OS DISCURSOS SOCIAIS
E A
CONCEITUAÇÃO DE CULTURA
A
PARTIR DOS CONCEITOS DE FUNÇÃO PRAGMÁTICA
E
FUNÇÃO HEDÔNICA

Aldo Luiz Bizzocchi (UNISA)

 

Preliminares

O intuito deste trabalho é discutir o conceito de cultura a partir de uma visão propiciada pela sociossemiótica, ramo da semiótica que se ocupa dos chamados discursos sociais, ou discursos públicos. A primeira coisa que se constata quando se fala em cultura é que essa palavra, quando aplicada ao domínio do humano que existe também e primeiramente a cultura de vegetais —, corresponde a pelo menos duas concepções diferentes. De um lado, temos a cultura em seu sentido mais amplo, antropológico, entendida como tudo aquilo que não é produto exclusivo da natureza e do instinto biológico (por exemplo, a cultura brasileira, a cultura xavante); de outro, a cultura em um sentido mais restrito, encarada como o conjunto das manifestações humanas de caráter intelectual, ligadas, portanto, ao estudo, ao conhecimento, à criação e à reflexão sobre as idéias (por exemplo, tal como é enfocada pelo Ministério da Cultura, pelas leis de incentivo à cultura ou peloscadernos de cultura” dos jornais). Em suma, a cultura é vista ora como o conjunto de todos os bens materiais e espirituais de um povo, que o distinguem dos demais, ora como a parcela espiritual desses bens. No primeiro caso, a cultura compreende tanto o arado que lavra a terra e o método utilizado para plantar quanto o pote de barro decorado em que se faz a comida e a dança ritual em louvor aos deuses. No segundo, a cultura está no canto, na dança e na decoração do pote, mas não no arado ou no plantio. Essa distinção entre as atividades utilitárias (como fabricar um arado e manobrá-lo) e as não-utilitárias (como cantar e dançar) se torna mais evidente e necessária, especialmente numa civilização complexa como a nossa, que realizou uma rígida separação e hierarquização das práticas sociaisembora ainda haja potes de barro com ambas as funções, a utilitária e a decorativa.

Por razões meramente didáticas, chamarei a partir de agora de cultura lato sensu (ou macrocultura) à primeira dessas concepções e de cultura stricto sensu (ou microcultura) à segunda, tendo em vista, logo de início, que a macrocultura engloba a microcultura.

Antes de mais nada, acho oportuno situar historicamente a origem desses dois conceitos. Originalmente, o conceito de cultura restringia-se a esse sentido mais estreito da palavra, isto é, à microcultura. Até o século XVIII, a cultura era vista como atividade intelectual ou artística por excelência, bem como o desenvolvimento de certas faculdades morais e intelectuais por meio da educação. Mas a cultura era vista sobretudo como um alto grau de refinamento formado pelo treinamento estético e intelectual. Portanto, até pouco mais de dois séculos atrás, a cultura era um atributo exclusivo da elite, a única classe social a ter acesso aos bens estéticos e intelectuais, e a única teoricamente capaz de produzi-los.

Nesse sentido, a cultura equivalia a um saber, mas não qualquer saber. Ser um bom apreciador de vinhos ou de obras de arte, capaz de reconhecer a safra de um beaujolais ou o estilo de determinado pintor renascentista, ou ainda ser versado em literatura latina e filosofia eram indícios seguros de cultura. um saber prático como lavrar a terra ou consertar carruagens não era considerado cultura, mas um conhecimento meramente técnico, que qualquer plebeu podia adquirir sem maior esforço. Em resumo, cultura era toda atividade que conduzisse ao aperfeiçoamento espiritual e existencial de quem a praticasse ou por ela se interessasse.

Exatamente no século XVIII, o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau sustentou que não apenas a aristocracia possuía cultura, mas as classes baixas e mesmo povos primitivos como os aborígines da África e da América também tinham a sua cultura. Para ele, o canto dos bêbados nas tabernas ou a dança ritual dos selvagens tinham o mesmo valor que a mais bela das sinfonias ou o mais complexo dos balés que se apresentavam nos teatros das grandes cortes européias. Mais ainda, o saber prático sobre lavoura ou cura de doenças por meio de ervas, o conhecimento dos mitos ancestrais, a capacidade de reconhecer as diferentes espécies de animais da floresta, tudo isso era cultura tanto quanto os sofisticados conhecimentos de filosofia ou mitologia gregas. Surgia assim o conceito amplo de cultura, um século depois encampado pela sociologia e pela antropologia, ciências então nascentes. Com isso, tornou-se necessário distinguir entre a cultura em seu sentido tradicional, como ocupação intelectual e estética sem propósitos práticos, e a cultura em seu sentido socioantropológico, como o conjunto de tudo o que o homem cria, seja com que propósito for. Além disso, hoje em dia o conceito mais tradicional e menos amplo de cultura (isto é, a microcultura) não se restringe aos interesses intelectuais ou estéticos da elite, mas abrange todo tipo de interesse intelectual ou estético, tudo o que podemos chamar de atividades ligadas ao lazer. Isso inclui também o esporte, visto desde a Antigüidade como uma prática legitimamente ligada ao aperfeiçoamento físico, moral e espiritual do indivíduo e, portanto, como cultura (afinal, o aperfeiçoamento físico leva ao aperfeiçoamento moral e espiritual: mens sana in corpore sano). Por outro lado, também a religião conduz ao aperfeiçoamento moral e espiritual do indivíduo e concorre com a ciência na tarefa de tentar explicar o mundo. (Na verdade, a religião vem cumprindo esse papelmuito mais tempo que a ciência.)

Assim, embora alguns pensadores questionem e tentem mesmo abolir essa distinção entre ambas as concepções de cultura, o fato é que ela está tão profundamente arraigada no senso comum que qualquer proposta de explicação do fenômeno da cultura tem de levá-la em conta.

 

Cultura e semiótica da cultura

Basicamente, o que distingue o homem dos outros animais é sua capacidade de modificar a natureza de acordo com sua inteligência e vontade. Assim, ao adquirir o poder de interferir arbitrariamente no funcionamento da natureza e ao assumir o controle de seus próprios instintos, o homem produziu uma ruptura entre o universo natural e o universo das práticas humanas, ou universo cultural. Nesse sentido, excetuados os comportamentos totalmente instintivos, todas as demais atividades humanas (a caça, a agricultura, o artesanato, a indústria, o comércio, as comunicações, os transportes, a política, a guerra, etc.) são atividades culturais, ou, melhor dizendo, atividades macroculturais.

O fato é que, se por um lado o que aqui chamo de macrocultura é um fenômeno bastante bem definido pelas ciências sociais, por outro lado, tem-se ainda uma noção apenas intuitiva do que seja a microcultura, mas não uma definição efetivamente rigorosa do conceito.

Se partirmos da noção intuitiva segundo a qual a microcultura abrange as atividades voltadas ao espírito, à elevação e ao aperfeiçoamento morais do indivíduo e à preservação dos valores de civilização de um povo, teremos que ela engloba:

·  as artes e espetáculos em geral, incluído o folclore;

·  as ciências puras (inclusive a filosofia e as ciências humanas), especialmente quando dirigem seu discurso à sociedade como um todo e não à própria comunidade acadêmica;

·  os eventos esportivos de caráter público em geral; e

·  as práticas místico-religiosas que visem à busca do conhecimento revelado, da “iluminaçãoespiritual e do autoconhecimento, assim como a difusão pública desses conhecimentos e experiências.

Admitindo que a cultura em seu sentido mais estrito seja esse conjunto de atividades, procurarei analisar que características elas têm em comum e ao mesmo tempo não partilham com as demais práticas humanas. Uma característica essencial de tais atividades, que ressalta logo ao primeiro olhar, é serem todas elas práticas discursivas. Se é verdade que nem toda atividade discursiva pertence à esfera da cultura stricto sensu, pelo menos pode-se dizer que toda atividade cultural stricto sensu é uma atividade discursiva.

Uma outra característica marcante dessa forma restrita de cultura é seu caráter não-utilitário. Sendo as atividades microculturais basicamente destinadas ao espírito, muito mais do que à matéria, elas não visam à satisfação de necessidades materiais do ser humano, tais como a sobrevivência, a saúde, a segurança individual ou patrimonial, o funcionamento social, a capacitação profissional, o acesso aos bens materiais, a participação política e outras. Se as várias atividades culturais objetivam diferentes fins, todas elas têm em comum o serem realizadas como um fim em si mesmas e não como um meio para atingir um fim utilitário. Se há alguma utilidade na cultura, é a satisfação da necessidade de prazer, no sentido mais geral dessa palavra. Não se trata, portanto, de um prazer meramente físico, animal, mas sim de um prazer sensorial e cerebral, baseado na satisfação da necessidade que a mente inteligente do homem tem de conhecer, compreender, sentir, imaginar, comover-se, projetar, abstrair, de manter, enfim, em permanente funcionamento seus quatro processos cognitivos, que são a sensação, a intuição, a razão e a emoção.

 

Os discursos sociais: as modalidades lógicas
e a
estrutura modal dos discursos

Como disse há pouco, as atividades culturais stricto sensu são produtoras de discursos, mais especificamente discursos sociais, isto é, aqueles cujo receptor é coletivo e, mais especificamente ainda, um grupo aberto e indeterminado de indivíduos, ao qual chamamos de público. Desse modo, as atividades microculturais se caracterizam por ser, antes de mais nada, atividades públicas.

São vários os tipos de discursos sociais, cujo destinatário é um público: científico, jurídico, político, jornalístico, publicitário, religioso, artístico, etc. Cada uma das atividades que lhes correspondem (ou seja, a ciência, o direito, a política, etc.) possui uma diferente função social, que lhe é atribuída pela própria sociedade. Essa função social específica determina certas características típicas de seus discursos, certas constantes e coerções que configuram um modelo a ser seguido por todo e qualquer discurso produzido por tal atividade.

Visto que a todo discurso pertencente a uma mesma classe subjaz uma mesma estrutura, é possível descrever a função social de cada discurso a partir de elementos da lógica modal. Pode-se entender a função social de cada classe de discurso como uma ação visando a um objetivo específico. Um dos princípios básicos da lógica modal é a possibilidade de traduzir qualquer ação em uma combinação de verbos modais.

Segundo Greimas (apud SCHLEIFER, 1987), todo discurso possui em sua base uma estrutura formada pela combinação das modalidades simples dever, querer, poder, saber, fazer e ser. Além destas, são também importantes o crer e o parecer. A partir de todas elas, foi possível chegar ao conceito de estrutura modal dos discursos, isto é, o enunciado lógico que subjaz a cada gênero de discurso e lhe confere o estatuto específico que este possui na sociedade em que é empregado (cf. Tabela 1, baseada em BIZZOCCHI, 2003: 281-309).

 

A função pragmática e a função hedônica

Todas as práticas humanas são regidas por dois princípios básicos, há muito enunciados pela doutrina epicurista: a busca do prazer e a fuga do sofrimento. Em termos de lógica e semiótica modais, as modalidades que estão na origem de toda ação humana são o querer e o dever, às quais Greimas chama de virtualizantes: são as causas da ação. Isso significa que somente fazemos algo se queremos ou temos de fazê-lo. Nesse sentido, todas as práticas sociais possuem como estrutura modal básica um querer fazer ou um dever fazereventualmente ambos. O enunciado querer fazer pressupõe uma implicação do tipofazer implica em prazer”, ao passo que o enunciado dever fazer pressupõe uma implicação do tiponão fazer implica em desprazer”. Chamemos de hedônica (do grego hedoné, “prazer”) toda atitude ou prática que conduza ao prazer e de pragmática (do grego pragma, “ação”) toda atitude ou prática que evite o sofrimento, isto é, proveja recursos práticos e efetivos para a solução dos problemas humanos.

O principio básico da doutrina hedonista é que o homem está constantemente buscando tanto a obtenção do prazer quanto a eliminação do desprazer. Assim, toda ação humana é motivada por esses dois objetivos fundamentais, ainda que em graus diversos, que algumas atividades são predominantemente movidas pela busca do prazer e outras — a maioria —, pela necessidade de solucionar problemas. Efetivamente, as atividades voltadas para o entretenimento e a satisfação do intelecto ou do espírito objetivam verdadeiramente buscar o prazer, muito mais do que fugir da dor.

Diremos então que toda atividade humana possui basicamente duas funções, a saber, a função pragmática ou utilitária, que consiste em resolver problemas práticos, e a função hedônica, cujo objetivo é proporcionar prazer (BIZZOCCHI, 1999). O que determinará o caráter hedônico ou pragmático de uma atividade será sua função predominante. Em termos de modalidades lógicas, a função pragmática se traduzirá por fazer não ter dor, enquanto a função hedônica será representada pela modalidade fazer ter prazer. As práticas sociais pertencentes à esfera da microcultura, como as artes, os esportes, a divulgação científica e o discurso místico, são, portanto, práticas hedônicas.

Se o fim último da existência humana é o encontro da felicidade, então as atividades hedônicas são atividades-fim, que conduzem diretamente ao prazer, ao passo que as atividades pragmáticas são atividades-meio.

Quando os discursos da ciência, arte, esporte ou religião visam proporcionar alguma forma de prazer, no sentido mais amplo desse termo (isto é, prazer sensorial, emocional, intelectual ou místico) e configuram, portanto, um fim em si mesmos, constituem as chamadas atividades culturais puras. Por outro lado, quando esses discursos são um meio para resolver problemas, constituem as atividades culturais aplicadas (cf. Tabela 2).

As atividades culturais aplicadas têm como função alimentar as atividades técnicas, ou utilitárias (medicina, engenharia, direito, administração, indústria, comércio, ensino, etc.).

Do ponto de vista semiótico, podemos classificar as atividades humanas em atividades discursivas e não-discursivas. Por outro lado, do ponto de vista teleológico, as atividades humanas são predominantemente (ou exclusivamente) pragmáticas ou hedônicas. Podemos, então, definir a cultura stricto sensu, ou microcultura, como o conjunto dos discursos sociais cuja função principal ou primária é a função hedônica.

 

Conclusão

O que procurei sumariamente mostrar aqui é que qualquer teoria semiótica da cultura deve levar em conta a dualidade existente entre as práticas pragmáticas e as hedônicas, e que esta dicotomia está na própria base da organização das atividades sociais do ser humano. O estabelecimento dessa dicotomia tem implicações na própria configuração das estruturas modais dos discursos sociais, envolvendo estudos que incorporam ferramentas da lógica modal. Além disso, trata-se de um campo muito fecundo de investigações intersemióticas e interdisciplinares, visto que os discursos sociais em questão se apresentam por meio de semióticas verbais, não-verbais e sincréticas, e seu estudo requer a contribuição de disciplinas tais como a estética, a epistemologia, a educação física e a teologia.

 

ReferÊncias bibliográficas

BIZZOCCHI, A. Culture and pleasure: the place of science. Ciência e Cultura, 1999, v. 51, n.º 1, p. 26-33.

––––––. Anatomia da cultura: Uma nova visão sobre ciência, arte, religião, esporte e técnica. São Paulo: Palas Athena, 2003.

SCHLEIFER, R. Greimas and the nature of meaning: Linguistics, semiotics and discourse theory. Lincoln: University of Nebraska Press, 1987.

 

Tabela 2: Exemplos de práticas culturais puras e aplicadas

MODALIDADE

EXEMPLO

Ciência pura

Filosofia, história, arqueologia, cosmologia, popularização científica em geral, etc.

Ciência aplicada

Química, farmácia, economia, computação, criminologia, biologia aplicada à medicina, astronomia aplicada à navegação espacial, etc.

Arte pura

Música clássica, música popular, poesia lírica, belas-artes, cinema de ficção, etc.

Arte aplicada

Moda, culinária, arquitetura, decoração, design, propaganda, musicoterapia, música militar, etc.

Esporte puro

futebol, basquete, tênis, natação, esqui, etc.

Esporte aplicado

Condicionamento físico, turfe, uso do esporte como terapia, etc.

Religião pura

Livros como os do Dalai Lama, de Crishnamurti, Lobsang Rampa, etc.

Religião aplicada

Praticamente todas as religiões, quando oferecem a salvação espiritual, a cura, o alívio do sofrimento ou quando impõem a prática religiosa como uma obrigação moral.


 

Tabela 1: Estrutura modal dos principais discursos sociais

MODALIDADE

ESTRUTURA MODAL

Ciência
pura

                         fazer ter prazer

fazer saber para   fazer fazer saber

                         fazer querer

Ciência
aplicada

                         fazer saber fazer

fazer saber para                                  para fazer não ter dor

                         fazer poder fazer

Arte
pura

                         fazer ter prazer

(a)parecer para

                         fazer querer

Arte
aplicada

                         fazer ter prazer

(a)parecer para

                         fazer poder fazer para fazer não ter dor

Religião
pura

                                                  fazer ter prazer

fazer parecer para fazer crer para

                                                  fazer querer

Religião
aplicada

                                                  fazer poder fazer

fazer parecer para fazer crer para                              para fazer
                                                                            
não ter dor

                                                  fazer dever fazer /

                                                  não fazer

Esporte
puro

                     fazer ter prazer

fazer para

                     fazer querer

Esporte
aplicado

                       fazer ter prazer

fazer para

                       fazer poder fazer para fazer não ter dor

Discurso
jurídico

                   fazer

fazer dever                              para fazer não ter dor

                   não fazer

Discurso
político

fazer saber

                            para fazer crer para fazer querer

fazer parecer

Discurso
publicitário

                                                  fazer saber

(a)parecer para fazer ter prazer para                    para fazer querer

                                                  fazer crer

Discurso
jornalístico

                                             fazer

fazer saber            fazer poder  ser           para fazer não ter dor

                   para                     querer1

fazer crer              fazer querer2

Discurso
pedagógico

                         fazer saber fazer

fazer saber para                     fazer        para fazer não ter dor

                         fazer pode   ser

                                           querer

 

 

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