A INTERDISCIPLINARIEDADE
NA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA
Miguél Eugenio Almeida (PUC-SP)
Considerações Iniciais
O objetivo deste é apontar algumas considerações interdisciplinares da Historiografia Lingüística (HL) com a Filosofia, com a Antropologia Filosófica e com a História. O que não é o propósito aqui levantar profunda teorização, mas o mínimo que permita vislumbrar a interdisciplinaridade como tal.
A concepção de língua como produto histórico-social, implica, antes de tudo, a dimensão do homem como ser de linguagem e como ser social ocupando a sua posição no universo, no contexto da Antropologia Filosófica; o homem como ser histórico, determinado no tempo e no espaço. O homem se revela e revela a realidade do universo perante a linguagem. Ao relacionarmos a HL com a Filosofia estamos buscando o princípio do Ser; na Antropologia Filosófica indagamos o que dimensiona a posição do homem no universo; e na História à presença marcante do homem no tempo e no espaço.
Assim, a linguagem compreende a relação precípua e contundente do homem com todas as coisas. A linguagem envolve o Ser em toda sua plenitude, porque ela diz, mostra, revela o Ser; como diria Heidegger: “a linguagem é a casa do ser”. Tudo o que o homem diz, faz ou pensa em fazer está presente a linguagem. A relação da mesma (linguagem) com toda a produção cultural humana é pertinente. Por isso, Nascimento ([s/d.]: 01), em A Historiografia Lingüística, concebe a mesma quando diz:
Ao tomá-la como produto histórico-social, configura-se essa perspectiva nos domínios da articulação da Lingüística e da História que se apresentam como duas áreas de conhecimento que, aliadas as outras ciências que tratam do homem, são capazes de dar conta da descrição e explicação dessa articulação, gerando conhecimentos novos.
Historiografia Lingüística e Filosofia
A língua é o fazer humano num contexto histórico-social. É aí que ela mostra todo o fazer humano compartilhado socialmente. O homem, como ser de linguagem, é um ser gregário por natureza. Ele precisa do outro para realizar-se quando comunica o que faz e o que pretende fazer. E é neste processo de comunicação que a língua se faz presente. Ser presença é ser que dura; ou ainda, conforme o eminente pensador Bérgson (1979: 24), em A Evolução Criadora, que diz: “Como no universo em seu conjunto, como cada ser consciente tomado à parte, o organismo que vive é algo que dura. Seu passado se prolonga integralmente em seu presente e nele permanece atuante”. Durar é manter-se na corrente da vida. Durar é construir anéis entrelaçados da referida corrente onde o perpetuar é manter-se preso àquilo que é pertinente ao processo de duração do Ser.
A mudança do ser consciente está, de acordo com o entendimento de Bérgson (op.cit: 31), na “Continuidade de mudança, conservação do passado no presente, duração verdadeira, o ser vivo parece, pois partilhar esses atributos com a consciência”. A consciência não somente percebe a mudança, mas participa intuitivamente da criação do novo da mudança a partir da reorganização de elementos do passado com elementos do presente. O novo da mudança é gerado no contexto da própria duração, como enfatiza o pensador da Filosofia da Intuição (op.cit: 178), assim: “É na pura duração que então estaremos mergulhados, uma duração em que o passado, sempre em marcha, se enche sem cessar de um presente absolutamente novo”. O “absolutamente novo” caracteriza, no caso, o novo da mudança, o novo que altera a forma de ser marcando notoriamente a diferença; pois o passado impulsiona constantemente a presença do novo. Desta maneira, a consciência da pura duração é a do ser consciente que mostra a sua natureza, ou melhor:
Quanto mais tomamos consciência de nosso progresso na pura duração, mais sentimos as diversas partes de nosso saber entra umas nas outras e nossa personalidade completa concentra-se num ponto, ou melhor, uma ponta, que se insere no futuro encetando-o sem cessar. (cf. Bérgson: op.cit; 179-180).
A natureza do ser está na verdadeira duração que apresenta o novo do progresso, o novo que faz progredir incessantemente. A língua é o elemento primordial da consciência do falante. É pela língua que o falante se insere na comunidade em que vive. À medida que o falante toma consciência de sua ação através do conhecimento histórico, ele, naturalmente, toma conhecimento da sua própria duração. O falante do presente é a projeção do falante do passado e o do futuro é a projeção do presente. Ou ainda, é pelo processo da duração que o homem evolui através da criação do novo, a partir de elementos pretéritos.
A consciência da duração pontua a presença de algo, como fato histórico, na corrente do devenir. E é esta consciência que evidencia a presença do novo da mudança de ser. A história mostra a sucessão de fatos marcantes onde os mesmos parecem semelhantes entre si. Assim, o que os diferencia é o elemento novo, produto da transformação. A língua, na história da evolução humana, parece ser um dos elementos da cultura humana onde as mudanças são mais visíveis, porque as mesmas envolvem profundamente o ser do homem. O homem, por ser dotado de vontade, ele arbitra sobre a aceitação do que lhe convém dentro de princípios; ou melhor: o processo de mudança na língua obedece às diretrizes lingüísticas da aceitabilidade e da gramaticalidade. Por exemplo, quando observamos a seguinte mudança: luna > lũa > lua. As regras de transformação obedecem desta forma, a acomodação fonética/ fonológica do lexema, deste modo: a 1ª transformação compreende a síncope da consoante nasal intervocálica que nasaliza a sua vogal anterior num 2º momento; e no 3º momento ocorre uma desnasalação. O sujeito falante ao opta, no caso, pela “lei do menos esforço” quando passa aceitar a forma sígnica que mais lhe parece eufônica. As mudanças lingüísticas obedecem às leis de adaptação fonética/ fonológica para que possa facilitar o uso da língua pelo sujeito falante.
Compreendemos, deste modo, que as noções filosóficas contribuem, no caso ilustrado, contribui para aprofundar a noção de mudança da língua como algo que dura no contexto do devenir elucidado pela consciência que percebe o dado novo da mudança.
Historiografia Lingüística
e Antropologia Filosófica
O diálogo da HL com a Antropologia Filosófica está na busca de elementos que permitem justificar a linguagem não somente como produto cultural, mas como fundamento do falar humano. Fundamento esse que orienta o homem no percurso de sua vida.
O homem insere-se em seu meio através da consciência. Essa se utiliza da linguagem para fixar as ações do homem. Ernst Cassirer (1977: 44), em sua obra Antropologia Filosófica, é enfático, neste ponto, quando diz:
O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontra em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como sistema simbólico.
É o sistema simbólico que o permite “adaptar-se ao meio” criando um modo de vida mais dinâmico de relacionamento com tudo o que faz e pensa. Ele tece no contexto do “sistema simbólico” um fazer que o transcenda infinitamente, porque, na visão de Cassirer (op.cit: 50), o homem.
Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede.
O homem vive no mundo simbólico que ele mesmo cria. Pois, dada a capacidade de o homem criar a linguagem, Heráclito entendeu que a razão, o Logus, é o princípio cosmológico da criação, ou seja, “A linguagem foi freqüentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão” (cf. Cassirer: op.cit.: 51).
A linguagem tem uma posição importantíssima na vida do homem, pois ela “[...] não expressa os pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições”. (cf. Cassirer: op.cit: 51). São estes estados emocionais que orientam o falar humano na corrente do devenir. Dada esta importância a linguagem, é que a mesma passa a definir o homem. É a partir daí que Cassirer (op.cit: id. ) define o homem; vejamos o que ele coloca: “Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale deveríamos defini-lo como um animal simbolicum”. O ser simbólico é que identifica notoriamente o ser do homem. Assim, a chave para conhecer o homem está na linguagem manifesta. É pela linguagem que conhecemos o âmago dos sentimentos e afeições humanas. O homem, portanto, está inserido no mundo das relações axiológicas que se manifestam através dos sentimentos e afeições em geral. O ódio e o amor, por exemplo, resumem os mesmos (sentimentos e afeições) que passam a ser atributos das relações humanas. Observamos, no caso, que o homem quando imbuído de afeto, ele passa a criar benesses para melhorar cada vez mais o seu viver; mas quando ele está com ódio de algo, procura, assim, criar mecanismos de destruição. O amor e o ódio são as alavancas da criação e da destruição respectivamente. Ou ainda: pelo amor, o homem cria algo para beneficiar-se e pelo ódio cria algo para destruir-se. Assim, por exemplo: quando ele inventa uma vacina para curar uma doença; o seu sentimento aí é de amor à humanidade. Mas, ao contrário, quando ele produz instrumentos bélicos de alto poder destrutivo, o seu pensamento é de ódio pelo outro. A história do discurso humano tem revelado a luta entre o amor e o ódio, entre o bem e o mal.
O que foi colocado, em “rápidas pinceladas” até agora sobre a Antropologia Filosófica, elucida, de certa forma, elementos pertinentes à noção de símbolo no sentido de direcionar o discurso do homem no seu percurso histórico-cultural. Os sentimentos e afetos, como expressão do sentido simbólico humano, compreendem as diretrizes da geração cultural humana.
Historiografia Lingüística e História
A relação entre HL e História apresenta pontos de contato mediados pela linguagem. É a linguagem que se encarrega de fazer a ponte entre a HL e a História. Assim, procuramos levantar alguns elementos que elucidem o papel da História, do historiador, para que possamos relacionar com a HL.
Ernst Cassirer (op.cit: 300) tem uma posição muito clara ao definir História quando diz:
A história é uma história das paixões; mas se tentar se apaixonada deixará de ser história. O historiador não deve exibir as afeições, as fúrias e frenesis que descreve. Sua simpatia é intelectual e imaginativa, não emocional.
Ou seja, a objetividade do historiador está em ponderar pela linguagem, naturalmente, o relato dos fatos; é de bom alvitre que ele deixe os fatos falarem por si mesmos sem alterar os estados de animosidade. Cassirer (op.cit: 301) adverte sobre esta questão: “A história não é o conhecimento de fatos ou acontecimentos externos; é uma forma de si mesmo”. A história expressa o ser do homem através da sua caminhada no meio espácio-temporal. Ou mais precisamente: “Na história, o homem volta constantemente a si mesmo; tenta recordar a atualizar toda sua experiência passada. Mas o eu histórico não é um mero eu individual. É antropocêntrico, não egocêntrico”. (cf. Cassirer: op.cit: id.)
A História aproxima-se mais da lingüística do que das ciências positivas, como compreende Cassirer (op.cit: 306 ):
Se procurássemos uma rubrica geral onde pudéssemos incluir o conhecimento histórico deveríamos descrevê-lo, não como ramo da física, mas como ramos da semântica, e não as leis da natureza são os princípios gerais do pensamento histórico. A história está incluída no campo da hermenêutica, não no da ciência natural.
A História, quando volta para a intimidade do eu humano buscando a interpretação, ela se servirá de instrumentos mais apropriados para atingir os seus objetivos quando se apropria da semântica, porque a interpretação dos fatos está relacionada com os dados imensuráveis. Isto não significa que a história não utilize os dados mensuráveis ao precisar a datação de objetos culturais. Ela necessita dos referidos dados para delimitá-los no tempo e no espaço, ou seja, não os utiliza como finalidade primordial.
Para reconstituir os fatos históricos
[...] o historiador necessita possuir uma técnica especial e complicadíssima, e aprender a ler seus documentos, a fim de ter acesso a um único e simples fato. Na história, a interpretação dos símbolos precede a coleta dos fatos e, sem ela não há maneira de se chegar à verdade histórica. (cf. Cassirer: op.cit; 306)
Portanto, o historiografar depreende um esforço exaustivo de leitura e interpretação do fato descrito. Diante desta questão, o historiador, antes de qualquer coisa, está evidentemente trabalhando com símbolos; observa Cassirer (op.cit: 316): “[...] os fatos históricos não pertencem ao tipo dos fatos físicos. Sabiam que seus documentos e monumentos não eram simples coisas físicas e tinham de ser lidos como símbolos”. O símbolo, como instrumento da linguagem humana, é que desvela a História.
A História, na visão de Cassirer (op.cit: 321), “Não vai além da realidade empírica das coisas e dos acontecimentos, mas modela esta realidade com nova forma, dando-lhe a idealidade da recordação”. O modelar a realidade, no caso, está na criação de formas novas de interpretação do eu humano na corrente do devenir, na visão bergsoniana, através da consciência da duração. Duração esta que anuncia o que há de novo, de diferente na construção de algo.
Jean Glenesson (1977: 07) mostra-nos da importância interdisciplinar entre a história e as demais áreas do conhecimento quando esclarece:
[...] a história devia permanecer aberta a todas as iniciativas, a todas as influências, a todos os encontros. Como poderia ela, aliás, congelar-se numa doutrina rígida, numa época em que tudo parece constantemente submetido a novas discussões a sua volta?
Ou seja, a proposta de diálogo da história com as demais ciências torna-se uma exigência, uma necessidade precípua ao analisar o seu objeto de estudo. O diálogo, no caso, está na ação do intercambiar as informações que possam servir de instrumento metodológico às ciências correlacionadas. Assim, Cassirer (op.cit: 183) relaciona interdisciplinarmente sua história das paixões com a função de despertar emoções no homem, ou seja: “Sua verdadeira função [dos nomes] não é descrever coisas, mas despertar emoções humanas; não é transmitir simples idéias ou pensamentos, mas levar os homens a certas ações”. A emoção está na resposta que o homem dá perante aquilo que o estimula, que o força a responder ou buscar uma resposta. O símbolo é o produto cultural da criação humana frente aos desafios instigantes das moções.
Considerações Finais
A interdisciplinaridade está no diálogo reflexivo entre as ciências correlacionadas. E é neste propósito que a HL busca a reconstituição do passado fixado em documentos escritos através da descrição e explicação dos elementos da duração do devenir da língua. Enfim, pela HL, buscamos analisar os fatos históricos da língua da forma mais completa possível; onde são necessárias pontes de relação com as ciências sociais, em especial, a fim de apropriação da HL para com todos os elementos das ciências a ela pertinentes, como instrumentos para a referida análise. Desta forma, a interdisciplinaridade, como paradigma de pesquisa científica, vem em auxílio à HL, para elucidá-la, de maneira mais abrangente possível, os fatos da língua em sua evolução histórica, ou seja, concluindo com Koerner (1995: 36):
[...] cabe ao historiógrafo o seguinte: grande demanda de preparo intelectual, amplitude de escopo e profundidade de saber, exigindo um conhecimento quase enciclopédico da parte do pesquisador, dado a natureza pluridisciplinar desta atividade.
Percebemos, desde então, que o diálogo da HL, em especial, para com a Filosofia, a Antropologia Filosófica e a História é, assim, muito produtivo. O subsídio filosófico para com a HL está em apresentar elementos implícitos nos textos que tratam da natureza íntima e profunda do caráter da manifestação humana pela linguagem, ou melhor: qual a natureza dessa manifestação humana, qual a sua essência na sua intimidade profunda. A Antropologia Filosófica apresenta elementos elucidativos à HL no sentido de situar a posição que o ser humano ocupa no espaço, ou ainda, busca estabelecer uma ponte de relações do homem para com tudo aquilo que lhe diz respeito. E, naturalmente, a linguagem é a expressão humana mais contundente, por excelência, que estabelece essa ponte do homem para com todas as coisas de seu universo. Já, a História traduz a relação do homem no seu tempo e no seu espaço quando procura associar todos os fatos humanos ocorridos no passado com o presente e, com possibilidade de projetá-los para o futuro, em sua tendência natural. Tudo isto vem como contributo à HL, para elucidar o objeto da pesquisa no contexto histórico em que está inserido e confrontar com as mais novas tendências, para perceber aí a relação de continuidade e descontinuidade dos fatos da língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, M. E. A Consciência na Obra de Henri Bergson. Dissertação de Mestrado. Santa Maria: UFSM, 1987.
BERGSON, H. A Evolução Criadora. Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Cassirer, E. Antropologia Filosófica. Trad. de Vicente Felix de Queiros. 2ª ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Difel, 1977.
KOERNER, K. Professing Linguistic Historiography. John Benjamin, Amsterdam/ Philadelphia, 1995.
NASCIMENTO, J. Historiografia Lingüística. Artigo. São Paulo: PUC-SP, [s/d.].
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