e observam de uma
janela
celestial
o
castigo
a
que
são
submetidos os
responsáveis
pela
execução
de Inês, os
conselheiros
do
rei,
que
são
lançados nas
labaredas
do
Inferno. O rei D. Afonso IV ascende
ao Céu, não sendo, assim, responsabilizado por esta morte.
No
final
do
episódio,
a
natureza
personificada vai
demonstrar
todo
o
seu
pesar,
através
do
choro
manifestado nas
águas
permanentemente
a
correr
nas
fontes
cristalinas.
Vários
artifícios
estilísticos,como
as
repetições
e os
jogos
de
palavras,
o
emprego
dos
gerúndios
prolongando a
ação,
as
aliterações
utilizadas e a
predominância
dos
sons
nasais,
entre
outros,
ajudam a
criar
o
efeito
de
eco,
concordante
com
o
intuito
de Luís de Camões
em
carpir
continuamente a
sorte
da
linda
Inês.
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