O FUTURO DO PRETÉRITO E SUAS VARIANTES
UM ESTUDO DE MUDANÇA EM TEMPO REAL
DE LONGA DURAÇÃO

Ana Lúcia Costa (UERJ)

INTRODUÇÃO

O futuro do pretérito costuma ser relacionado, em livros didáticos e gramáticas normativas, às noções de hipótese, incerteza e irrealidade, enquanto o pretérito imperfeito do indicativo é definido como expressão de um passado habitual. Mas há usos do imperfeito que variam com o futuro do pretérito, como no contexto da cantiga popular: “Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar...”

Costa (1997) realizou um trabalho variacionista, numa perspectiva sincrônica, sobre formas que alternam com o futuro do pretérito no português informal no Rio de Janeiro. Foram encontradas quatro variantes, já que ao lado das formas flexionadas de imperfeito e de futuro do pretérito, houve formas em perífrase com o auxiliar ‘ir’:

– Futuro do pretérito simples (FP): mandaria

– Futuro do pretérito em perífrase (IRIA + V (infinitivo)): iria mandar

– Pretérito imperfeito simples (IMP): MANDAVA

– Pretérito imperfeito em perífrase (IA + V (infinitivo)): ia MANDAR

Naquele trabalho, a variável idade revelou que o IA+V era a forma preferida dos informantes mais jovens. Como o controle da variável ‘idade’ é um possível indicador de mudança lingüística em tempo aparente, levantou-se a hipótese de que a forma seria uma candidata a variante inovadora. Daí, a decisão de dar continuidade à pesquisa, desta vez, sob uma perspectiva diacrônica (Costa, 2003), averiguando o fenômeno através de uma análise em tempo real. Numa amostra de peças teatrais datadas de diversas épocas, constatou-se a presença de uma quinta variante – a perífrase com ‘haver’: HAVIA DE + Infinitivo – que aparecia principalmente nos textos mais antigos.

O estudo de mudança em tempo real de longa duração confirmou o caráter de variante inovadora de IA+V: no decorrer do tempo seu uso foi crescente nas peças teatrais, chegando a superar o IMP e o FP no final do século XX.

METODOLOGIA

Adotou-se o suporte teórico-metodológico da Teoria da Variação e Mudança, associado a hipóteses funcionalistas. Tais abordagens são compatíveis porque ambas valorizam o uso real da língua como fonte de dados da análise e consideram o contexto social, discursivo e pragmático como relevante no estudo. Um pressuposto do funcionalismo, por exemplo, é o de que a gramática não seja autônoma, mas influenciada pelo discurso.

Na verdade, Costa (2003) investigou a mudança lingüística em tempo real de longa e de curta duração. O presente texto mostrará os resultados apenas do estudo de mudança em tempo real de longa duração. O estudo foi baseado numa amostra de 33 peças de teatro ambientadas no Rio de Janeiro e datadas do início do século XVIII até o final do século XX.

Usar peças teatrais como fonte de dados é uma prática comum entre os pesquisadores de mudança lingüística, porque são textos escritos para serem falados, ou seja, os dramaturgos geralmente buscam retratar a fala contemporânea.

RESULTADOS TOTAIS – AMOSTRA DE TEATRO

A trajetória das variantes no decorrer do tempo pode ser verificada no gráfico 1.

O que mais se destaca no gráfico é a constatação de um uso decrescente de ‘havia de’ como auxiliar, enquanto a outra perífrase – com IA – apresenta um uso crescente. Percebe-se também uma oscilação nas ocorrências das formas FP e IMP através da linha do tempo, sendo que, a partir dos anos 60, o FP dá lugar não somente ao IMP, como à forma perifrástica com IA.

Gráfico 1. Amostra de Teatro (em porcentagem)

Intervalos de 50 anos nos séculos XVIII e XIX
(exceto entre 1751-1800, em que não houve dados disponíveis)
Intervalos de 20 anos para o século XX

O que se vê, então, são dois tipos de competição: uma entre as formas em perífrase e a outra entre as formas flexionadas. A primeira é menos acirrada, porque IA+V entra em cena quando HAVIA DE+V está se retirando. Na outra competição, a mais acirrada, IMP e FP se alternam entre altos e baixos.

O uso da perífrase com IRIA se mantém bastante tímido.

VARIÁVEIS ANALISADAS

Os dados da Amostra de Teatro foram submetidos ao pacote de programas estatísticos VARBRUL. A partir de hipóteses sobre o que poderia influenciar a preferência de uma variante em detrimento de outra, foram analisados diversos grupos de fatores. Para obter a seleção dos grupos relevantes, realizaram-se rodadas binárias em que cada variante foi confrontada com as demais. As variáveis selecionadas como relevantes foram as seguintes:

Época

Cada intervalo representado no gráfico foi controlado como um fator da variável ‘época’, por isso mesmo, ela apresentou resultados relevantes estatisticamente, ou seja, a distribuição contida no gráfico 01 se traduziu nos pesos relativos.

Tempo de referência

O resultado mais relevante está no uso de FP e IMP. Quando o tempo de referência é o ‘futuro’, o uso do FP é favorecido e o do IMP é desfavorecido:

(01) Não SERIA agradável se viessem a saber que você recebe cartas de amor!... (Amostra de Teatro – A vida tem três andares)

Ambiente sintático-semântico

Os resultados mostraram que há contextos preferenciais para a escolha das variantes: IMP e FP no período hipotético e IA+V em orações encaixadas:

(02) Eu pensei que jamais IA AMAR de novo. (Amostra de Teatro – Amores)

No entanto, existe uma diferença na preferência de IMP e FP por estruturas hipotéticas:

Na ordem canônica, o IMP é favorecido:

Ordem canônica: “Se essa rua fosse minha, eu MANDAVA ladrilhar.”

Se a ordem canônica é invertida, a tendência é que o FP seja usado:

Ordem inversa: “Eu MANDARIA ladrilhar essa rua, se ela fosse minha.”

Essa preferência está relacionada ao princípio da iconicidade. A ordem inversa contraria as expectativas de que condições precedem fatos. Como o IMP pode veicular não somente uma informação no âmbito do irrealis, mas também um passado habitual, a presença desta forma verbal encabeçando a estrutura hipotética poderia causar uma ambigüidade temporária na interpretação do enunciado, desfeita a partir da apresentação da condição, logo em seguida (Eu MANDAVA ladrilhar essa rua [passado habitual?], se ela fosse minha [irrealis]).

Por outro lado, o uso de FP em estruturas que fogem à ordem canônica seria natural, já que esta forma é a que, por excelência, veicula o irrealis, sendo até mesmo conhecida na tradição gramatical de algumas línguas (inglês e francês, por exemplo) como “condicional”.

Tipo de verbo

Depois de várias tentativas de uma tipologia verbal, verificou-se que o traço mais relevante para este estudo era a dinamicidade dos verbos, traço que ficou expresso em dois fatores: verbos de ação com movimento versus demais tipos.

Verbo de ação com movimento:

(03) Disse-nos que o senhor não VINHA. (Amostra de Teatro – O tenente era o porteiro)

Verbo de ação sem movimento, de processo ou de estado:

(04) Se me contassem eu não ACREDITAVA. (Amostra de Teatro – O padre assaltante)

Os resultados mostraram que os verbos dinâmicos favorecem o IMP enquanto os demais ocorrem preferencialmente com o FP.

Observou-se, especificamente, uma grande freqüência de verbo ‘ser’, por excelência um verbo de não-movimento, na forma de FP (‘seria’). Estaria envolvida aqui uma outra questão: a fonética. Há mais saliência fônica entre ‘seria’ e ‘era’ do que entre as conjugações dos demais verbos (“dar” e “dava”; “faria” e “fazia”; etc.) (cf. Costa, 2003: 104).

Paralelismo

Esta variável tem sido investigada em muitos trabalhos variacionistas. Em resumo, o princípio do ‘paralelismo’ pode ser definido como uma tendência à repetição da mesma variante quando os dados aparecem em cadeia.

Neste trabalho, o princípio se mostrou atuante, porque, quando ocorreram dados em seqüências, o FP era preferencialmente precedido de outro FP, o IMP de outro IMP, e assim por diante.

Extensão lexical

Costa (1997) havia constatado que os verbos com três sílabas ou mais favoreciam a escolha das variantes perifrásticas IA+V e IRIA+V, o que parecia refletir uma tendência geral da língua a evitar palavras extensas: ao usar uma perífrase, o falante distribui o peso fonológico de um vocábulo. Veja-se o exemplo do verbo ‘ensinar’:

“ensinar” ‘ensinaria’ [5 sílabas] – FP

‘ia ensinar’ [3 sílabas no verbo principal] – IA+V

A análise em tempo real mostrou mais uma vez que este raciocínio é pertinente, porque não só o IA+V é favorecido em verbos de infinitivo com três ou mais sílabas, como também o FP é favorecido em monossílabos.

CONCLUSÃO

A pesquisa pretendeu traçar o percurso das formas que variam com o FP na linha do tempo. Percebeu-se como o ciclo de mudanças recupera formas que já haviam feito parte da língua no passado, como é o caso do auxiliar ‘haver’, que tinha sido a origem do futuro do presente e do pretérito, se gramaticalizou e se transformou em flexão verbal (‘amarei’ / ‘amaria’). Mais tarde, a língua retoma ‘haver’ como auxiliar, nas expressões ‘havia de amar’ / ‘hei de amar’.

Bybee, Perkins & Pagliuca, em trabalho sobre a evolução da gramática de várias línguas, reconhecem os auxiliares modais deônticos (no nosso caso, o HAVER) e os verbos de movimento (no nosso caso, o IR) como as fontes mais comuns de expressão do futuro. Vimos que o HAVIA DE deixa a língua, dando lugar para o IA+V no papel de forma perifrástica que alterna com o futuro do pretérito.

Como se viu, foi confirmado o papel de IA+V como variante inovadora. No entanto, a gramaticalização de IR é um processo que ainda está em curso no português do Brasil. Se compararmos com o inglês, a gramaticalização do verbo GO está mais avançada, visto que se usa ‘go’ auxiliar + ‘go’ principal – ‘I’m going to go’ – sem problemas, enquanto aqui VOU IR e IA IR são formas ainda socialmente estigmatizadas. Além disso, no inglês, a gramaticalização de GO já envolve perdas fonéticas, como a forma GONNA, e no português não há esta perda.

O FP é marcadamente a variante usada em contextos temporais de referência futura e mantém conotações modais, possuindo um valor hipotético.

Pretendeu-se, enfim, contribuir – através desta pesquisa – para o estudo do sistema verbal do português brasileiro, que parece estar passando por uma mudança no uso de formas flexionadas versus formas em perífrase. Outros estudos têm apontado essa tendência a respeito da expressão do futuro cronológico, como o de Santos (2000), Gryner (1997 e 2003) e o de Malvar (2003).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BYBEE, Joan, PERKINS, Revere & PAGLIUCA, William. The evolution of grammar: tense, aspect and modality in the languages of the world. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1994.

COSTA, Ana Lúcia dos Prazeres. A variação entre formas de futuro do pretérito e de pretérito imperfeito no português informal no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 1997. Dissertação de Mestrado em Lingüística.

––––––. O futuro do pretérito e suas variantes no português do Rio de Janeiro: um estudo diacrônico. Rio de Janeiro, UFRJ / Faculdade de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Lingüística.

GRYNER, Helena. De volta às origens do futuro: condicionais possíveis e a perífrase ir + infinitivo. Resumo referente à comunicação homônima realizada no Congresso do GEL, 1997. mimeo.

––––––. “A história do futuro nas histórias em quadrinhos: o tempo em ação”. Trabalho constante do projeto: Variação e mudança no sistema verbal das condicionais: marcação e iconicidade. Projeto de pesquisa. PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua) – UFRJ / Faculdade de Letras. Abril, 2003. mimeo. Bolsista de iniciação científica atuante no trabalho: Liliane dos Santos Spinelli.

MALVAR, Elisabete. O presente do futuro no português oral do Brasil. Universidade de Ottawa / CNPq. Resumo da tese de doutorado orientada pela profa. Shana Poplack. Handout distribuído em comunicação durante o congresso internacional da ABRALIN, realizado no Rio de Janeiro em março de 2003.

SANTOS, Josete Rocha dos. A variação entre as formas de futuro do presente no português formal e informal falado no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Faculdade de Letras – UFRJ, 2000.

 

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