O PÓS-ESTRUTURALISMO
EM DUAS VERTENTES DE INTERPRETAÇÃO

Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba (UERJ)

Diferentes são as recorrências de abordagem quando se trata de escrever sobre interpretação. Partir das variadas formas de entendimento do conceito, traçar a história da nomenclatura, aproximar e distanciar noções diversas condensadas sob essa mesma rubrica constituem apenas alguns dos procedimentos adotados. O caminho a ser aqui percorrido, embora circunstancialmente passe por uma ou outra dessas linhas, parte do princípio de que há duas vertentes pós-estruturalistas, em que o leitor passa a ser objeto de investigação, mais particularmente, quando a ele se atribuiu o mesmo nível de relevância conceitual, antes concedido exclusivamente à obra. Sobre esse aspecto, aliás, a especificidade com que a Estética da recepção se insere no debate sugere-nos um comentário inicial. Para os teóricos da Escola alemã, se a experiência estética exigia há muito ser teoricamente aprofundada, e, se a literatura da modernidade já oferecia resistência às análises que a abordavam de modo exclusivo, ou seja, considerando apenas a produção, era preciso que se construísse uma teoria, cuja idéia de interpretação previsse categorias, conceitos, postulados também referentes ao leitor. Afinal é ele quem de fato se encontra potencialmente capaz de vivenciar o efeito da arte em literatura.

A idéia de interpretação ligada ao Desconstrutivismo surge no interior de um projeto que, de maneira própria, promove um corte no corpo do estruturalismo, interrogando criticamente a principalidade das noções dominantes até então. Suas origens firmaram-se no pensamento francês, mais especificamente nas reflexões produzidas por Michel Foucault, Jacques Derrida e Roland Barthes. Embora voltados para projetos distintos, podemos verificar, em suas obras, uma mesma linha de força a orientar um entendimento específico de texto, no momento em que se articulam noções várias, por eles tratadas, tais como as de sujeito, descontinuidade, jogo, força, traço, escritura, diferença, descentramento, lexia. Um dos aspectos fundamentais do novo modo de conceber a interpretação diz respeito à crítica da profundidade do discurso, o que os revela compartilhados com três outros grandes pensadores. A descrença no abismo da consciência (Nietzsche), o estudo das ralações de produção já se oferecendo como interpretação (Marx), a investigação da própria cadeia falada na atividade psicanalítica (Freud), tudo isso veio influenciar as idéias de Foucault, Derrida e Barthes no sentido de conceberem o discurso pela negação da crença de que o verdadeiro significado estaria nas profundezas textuais e pela negação também da existência de uma origem do discurso. Os filósofos do desconstrutivismo partiam do princípio de que quanto mais a interpretação avançasse para um suposto encontro com a verdade, mais estaria caminhando para sua morte. Para eles, subjacente à atividade interpretativa que quisesse ir em direção à profundidade, permaneceria o falso pressuposto de que o símbolo conduziria à coisa em si, como se ele (símbolo) vivesse uma origem que lhe pertencesse, ou se colasse à coisa que apenas simboliza. Como escreve Foucault,

A morte da interpretação é o crer que há símbolos que existem primariamente, realmente como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas. A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que que não há mais do que interpretações (FOUCAULT, [s/d.]: 21).

A rejeição à idéia de origem, o fim da consciência do sujeito, a valorização do discurso em sua materialidade constituem alguns dos aspectos indicadores de pelo menos duas noções fundamentais da interpretação: a de que a linguagem possui uma ordem própria; a de signo como algo que já se oferece à interpretação. Para os desconstrutivistas, então, não há nada anterior ao signo e o que importa é que cada signo só faz remeter para outros signos. É dessa idéia que se pode compreender a já propagada assertiva que diz não haver nada a ser interpretado; tudo já é interpretação. Nesse sentido, ela é nada mais é do que uma tarefa através da qual se promove o estabelecimento de um jogo inacabado e infinito.

No interior desse quadro de questões vamos encontrar, na mesma clave de Foucault, a reflexão empreendida por Jacques Derrida, cujas idéias foram capazes de promover uma crise tanto na atividade estruturalista, quanto no quadro mais amplo a que pertence, a metafísica ocidental. Principalmente na sua Gramatologia, Derrida (1973) propõe uma revisão dos conceitos mais enraizados no pensamento da metafísica ocidental – centro, logos, origem, arquê, telos, homem, consciência –, configurando a interpretação numa nova ordem, diferente daquela de caráter estrutural que procurou continuamente estancar a mobilidade própria da estrutura, retirar sua estruturalidade. A crítica de Derrida a esse modo de inibir o movimento intrínseco à estrutura residiria, segundo ele, ao fato de o pensamento ocidental ter sempre privilegiado o significado, recalcando, conseqüentemente, a própria força do significante. O olhar colado nos elementos de significados excludentes, nas relações unicamente binárias, no privilégio dos termos que de imediato se mostram distintos constituem atitudes reveladoras da prisão instaurada pela metafísica ocidental. Trata-se, como diria Derrida, de uma visão limitada, por não ter nunca se desprendido da canônica oposição entre o sensível e o inteligível. Daí o porquê de a análise praticada no interior da metafísica ter abandonado a própria différance, esse instante em que os termos, por não estarem ainda diferenciados em seus significados, tenderem a permanecer como estão. Com isso, ficam impedidos de revelarem todo seu potencial de força de significação. Contrariamente, a interpretação que trabalha com a différance, ativa a força do pharmakon, ou da escritura, nomenclaturas essas trazidas pelo próprio Derrida. A metáfora do pharmakon ilustra bem a atividade interpretativa que não se decide por um signo específico; opta, ao invés, por impulsionar a força do significante. Só assim, é possível deixar emergirem as potências do remédio e do veneno (ambos em pharmakon), do bem e do mal, do claro e do escuro, enfim de todas as oposições, de todas as différences. O signo, liberto agora de um significado transcendental, conceitua o significante como falta que poderá, a qualquer instante, ser preenchido por múltiplas significações. Daí a interpretação nada mais ser do que uma constante substituição de significantes. A interpretação não mais complementa a literatura. Ao invés, o signo (literatura) e o signo-texto (interpretação) constituem suplementos em reciprocidade. Por essa diretriz, portanto, a interpretação será sempre um significante a mais que se acrescenta ao texto-base; é um suplemento do suplemento, uma interpretação da interpretação. Tarefa infinita que não se esgota; não se esgota porque não visa à totalização.

Das práticas interpretativas realizadas segundo os postulados do desconstrutivismo destaca-se ainda uma outra, a que é realizada por Roland Barthes, por ter ele promovido um golpeamento da análise estrutural, quando apresenta uma interpretação da novela Sarrasine de Balzac. De fato, as lexias e respectivos comentários do livro S / Z (BARTHES, [s/d.]) configuram-se como fragmentações do texto original, não só do ponto-de-vista do rompimento com a conexão entre os comentários dos diversos trechos, como do enfoque que descarta as tradicionais marcas de coesão e coerência segundo os princípios de início, meio e fim. Não existe um núcleo que articule um significado para o texto-tutor – a literatura – como chama Barthes. O pressuposto de existência de diversas entradas de Sarrasine não implica selecioná-las e explorá-las nos aspectos que elas apontariam para um possível sentido. A seleção em S / Z não pretende esgotar nem a totalidade do objeto, nem a de um conjunto específico de significados desse objeto. A seleção remete, inclusive, para a permissão do esquecimento, um gesto de abandono marcado pela positividade no pensamento bartheseano. Para ele, somente os postulados hierarquizadores da conotação sobre a denotação não admitiriam o esquecimento. Tais modelos analíticos que submetem a denotação à Lei do Significado visam à totalização do objeto, conduzem ao fechamento do discurso, tendem à organização da estrutura, noções que sempre regeram a interpretação no interior da metafísica ocidental. A interpretação assim pensada só seria pertinente para os textos legíveis, aqueles que, comprometidos com a filosofia ocidental, estimulam o leitor a permanecer na intransitividade. Em contrapartida, os textos escrevíveis provocam uma leitura pela qual o leitor entra no jogo da escrita. Estes requerem uma interpretação que ative a pluralidade do texto, que faça proliferar os significantes em outros significantes, que promova a dispersão do significante no campo da diferença, em sua natureza, sempre tida como inacabada.

Esse deslizamento de significantes, aliás, diz respeito a uma das noções de parentesco entre a interpretação e a leitura que Roberto Corrêa (1986) faz de “A imitação da rosa”. O autor soube perceber que o conto de Clarice Lispector não se deixaria apreender, em sua melhor construção, caso se restringisse a seguir os tradicionais modelos de oposições paradigmáticas, limitando-se aos princípios clássicos de equilíbrio (momento anterior ao aparecimento das rosas), desequilíbrio (a intensa ligação com as rosas), o novo equilíbrio (momento em que Laura envia as flores para Carlota). A narrativa clariceana revela seus pontos mais fortes no trabalho com a linguagem, os componentes mínimos, nas palavras de Roberto Corrêa. Observa ele, por exemplo, que a palavra perfeição no conto tanto pode se inserir no campo semântico de uma Laura obediente (a perfeição da casa), quanto deslizar para um outro, norteado pelo signo da ruptura instaurada pela personagem (quando Laura se sente “super-humana”,quando percebe que “Cristo era a pior tentação”). “Perfeição” seria, portanto, o significante pharmakon, a différance que, na anterioridade da escritura, guarda em si as pulverizações das seguintes différences: Laura em sua perfeição doméstica e Laura, livre das expectativas, conjugada na “perfeição de Cristo”.

No decorrer do século XX, é preciso ainda registrar o surgimento de uma nova idéia de interpretação que, apesar de suas marcantes especificidades, mantém dois dados de aproximação com o desconstrutivismo: desloca-se da clave do pensamento estruturalista e instaura um novo modelo, norteado dessa vez por pressupostos diferentes daqueles que orientaram as abordagens pautadas unicamente no pólo da produção. Referimo-nos à interpretação produzida pelo leitor, em especial, à proposta de um dos mais importantes teóricos da Estética da recepção, Wolfgang Iser. Em sua conhecida obra The act of reading- a theory of äesthetic response (ISER, 1978), Iser descreve o processo de leitura do ficcional, objetivando compreender e caracterizar conceitualmente as diversas etapas pelas quais passa o leitor quando interage com a literatura. Para isso, precisou se valer de pressupostos (BORBA, 2003) que orientassem esse tipo peculiar de relação. Os fundamentos da Teoria do efeito / resposta contrapõem-se aos das normas clássicas de interpretação, uma substituição obrigatória e que é discutida por Iser já no primeiro capítulo – “The Situation. Literary Interpretation: Semantics or Pragmatics?” – cujo subtítulo indicia, como se pode aí observar, a premência de formulação de uma nova postura teórica. Para Iser, as obras da modernidade já resistiam aos modelos analíticos convencionais, uma vez que, por não mais pretenderem representar uma semântica das totalidades, dispensavam toda e qualquer mediação crítica – uma tarefa cujo reconhecimento sempre se justificou pela capacidade de resgate de uma mensagem. Nesse sentido, somente enquanto a literatura se propôs como guardiã das grandes verdades do mundo, fizeram-se valer as matrizes analíticas capazes de revelar o significado semântico escondido nas profundezas textuais. Quando Iser observa que a real construção da obra só se dá com a entrada do leitor em cena, entende também que se instaura aí um fenômeno de constante mudança de imagens que vão se formando na mente daquele que trava contato com o ficcional. Por esse deslocamento – substituição do modelo anterior interpretativo pela interação entre leitor e obra –, a literatura a passa a ser concebida como estrutura de comunicação. Nesse novo paradigma, além de Iser propor uma nova concepção de estrutura de discurso, atribui ao leitor e ao texto categorias diversas. Para o dado referente ao pólo da recepção, atribui nomenclaturas diversas (leitor real, leitor implícito, leitor fictício etc), todas configuradas em função das variantes do processo de comunicação. Também para o pólo da produção criam-se diferentes conceituações, sendo que, dentre elas, duas se destacam: o repertório para se referir ao conjunto de normas sociais e alusões literárias; as estratégias que dizem respeito à movimentação das perspectivas textuais, um papel preponderante que assumem as estratégias na trama de apresentação do repertório. Cabe lembrar que a idéia de interação (entre leitor e obra) no pensamento de Iser não pode ser entendida pelo significado de “integração”, como diria o senso comum. A propósito desse significado, Iser chega mesmo a se contrapor a Wayne C. Booth, quando este autor afirma o seguinte:

Em resumo, o autor cria uma imagem de si mesmo e uma outra imagem de seu leitor; ele constrói o s eu leitor como constrói um alter ego para si, sendo que a mais bem sucedida leitura seria aquela em que os alter egos criados, do autor e do leitor, encontrassem total concordância. (ISER, 1978: 37)

Rebatendo Booth pelas implicações que tal afirmativa traz como, por exemplo, renúncia, por parte do leitor, de suas próprias crenças e de valores históricos, Iser vai se valer ainda de um outro argumento, que é fundamental em sua Teoria. O requisito básico da experiência estética pela qual passa o leitor na condição de leitor implícito exige uma forma específica de interação com o texto no interior do qual se intensifica o embate de forças entre as normas do contexto pragmático que o norteiam, por um lado e, por outro, aquelas que, vai percebendo como pertencentes ao universo ficcional. É justamente essa assimetria (ou no-thing ) (idem, p. 167) constituinte do vazio entre o leitor e o texto que dá início ao processo de comunicação. O resultado desse processo é a vivência de um efeito de significado que, sendo de caráter imagético tende a passar pela transmutação discursiva, de ordem cognitiva, quando o leitor se pergunta acerca da experiência estética, que o conduz à significação. É nesse sentido que a interpretação na Teoria de Iser deve ser entendida como uma resposta do leitor acerca da vivência da arte em literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. S / Z. São Paulo: Martins Fontes [s/d].

BOOTH, Wayne. A Retórica da ficção. Tradução Maria Teresa Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.

BORBA, Maria Antonieta Jordão de O. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.

––––––. Teoria do efeito estético. Niterói: Eduff, 2003.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia.São Paulo: Perspectiva, 1973.

––––––. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosophicum. Porto: Anagrama, [s/d.].

––––––. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.

––––––. Arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, 1972.

––––––. As palavras e as coisas. Tradução Antônio Ramos Rosa. São Paulo: Martins Fontes. 1966.

ISER, Wolfgang. The act of reading – a theory of aesthetic response. Tradução John Hopkins University Press. London: Routledge & Kegan Paul, 1978.

SANTOS, Roberto Corrêa dos. Clarice Lispector. Coleção Lendo. São Paulo: Atual, 1986.

 

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